12 junho 2021

joão miguel fernandes jorge / das nossas mãos que restará fazer?

 
 
Das nossas mãos que restará fazer?
 
Quem há-de lembrar
a cadeira a porta a árvore?
 
O tempo sobre o nosso sangue
o sangue sob o nosso corpo
das nossas mãos que restará fazer?
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019






11 junho 2021

luís miguel nava / no fogo da memória

 
 
Começa-se o silêncio a desenhar
nos interstícios da carne, a que se prendem
imagens que no fogo
lento da memória se apuraram
de dia para dia e que o passado
nos serve agora como uma iguaria.
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020




 

10 junho 2021

agustina bessa-luís / portugal


De repente, cada um de nós vê um território banhado de mar agitado e frio, com manhãs verdes de nevoeiro e com os campos onde os nomes das mais pequenas ervas nos fazem humedecer os olhos
 
*
 
Evidentemente que Portugal é Europa. Mas uma Europa de refugiados, um lugar mantido em independência para servir de exílio a vencidos e enganados. Uma Suíça doutro padrão, onde nada se agita e tudo se murmura. Portugal foi mundo de mercadores, pátria para imigrados, delícia dos tímidos e calamidade para santos e perversos. Para o meio termo é boa casa, e não o digo em tom pejorativo, muito pelo contrário. E Alijó, no tempo das cerejas, tem a medida de Wall Street.
 
*
 
Os Portugueses não são pontuais nem respeitadores das praxes. Não têm espírito de corpo, em suma, e aproveitam todas as ocasiões para o demonstrar. Eu creio que Benjamin Constant nunca poderia vislumbrar nos Portugueses algo que se parecesse com a alquimia da perseguição. Pois a unanimidade não lhes parece necessária nas opiniões; a oposição é vista como uma mania curável. Tudo a inteligência remedeia, e por isso a submissão é absolutamente fora de causa.
 
*
 
Quando nomeamos Espanha e Portugal, vemos o palco da História e nós como protagonistas. Isto diminui a nossa iniciativa, ao mesmo tempo que enriquece o nosso sentido de nação.
 
Eu creio que foi Dostoievski quem disse que para fazer um país é preciso a convicção de que ele, país, é o melhor do mundo; doutro modo, não se passa de constituir apenas um material etnográfico. Nós, Portugueses, sempre desenvolvemos uma vaidade expansiva frente ao orgulho caudaloso e sério do povo da Espanha. Às vezes até somos modestos por fora para melhor gozar o nosso vinculado prazer de superioridade. E quando nos louvam a humildade, não pressentem que ela é mais desdém do que caturra virtude de confessionário.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




09 junho 2021

eduardo pitta / hesita bastante

 
 
Hesita bastante. O inferno
é uma disciplina como qualquer outra.
Dias de vinho e rosas
pagos a peso de flagelo.
O arrebatado comércio dos sentidos?
Na cidade aberta a dementada
 
 
 
eduardo pitta
arbítrio
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011





08 junho 2021

alejandra pizarnik / moradas

 
 
                  para Théodore Praenkel
 
 
Na mão crispada de um morto,
na memória de um louco,
na tristeza de uma criança,
na mão que procura o copo,
no copo inalcançável,
na sede de sempre.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
los trabajos y las noches (1965)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020






 

07 junho 2021

carlos poças falcão / lamenta-te, pois já não é alegre

 
 
Lamenta-te, pois já não é alegre
o vento sobre os campos.
Não há descoberta nem transfiguração
quando o calendário vem com as primícias.
 
Lamenta-te, lamenta-te.
Já não tens a nudez certa
nem a fragrância antiga.
 
 
carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018





06 junho 2021

juan vicente piqueras / papoilas


 
 
                                           A Izer Sarajlic
 
 
 
Sobre o antigo campo de batalha
onde morreram milhares de rapazes
volta a crescer o trigo, salpicado
aqui e ali por ardentes papoilas.
 
E dois apaixonados, que terão
mais ou menos a idade dos soldados
que então aqui morreram,
fazem amor entre as searas.
 
Derrubam o trigo. Esmagam as papoilas.
 
 
juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019





05 junho 2021

marcos foz / vir ao mundo nesta casa sem tecto

 
 
[…]
 
vir ao mundo nesta casa sem tecto
decreto lei súmula
será? Calibrar
nosso papel no arranjo
e só avisam quando a evasão
se ergue no papel vegetal e
a cidade pela noite com as suas mil e
duas patifes donzelias por decifrar
antros vorazmente escondidos
umas horas antes do toque das campainhas
oficiais a marcha das botas com
restos difíceis de cúpula nas reentrâncias
           & vigilantes em cada esquina
 
pouco importa termos um corpo que
falha amavelmente alguém que diz
querer morrer uma memoria apertada
num canto coberto a linho
branco que nenhuma navalha ou carimbo..
 
[…]
 
 
marcos foz
vaca preta
bestiário/snob
2021






 

04 junho 2021

claudio rodríguez / ao ruído do douro

 
 
E como eu reparava
que era tão popular pelas ruas
passei a ponte e, adeus, para trás tudo.
Mas até aqui me chega, apaguem-no, estou sempre
a ouvir aquele ruído e subo e subo,
ando de vila em vila, encosto o ouvido
ao voo do pardal, ao sol, ao ar,
eu sei lá, ao céu, ao peito das moças,
e sempre o mesmo som, igual mudança.
Que sítio é este sem trégua? Que hostes, que altas lides
me saqueiam a alma a toda a hora,
rendem a torre da divisa branca,
abrem aquele portilho, o silencioso,
o nunca falso? E és
tu, músico do rio, meu fundo fôlego,
lhaneza e voz e pulsar dos meus homens.
Seria tão melhor
Esperar! Hoje não posso, hoje estou duro
de ouvido, após tantos anos passados
com os de ruim terra. Mas eu voltei.
Campo da verdade, qual a traição?
Vejam como tanto tempo, tanta empresa
Fazem o mesmo ruído!
Vejam só como temos tido sempre
tanta pureza ao nosso lado, em casa,
e continuamos surdos!
Já nem mais uma tarde! Sê bem-vinda,
manhã. Estou pronto: que testemunhem
por mim os que ainda ouvem. Oh, rio,
fundador de cidades,
soando em tudo menos no teu leito,
faz com que o teu ruído seja canto,
seja o nosso trabalho vida afora.
Se um dia a solidão, o ver o homem
na venda, o vinho, o desamor ou o desânimo
assaltam o que bem fizeste teu,
põe-te como hoje em pé de guerra e guarda
todas as minhas portas e janelas
como sempre fizeste,
tu, que oiço agora como ouvia outrora,
tu, rio da minha terra, Duradouro.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019




03 junho 2021

jorge velhote / calculada melancolia

 
 
De um e do outro tudo sabíamos. O mar,
o rio, se cruzando pelas nossas largas calças,
os brinquedos de lata golpeando a curiosidade,
o primeiro sabor do sangue.
Alguns antecedentes, limalhas de sol, silenciosas ferrugens
que, entre mesas e chávenas de café,
se permutam.
 
Dessa espécie de som, dessa perdida água,
vivíamos os dias, lendo livros, olhando montras,
as belíssimas mulheres que nos cotejavam o olhar, manobrando
ancas, os metálicos lábios como relógios,
detalhes.
 
Sem uma única palavra, calculada melancolia,
comovidos, os corações cambiávamos,
triunfantes.
 
 
 
jorge velhote
hífen 2 abr / set 88
cadernos semestrais de poesia
1988





 

02 junho 2021

fernando lemos / hoje

 
 
Hoje
qualquer criança
podia ser dona do mundo
ao rasgar
este silêncio
de pele
que envolve a paisagem
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019








01 junho 2021

louise glück / a estrela da tarde

 
 
Hoje, pela primeira vez em muitos anos,
surgiu-me de novo
uma visão do esplendor da terra:
 
no céu do entardecer
a primeira estrela pareceu
tornar-se mais brilhante
enquanto a terra escurecia
 
até já não poder ficar mais escura.
E a luz, que era a luz da morte,
pareceu devolver à terra
 
o seu poder de consolo. Não havia
outras estrelas. Apenas aquela
cujo nome eu conhecia
 
pois na minha outra vida a
ofendera: Vénus,
estrela da tarde,
 
a ti dedico
a minha visão, já que nesta superfície vazia
 
derramaste luz suficiente
para tornar o meu pensamento
de novo visível.
 
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020






31 maio 2021

marcel mariën / a catedral

  
 
Era no tempo das damas muito pudicas e muito imaginativas.
 
Quando iam passear para o cemitério, caminhavam a passos curtos, e diz-se que apertavam maximamente as saias com receio de poderem perturbar os mortos ao devolver-lhes o desejo de existir ou até mesmo a nostalgia da vida. Uma ou outra coisa vêm praticamente dar ao mesmo.
 

 
marcel mariën
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021