07 fevereiro 2021

claudio damiani / é uma guerra onde não se combate

 
 
É uma guerra onde não se combate,
caem bombas, e chega,
apanham-te na rua, na frutaria,
nos cinemas, nos supermercados, nos lugares de trabalho,
também em casa: entram pela janela
e explodem-te na cara.
Mesmo se construísses um bunker
cem metros debaixo da terra,
com paredes de aço, com portas de diamante,
mesmo assim as bombas haviam de te alcançar ali.
E as pessoas não vão para os refúgios,
nem ficam em casa, nem procuram esconder-se,
na verdade fazem todas as coisas como se tudo fosse normal,
saem do trabalho vão ao bar divertem-se
como se tudo fosse normal
como se tudo fosse como era dantes.
 
 
 
claudio damiani
o universo está pintado à mão
uma antologia fanática
luís filipe parrado
língua morta
2020

 



06 fevereiro 2021

nicolás arnedo marañon / amargura

 
 
Há dias em que qualquer um
deitaria fogo a uma floresta
para ver arder nela
a raiz da sua tristeza.
Dias em que qualquer um participaria
de uma guerra com a condição de merecer
a explicação da sua derrota. Dias
em que a estupidez
é uma vingança astuta,
enteada do ressentimento para consigo mesmo.
Dias em que compreendes
que é demasiado tarde
para esquivar do olho de um revólver
tanta amargura a sós.
 
 
 
nicolás arnedo marañon
(espanha, 1950-1991)
o meu livro de cabeceira é um revólver
dezassete suicidas
trad. jorge melícias
língua morta
2020
 




 

05 fevereiro 2021

fernando luís sampaio / cinco portas fechadas

 



 
1.
 
Desceu as pálpebras
Como quem sacode
Uma toalha –
Não havia vinho na mesa
E pão a servir de faqueiro.
 
 
2.
 
O teu nome aparelha
A paisagem percorrida,
Deixa entrelaçada a respiração
E mãos e boca
Desacompanham-se
Quando te vejo às compras
No mercado.
 
E não sabes que no saco
Dos legumes e fruta levas
A luz já extinta
Da minha juventude.
 
Nenhum caminho é
Para depois.
 
 
3.
 
O mundo falha em mim
Porque a noite
É maior do que a língua
Em que falas –
 
Nela misturas escórias
E o laço artilheiro
Que nos serve de fantasia.
 
 
4.
 
A casa como resto da rua – vazia.
No sentido inverso de tudo
Digo o que vai a par
De coisas imaginadas,
E se calha falar da fresca
porcelana é para reter
A luz das mãos do oleiro.
 
 
5.
 
O coração é um detrito da língua.
 
 
 
 
fernando luís sampaio
nervo/10
colectivo de poesia
janeiro/abril 2021




04 fevereiro 2021

miguel-manso / estoril, hotel do parque

 
(com a voz de Alexander Alekhine)
 
 
o mar vem pôr seus dedos
escuma de café
sobre a rocha e o cimento
enquanto um peixe
trépido nada por dentro de um copo
 
ouvem-se passos no corredor
uma colher sobre a toalha
reflecte um incêndio de consumadas
luminâncias
 
roda a toda a lentidão a maçaneta
e a lembrança desse abeto coberto de neve
tantos quilómetros ao fundo
amenizou o corado enxovalho deste
hesitar com o rei encurralado
 
Morte, é a tua vez de jogar
 
 
 
miguel-manso
mortel
do lado esquerdo
2018

 




03 fevereiro 2021

paulo da costa domingos / cais das colunas

 
 
Fui ali sentir uma aragem no rosto e
pedir a mim mesmo somente um pouco
de sossego, mas eu era um peão
do poema a rugir de encontro
à muralha dos ministérios.
 
E as mulheres que ali vinham
lutavam… íó como lutavam elas!
por sapatos de salto e lingerie
para melhor saltarem no vazio
dos mistérios ocultos no rio.
 
(E não sendo assim, é cinza
que se acumula nas pestanas
de gente de barbatanas munida
para a travessia do denso
negrume das avenidas.)
 
Os meus olhos choraram sal
sobre a nefasta semente desse
trabalho assalariado, cansado,
com o rosto de encontro à pedra
como um miúdo no quarto escuro.
 
 
 
paulo da costa domingos
a céu aberto
averno
2017

 




02 fevereiro 2021

joão miguel fernandes jorge / este ano

 
 
Este ano o verão atravessou
Lisboa. O verão foi invisível.
Atravessou a cidade e os outros
levou do meu corpo
memórias do teu nome.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019







01 fevereiro 2021

howard altmann / depois de escurecer

 
 
Sou o rapaz que regressa
à mesma prostituta
no mesmo país estrangeiro;
sou esse homem.
 
Sou o rapaz que foge
da mesma verdade
com a mesma máscara;
sou esse homem.
 
Sou o rapaz que pede
o mesmo amor
à mesma mulher;
sou esse homem.
 
Sou o rapaz que esvazia
a mesma massa de água
com a sua mesma massa de reflexões;
sou esse homem.
 
Sou o rapaz que entra
nos mesmos quartos com as mesmas janelas.
E o que dorme na mesma cama à mesma luz;
sou esse homem, sou esse homem.
 
Sou o rapaz que deixa atrás de si
o mesmo eco
com diferentes vozes;
sou esse rapaz, sou esse rapaz.
 
 
 
howard altmann
enquanto uma fina neve cai
trad. eugénia de vasconcellos
guerra & paz
2019

 



31 janeiro 2021

marguerite duras / escrevi durante uma vida inteira

  
13 de abril
 
Escrevi durante uma vida inteira.
Como uma imbecil, fiz isso.
Também não é mau ser assim.
Nunca fui pretensiosa.
Escrever durante uma vida inteira ensina a escrever.
Não salva de nada.
 
 
 
marguerite duras
é tudo (c´est tout)
trad. joão costa
livros do brasil
1999






30 janeiro 2021

wallace stevens / conversa de café

 
 
 
Claro, morremos para sempre.
A vida, então, é em grande parte uma coisa
De acontecer gostar-se, não de ter de.
 
E isso, também, claro, porque é que
Acontece eu gostar de arbustos vermelhos,
Relva cinzenta e céu cinzento-esverdeado?
 
Que mais resta? Mas vermelho,
Cinzento, verde, porquê essas de entre todas?
Isso não é o que eu disse:
 
Não essas de entre todas. Mas essas.
Gosta-se do que acontece gostar-se.
Gosta-se do modo como o vermelho cresce.
 
Não tem nenhuma importância.
Acontecer gostar-se é um
Dos modos como as coisas acontecem calhar.
 
 
 
wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991

 




29 janeiro 2021

josé saramago / poema para luís de camões

 
 
Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho para,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta.
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas fontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.
 
Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.
 
 
 
josé saramago
provavelmente alegria
caminho
1987




28 janeiro 2021

nuno júdice / como aves, cuja passagem

 
 
Como sombras passaram entre nós,
como sombras. Uma vez perante alguns amigos
e desconhecidos, afirmei conhecê-los e citei
os seus nomes. Mas o que então correspondia
a um acto heróico, nada significa
hoje, mesmo entre amigos e desconhecidos.
Só se eu próprio
me tornar uma sombra, e também eu passar
a uma outra vida. Durante algum tempo
alguém falará de mim dizendo «conheci-o»,
ou «há tanto tempo, falei com ele». Mas
em breve outros se tornarão sombras,
e depois outros, até que o meu gesto
se confunda com esses, e todos por fim
se dissipem na obscuridade do tempo
passado.
 

 
nuno júdice
o mecanismo romântico da fragmentação
editorial inova
1975




 

27 janeiro 2021

joão almeida / castelos perigosos

 
 
Sistemas completos
Acordam as coisas
De noite e de dia
 
Não sei quem vive
E quem morre
O vento
E os rafeiros que me guardam
Desfazem as notícias
No perímetro de segurança
 
Vieste de longe para me visitar
E será a última
 
Por isso a nossa mesa é uma encruzilhada
Aberta no canto mais luminoso do quarto
 
E tudo o que dissermos
Será definitivo
 
Sopro
De um deserto inteiro
Um grão de trigo comum.
 
 
 
 
joão almeida
canto skin
língua morta
2019

 



26 janeiro 2021

henrique risques pereira / amanhã vamos todos chorar

 
 
Amanhã vamos todos chorar
e muito depressa
porque temos pressa de chegar ao fim depressa.
 
Hoje falamos
Amanhã viveremos
Hoje lutamos
Amanhã descansaremos
Hoje amamos
Amanhã desculparemos.
 
Amanhã é hoje pensado para além de hoje
Amanhã é a manhã que segue à noite
E a noite faz medos
e tristezas
e lembra velhas melodias
como uma mulher escandalosamente vestida
de vermelho cingido.
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003