28 fevereiro 2022

paul éluard / diálogo

 
 
 
Belo invento coberto de vergonha
Memória de oiro enrolada no chumbo
Amor glorioso posto fora do leito
Natureza nobre manchada por anões
 
Vinde ver o sangue nas ruas
 
Somos muitos a recusar
Que seja o sol uma faca
Que seja o mar um veneno
Somos muitos a querer viver
 
Nada nem mesmo a vitória
Encherá o terrível vazio do sangue:
Nada, nem o mar, nem os passos
Do saibro e do tempo
Nem o gerânio ardendo
Por sobre a sepultura.
 
Muitos de nós perderam a vida
Na esperança de um mundo melhor
Inocentes seguros dos seus direitos
Eu lhes sorrio e me sorriem
 
 
 
paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971



27 fevereiro 2022

j. h. santos barros / visões da ilha

 
1.
Iniciei a contemplação do sol
e vi Cassius Clay mudar de nome: pura ave da arábia
ali lia o alcorão. Os operadores da TV
suaram a operação plástica.
Nem um murro nem um gemido.
Sequer um vagido dos filhos da mãe-áfrica
demove estes americanos do norte do consumo.
Disparo o flash e arrumo-o nas impenetráveis regiões
da mente, inacessíveis à tecnologia da eficiente
polícia militar estranha.
 
Contemplei Clay no écran, duro
e só como uma ilha.
 
 
2.
Dispensei-me alguns retoques no verso
confiado à amplidão do horizonte, confinado
aos limites da ilha. Margarida alegrava-me
– essa ave nórdica arribada a esta parte
larga do mar. Amei-a no local onde
a rota é traçada pelas baixas descobertas
à passagem da maré baixa.
 
3.
Faltar-te-ia ao respeito meu amor
se alindasse este pôr-de-sol único,
e o orvalho nas hortenses, as lágrimas líricas
da nossa ilha beijada por deus (por que deus)
ao pé do mar? tantos são os sinais contrários
à luta que temos de empreender de novo?
Guarda bem vivos estes sinais. O perfume deles
não cabe nos narizes envernizados dos nossos senhores
em visitação do campo. Bilhetes-postais são as mãos
e a ligeira claridade que se abre nos teus olhos.
 
 
 
j. h. santos barros
os alicates do tempo
afrontamento
1979




26 fevereiro 2022

solidariedade com a Ucrânia



                                      Somos muitos a recusar
                                      Que seja o sol uma faca
                                      Que seja o mar um veneno
                                      Somos muitos a querer viver

                                                                                  paul éluard









Mark Rothko ( 1903-1970) 
Untitled (Yellow and Blue), 1954

 

italo calvino / as cidades invisíveis

 
 
Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra.
– Mas qual é a pedra que sustém a ponte? – pergunta Kublai Kan.
– A ponte não é sustida por esta ou por aquela pedra – responde Marco, - mas sim pela linha do arco que elas formam.
 
Kublai Kan permanece silencioso, reflectindo. Depois acrescenta: - Porque me falas das pedras? É só o arco que me importa.
 
Polo responde: - Sem pedras não há arco.
 
 
 
italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999




25 fevereiro 2022

isidore ducasse conde de lautréamont / cantos de maldoror

 
 
– Mas quem?... quem é então que se atreve, como um conspirador, a arrastar os anéis do seu corpo para o meu peito negro? Quem quer que sejas, excêntrica serpente, com que pretexto explicas a tua presença ridícula? Será um vasto remorso que te atormenta? Porque, estás a ouvir, jibóia, a tua selvagem majestade não tem, ao que suponho, a exorbitante pretensão de se subtrair à comparação que dela faço com os traços do criminoso. Essa baba espumosa e esbranquiçada é, para mim, o sinal da raiva. Escuta-me: sabes que os teus olhos estão longe de beberem um raio celeste? Não esqueças que, se os teus presumidos miolos me julgaram capaz de te conceder algumas palavras de consolação, isto se deve apenas a uma ignorância totalmente desprovida de conhecimentos fisiognomónicos. Durante algum tempo, que seja suficiente, é claro, dirige o clarão dos teus olhos para aquilo que eu, como qualquer outro, tenho o direito de chamar a minha face! Não vês como ela chora? Enganaste-te, basilisco. Precisas de procurar noutro sítio a triste ração de consolo de que a minha radical impotência te priva, apesar dos numerosos protestos da minha boa vontade. Oh, que força, em frases exprimíveis, te arrastou fatalmente para a tua perda? É quase impossível habituar-me à ideia de que tu não compreendes que, espalmando com um calcanhar na relva avermelhada as curvas fugidias da tua cabeça triangular, poderia amassar um molho inominável com a erva da savana e a carne esmagada.
 
(canto V, excerto)
 
 
 
isidore ducasse
conde de lautréamont
cantos de maldoror
trad. pedro tamen
fenda
1988




24 fevereiro 2022

iosif brodskii / um postal de lisboa

 
 
Monumentos a eventos que nunca se deram:
 
 
Às guerras sangrentas nunca travadas.
Às grandes tiradas engolidas ao soar
a voz de prisão. À consagrada união
do corpo nu com o pinheiro anão
que deu o São Sebastião.
Aos aviadores que subiram às nuvens
num piano alado. Ao inventor do motor
que usa como carburante
o lixo das recordações. À esposa do navegante
ensimesmado sobre um solitário ovo em omeleta.
Às Constituições desnudadas. Às independên
cias de opulento seio. Aos cometas
que à Terra passaram tangentes
(perseguindo um infinito, cujos sinais
são em parte os das nossas paisagens).
Ao coito interrompido, nas barbas do preso,
Entre a ideia de autoridade
e a vegetação. Ao achamento
da Infártica, bairro ignoto
do outro mundo. Ao cubista doidivanas
que captava nos telhados o soprano
do telégrafo. Ao suicídio do Tirano
por amor não correspondido.
Ao terramoto – sublinha um contemporâneo –
com deleite pelo povo recebido.
À mão que nunca pegou em dinheiro,
para não falar em membro viril.
Ao total de folhas verdes com direito
inato a desprezar a sua diversidade.
À felicidade. Aos sonhos que impuseram à realidade,
à custa das pessoas, a sua própria arbitrariedade.
 
 
 
iosif brodskii
paisagem com inundação
trad. de carlos leite
livros cotovia
2001




 

23 fevereiro 2022

francisco sardo / o crepúsculo da épica

 
 
 
proscrito há tanto o idioma da tristeza
que deus relevaria a impenitência
de quem remove o pó das ímpias chagas?
 
perdão nenhum pertence ao que perdeu
o dom do júbilo     o timbre dos troféus
nem triunfou do cráter da cicuta
 
e se à noite     aluídas na amargura
as traves da memória extenuada
de que súplica suspensa restaria
a imperfeição voraz desse momento?
 
da (in)diferença só     veríssima     do acen(t)o
contra a usura das sílabas erguendo
puríssima     perplexa     a lava deste espanto
 
 
 
francisco sardo
as rugas do calcário
edição do autor
1983




 

22 fevereiro 2022

herberto helder / nada pode ser mais complexo que um poema

 
 
nada pode ser mais complexo que um poema,
organismo superlativo absoluto vivo,
apenas com palavras,
apenas com palavras despropositadas,
movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,
nada mais que isso,
música,
e o silêncio por ela fora
 
 
 
herberto helder
servidões
assírio & alvim
2013




21 fevereiro 2022

rui costa / talvez um poema de amor

 
 
Eu vou na estrada aberta agora
como tu antes da vida.
Desconheço a razão da tua boca
e o declive ascensional da morte.
Visito os amigos, não durmo no mar,
há sombras e pão em nossa casa e
a cal da noite entrando pelo sono, a nossa
casa. Sim,
tenho um tanque cheio de memória
ao fundo de abril e não te posso
dar (porque não sei).
Talvez por isso te converta
nestes versos miudinhos que
se enganam na terra donde vens.
Mas nem todo o ar começa
por um «eu» no princípio do poema.
Os campos são silenciosos quando à noite
invadem as janelas
e a maçã branca nos indica o caminho
para nunca mais.
 
Quero este amor
como a algo subitamente possível
e impossível
Uma cidade ardendo sobre o mar
As palavras separando com as mãos
na tua loucura
 
 
rui costa
«se uma estrela me falha, agarro numas nuvens»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017




 

20 fevereiro 2022

agustina bessa-luís / cumplicidade

 
 
     Eu hoje sou profundamente aceite na sociedade portuguesa na medida em que sou profundamente cúmplice dela. cúmplice das pessoas. […] Cúmplice na medida em que as entendo e faço parte delas. Por um fenómeno de mimetismo, pode-se dizer. […] Mais do que pelas ideias ou até do que pelo engenho dos livros. Há uma enorme quantidade de pessoas que me lêem pouquíssimo – ou que não me lêem de todo – e, contudo, fazem parte de mim e eu delas. Sem dúvida nenhuma. Quando eu morrer vou fazer imensa falta, nessa medida. Essa cumplicidade desaparece. E ela é necessária à vida humana. As pessoas sabem que nada de mal acontece a um povo em que essa cumplicidade está viva e é permanente…
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




19 fevereiro 2022

neil curry / sobre alfarrabistas

 
 
Nunca que me apercebesse, como Leonard
Uma vez referiu, passei ao lado de alfarrabistas,
Especialmente daqueles pequenos em ruas secundárias
Onde uma campainha pendurada na ombreira traz
Alguém de uma divisão nas traseiras. Contudo é
Desanimador e também salutar estar ali
Entre os que não têm casa e os indesejados, os falhados
E os esquecidos, mas é possível que descubramos
Alguns camaradas a quem sorrir ou acenar:
Cowper ou Gilbert White e até talvez
Encontrar, caído por trás de uns volumes grossos
De Bulwer-Lytton, uma aristocrata
Ansiosa para explicar o que se passa
Numa colmeia ou como foi estar
Deitada sob um céu estrelado com os beduínos.
E numa prateleira alta pode haver alguém
Que, por razões e de maneiras que nunca podíamos ter
Imaginado, se torne um dos nossos melhores
Amigos e mais chegados e como foi dito (por quem?):
In thy most need go by thy side.”
 
 
 
neil curry
companhia a mrs woolf
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017




 

18 fevereiro 2022

joan margarit / mulher da primavera

 
 
Depois das palavras só te tenho a ti.
Triste é quem não perdeu nunca
por amor uma casa.
Triste o que morre rodeado de respeito e de prestígio.
Importa-me tudo o que acontece na noite
estrelada de um verso.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




17 fevereiro 2022

león artigas / o luxo dos heróis

 
 
Os dias que vivi bem vividos estão.
De que adianta evocar com tom amargo
a fé desencantada de uma estupida infância,
o logro abandonado de uma infame juventude,
tantos atraiçoados objectivos?
 
Não olharei para trás.
Não olharei para outro futuro.
Implorarei apenas por um clarão
ofuscante de lucidez
para devolver a deus
um cadáver de luxo.
 
 
 
león artigas
(espanha, 1931-1984)
o meu livro de cabeceira é um revólver
dezassete suicidas
trad. jorge melícias
língua morta
2020