06 outubro 2021

konstantinos kaváfis / as almas dos velhos

 
 
Dentro dos velhos corpos estragados
quedam-se as almas dos velhos.
Que tristes estão as pobres
e como aborrecem a mísera vida que arrastam.
Como a temem perder e como a amam
essas almas confusas e contraditórias
que – tragicómicas – se acolhem
à velha pele gasta.
 
 
1901
 
 

 
konstantinos kaváfis
konstantino kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017




05 outubro 2021

mary oliver / sei de alguém

 
 
Sei de alguém que beija como
uma flor a abrir, mas mais fugazmente.
As flores são doces. Têm vidas
curtas, beatíficas. Oferecem
muito prazer. Não há
nada no mundo que se possa dizer
contra elas.
Triste, não é, que tudo o que possam beijar
seja o ar.
 
 
Sim, sim! Nós somos os afortunados.
 
 
 
 
 
mary oliver
felicidade
tradução luís matos
flâneur
2021
 





 
 

04 outubro 2021

mar becker / o fim de uma estação

 




*
 
o fim de uma estação
 
as janelas semiabertas, as casas, a chuva, que parou há pouco
 
o céu nascendo e morrendo tantas vezes à superfície de uma
poça d’água, na calçada
 
os espelhos
 
a promessa de dias novos orientando aquele que atravessa uma
cidade ou um deserto
 
os rostos, os rastros
 
as cinzas dos nossos mortos espargidas
o pó que se ergue no voo da mariposa
 
 
 
mar becker
wladimir vaz (fotografia)
a mulher submersa
urutau
2021




 

 


03 outubro 2021

miguel serras pereira / a que se cala

 
 
Entre dois dias tu és a que se cala
no silêncio das mãos sonhando a minha voz
e a distância do tempo enquanto o tempo
transborda o mundo e o mundo fica só
 
Viver é morrer sem fim enquanto nasces
Mas o regresso encontra intacta a despedida
e intacta e branca o tempo enquanto passa
a noite que o transborda entre dois dias.
 
 
 
 
miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993




 

02 outubro 2021

catarina nunes de almeida / cântico vagaroso

 

 
Os amigos são assim fazem grandes viagens
fazem músicas que já passam na rádio
fazem filhos e sopas de pacote
fazem filas nas repartições de finanças
fazem pequenas hortas no terraço
fazem trinta anos
mas no fundo estão ainda de giz na mão
a separar as palavras graves das palavras esdrúxulas
estão ainda nalgum canto escuro do varandim
de caderno pousado no colo
a aprender a travar o primeiro cigarro
 
 
 
catarina nunes de almeida
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015




01 outubro 2021

paul éluard / fresco






I

 
Eu era aquele que se passeia
De nariz no ar
Com o cão de nariz a rasar
Era também aquele que colhe violetas
E que arranja varetas
Para ceifar as ervas altas
Eu brincava eu gritava
Atirava-me às garotas
Minhas mãos pequenas e ligeiras
Só conheciam o seu mistério
 
A morte nunca havia
Nada cortado não a sabia
Não passava ainda pelos meus ouvidos
A vida era perfeita.
 
 
 
paul éluard
a cama a mesa
tradução de luís lima
barco bêbado
2021





 

30 setembro 2021

alberto pereira / catálogo para desabar

 
 
V
 
Da catedral à erva,
de Beethoven ao soneto final,
basta apenas a dança
de um teorema fugaz.
 
O amor,
velha raposa
aguardando o primeiro comboio para a neve.
 
 
 
alberto pereira
como num naufrágio interior morremos
editora urutau
2019






29 setembro 2021

tomás sottomayor / veio nocturno onde o outono

 
 
Veio nocturno onde o Outono
Repousa dormente
E as folhas
Num murmuro tépido
Fazem as suas vozes brancas
Assomar do leito do adeus.
 
Delicados luzeiros cativos
Transplantados para as cidades
Onde, por sobre as lajes
Alumiais as cabeças fatigadas
Da turba com as vossas
Luzes frias.
 
Pirilampos sem memória
Cobertos de cera
Entristecem, entontecem
A pele das estrelas.
 
 
 
tomás sottomayor
auberge ravoux
língua morta
2021





 
 

28 setembro 2021

joan margarit / perde-se o sinal

 
 
Não tenhas piedade do que foste,
porque a piedade é demasiado breve:
não dá tempo para construir nada.
De noite, num pequeno aeroporto,
vês um avião que vai subindo.
Vai-se perdendo o sinal.
E convences-te de que vives
uma época que, sem esperança,
é já a mais feliz da tua vida.
Há uma outra poesia, haverá sempre,
como há uma outra música.
A de Beethoven surdo. Quando se perde o sinal.
 
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020






27 setembro 2021

john freeman / correio

 
 
Naquele tempo escrevíamos muito
um ao outro, longas cartas
enredadas que cruzavam um país, onde
eu lhe perguntava se sabia da minha gratidão;
as suas respostas tão generosas
que só agora me apercebo
que não era gratidão a minha
gratidão, mas novo pedido.
 
 

john freeman
mapas
trad. miguel cardoso
tinta da china
2019







26 setembro 2021

jorge de sena / l' été au portugal

 
 
Que esperar daqui? O que esta gente
não espera porque espera sem esperar?
O que só vida e morte
informes consentidas
em todos se devora e lhes devora as vidas?
O que quais de baratas e a baratas
é o pó de raiva com que se envenenam?
 
Emigram-se uns para as Europas
e voltam como se eram só mais ricos.
Outros se ficam envergando as opas
de lágrimas de gozo e sarapicos.
 
Nas serras nuas, nos baldios campos,
nas artes e mesteres que se esvaziam,
resta um relento de lampeiros lampos
espanejando as caudas com que se ataviam.
 
Que Portugal se espera em Portugal?
Que gente ainda há de erguer-se desta gente?
Pagam-se impérios como o bem e o mal
- mas com que há-de pagar-se quem se agacha e mente?
 
Chatins engravatados, pelenguentas fúfias
passam de trombas de automóvel caro.
Soldados, prostitutas, tanto rapaz sem braços
ou sem as pernas - e como cães sem faro
os pilhas poetas se versejam trúfias.
 
Velhos e novos, moribundos mortos
se arrastam todos para o nada nulo.
Uns cantam, outros choram, mas tão tortos
que a mesquinhez tresanda ao mais singelo pulo.
 
Chicote? Bomba? Creolina? A liberdade?
É tarde, e estão contentes de tristeza,
sentados em seu mijo, alimentados
dos ossos e do sangue de quem não se vende.
 
(Na tarde que anoitece o entardecer nos prende).
 
 
                                           Lisboa, Agosto de 1971
 

jorge de sena
exorcismo (1972)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972





25 setembro 2021

pedro loureiro / há uma voz que nunca fala

 



 
há uma voz que nunca fala
uma voz de segredo
que no calor da ferida hiberna
rasgam-lhe o corpo
e somente brota um rumor
eco de um grito
é obstinada esta voz
sem nenhum ouvido
que a consiga parar
e o segredo cresce, denso
por trás da tela de projecção
enquanto a falsa moeda
inunda demasiadas bocas
a inviabilizar o repouso
em ritual de oposição
à pureza de um fogo
que incendeia
que consome
que ultrapassa
a hipotermia cerebral
das gentes contínuas
 
 
 
 
pedro loureiro
negro silêncio
(uma série a partir da obra de Rui Chafes)
editora urutau
2020





24 setembro 2021

nuno dempster / fisgas

 
 
Desconfio que as tias,
descidas de Amarante
para viverem na Foz,
saberiam da minha gula
por que ia visitá-las alternadamente,
e também deveriam calcular
que, a um puto insubmisso,
dono de várias fisgas,
teria de adoçar-se a boca
de vez em quando
com moedas de dez tostões;
ou então condoíam-se do meu destino
e do fado da minha mãe,
que viera com elas das margens do Tâmega,
mais os seus papos-de-anjo.
De qualquer modo,
continuava a ser um puto,
 senhor de várias fisgas,
guerrilheiro contra a injustiça
e a ternura adversa
que julgo nos unia, a mim, à minha mãe
e às minhas alternadas tias.
Com esses dez tostões,
conseguia comprar um croissant
e ainda um pão-de-leite
na Tavi da Senhora da Luz.
A diferença agora é que,
trazendo ainda fisgas,
não tenho quem me dê os dez tostões,
as minhas tias morreram
e os croissants e pães-de-leite
custam quarenta vezes mais
e não os acho bons.
 
 
 
 
nuno dempster
nervo/12
colectivo de poesia
setembro/dezembro 2021