17 dezembro 2020

manuel cintra / os primeiros passos…

  
 
   Os primeiros passos são mais ou menos perros.
 
 
   Devagar, descola-se a noite do peito.
   Nevoeiro, em pedaços, entorpece os ouvidos.
   Frio, às baforadas, morde nuvens nos olhos.
   E os ruídos que contorcem a manhã
   não são forçosamente o único fechar de porta
   com torcer
 
 
(e pergunto à larva se dói tecer o casulo, à carne da
borboleta se a morte próxima responde ao recente dei
tar de ovos. Tento dosear marés de lembrança e de
esquecimento.)
 
 
   O que eu quero é ser como o sol,
   que, segundo consta, nunca arrefeceu.
 
 
(e a coluna vertebral do tempo
                                            osso a osso a oiço
 
 
 
manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981






16 dezembro 2020

albano martins / compêndio

 
 
Dizias: daqui o mar parece
uma tarântula
azul. Eu respondi:
vermelhas
são as flâmulas
das algas e o fermento
das águas.
                  Escrever
é isso: fazer
da vida uma pauta
e um compêndio de espuma.
 
 

albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999




 

15 dezembro 2020

adolfo casais monteiro / claro e simples

 
 
Tudo é claro para quem
olha sempre no sentido
oposto àquele onde está
aquilo que não é claro.
 
Tudo é simples para quem
adia sempre o momento
de olhar de frente a ameaça
de quanto não tem resposta.
 
Tudo é nada para quem
descreu de si e do mundo
e de olhos cegos vai dizendo:
Não há o que não entendo.
 
 
adolfo casais monteiro
voo sem pássaro dentro
1954




 

14 dezembro 2020

miguel martins / faltam cinco semanas, quase à justa,

 
 
Faltam cinco semanas, quase à justa,
para ficar sem casa, para ficar sem lua
(de merda, mas lua) onde aguardar a morte.
Faltam cinco semanas, talvez menos,
para que esta casa, como as outras,
seja uma linha na vã biografia
de tudo o que não fui e não serei.
Faltam cinco semanas (menos mal?)
para ingressar no nomadismo extremo,
desporto radical ao acesso dos velhos
com metade dos dentes e a estupidez
         inteira.
Eu não gosto de cães, gosto de tectos,
e faltam cinco emanas, mais ou menos,
para viver nas sombras de um canil
a que parece que se chama mundo.
 
 

miguel martins
telhados de vidro n.º 19 . maio . 2014
averno
2014




13 dezembro 2020

armando silva carvalho / conversa cortante

 
 
As navalhas conversam numa pausa mansa
e sob o ardor do verão as ancas
as ancas amolecem.
É na sombra da sombra que o seu metal
deslumbra e o desejo estremece
no chão das catacumbas.
O seu fulgor exacto rebrilha
rente às praias onde se abusa do tempo
que já devora as dunas.
Em cada corpo em chaga um sol negro rebenta
e o mar preso ao passado
devolve à multidão exaltados naufrágios.
 
 

armando silva carvalho
técnicas de engate 1979
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007

 




12 dezembro 2020

alberto pimenta / aspirina

 
 
da conversa que ontem tive
com o senhor do universo
resultou o seguinte:
 
dentro de cada cabeça
há uma árvore do bem e do mal
com o respectivo jardineiro
 
dentro de cuja cabeça naturalmente
há também uma árvore do bem e do mal
com o respectivo jardineiro
 
o qual dentro da cabeça
tem também uma árvore do bem e do mal
e o respectivo jardineiro
 
e assim por diante
tudo já se vê em dimensões microscópicas
 
mas não sei se entendi bem
o que ele quis dizer
 
 
 
alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990

 



11 dezembro 2020

konstandinos kavafis / cinzentos

 
 
Ao olhar uma opala meio cinzenta
lembrei-me de dois belos olhos cinzentos
que vi; haverá uns vinte anos…
 
………………………………………………………………
 
Durante um mês amámo-nos.
Foi-se embora depois creio que para Esmirna,
para lá trabalhar, e nunca mais nos vimos.
 
Ter-se-ão desfeado – se vive – os olhos cinzentos;
ter-se-á estragado o belo rosto.
 
Memória minha, guarda-os tu tais como eram.
E, memória, o que podes deste meu amor,
o que podes traz-me de volta esta noite.
 
 
 
 
konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994




10 dezembro 2020

federico garcia lorca / dois marinheiros na margem

 
 
I.
 
Trouxe no seu coração
um peixe do Mar da China.
 
Às vezes vê-se passar
diminuto nos seus olhos.
 
Esquece, sendo marinheiro,
os bares e as laranjas.
 
Olha a água.
 
 
II
 
Tem a língua de sabão.
Lava as palavras e cala-se.
 
Mundo liso, mar frisado,
cem estrelas e um barco.
 
Viu as varandas do Papa
e doirados seios de cubanas.
 
Olha a água.
 
 


federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013




09 dezembro 2020

edgar lee masters / richard bone

 
 
Quando vim para Spoon River
não sabia se aquilo que me diziam
era falso ou verdadeiro.
Traziam-me o epitáfio
e enquanto eu trabalhava eles cirandavam pela oficina
e diziam «Era tão boa pessoa», «Era encantador»
«Não havia mulher mais afável», «Era um verdadeiro cristão».
E eu cinzelava na pedra o que eles me pediam,
ignorando por completo a verdade.
Mais tarde, à medida que convivia com a gente da terra,
já sabia se os epitáfios que me encomendavam
correspondiam ou não à vida do defunto.
Mas continuava a cinzelar aquilo para que me pagavam,
tornando-me cúmplice das falsas crónicas
na pedra das lápides,
tal como faz o historiador que escreve
sem conhecer a verdade,
ou porque alguém o persuade a esconde-la.
 

 
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003




08 dezembro 2020

adonis / seis notas do lado do vento

 
 
6
 
                Geograficamente, pertenço a um país situado na metade oriental do mundo. Mas se sou nativo desse Oriente, é antes de mais porque crio o meu próprio Oriente. Não lhe pertenço senão na medida em que ele próprio me pertence. Esse Oriente é ao mesmo tempo memória e esquecimento, presença e ausência. Afirma o caos de que não se sabe se é a argila ou a mão, a luz ou a noite, o nada ou o tudo. O Oriente para mim é o indefinível, a extensão vaga, o homem na sua errância original. Quando penso nele, interrogo-me: a poesia, nos seus múltiplos modos, pode não significar esse Oriente?
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016




 

07 dezembro 2020

nuno júdice / carta aos que ficam

 
 
As sensações destruídas restauram as fronteiras
do Corpo. Num largo interstício de tempo
a consciência cria o ócio e o seu reverso. Talvez
um faro animal sugerisse um trabalho diferente
sobre as estrofes e as palavras. No entanto,
os que ficam (e sobrevivem) ocupar-se-ão de tudo.
Eles não sofrem o estrangulamento húmido
da manhã.
 
Penso nas faculdades d a analogia, nos defeitos
Que separam a compreensão da vontade. (Seja
– demasiado abstracto. É assim o poema. Nada
De precipitações materiais, nem de tacto,
nem dos outros quatro sentidos. O acaso burguês
do silêncio não passa aqui de uma terrível
coincidência, de uma vertigem no interior
dos códigos.)
 
A transformação do Ser é um instante de repouso.
 
 
nuno júdice
o mecanismo romântico da fragmentação
editorial inova
1975

 




06 dezembro 2020

maria-mercè marçal / todo o sangue, todo o sal em ti

 
 
Todo o sangue, todo o sal em ti.
Sombras além, os seus olhos me assendam
por caminhos claros – trigo, pão, sulco.
Sombras aquém, os meus lábios machucam
as bordas do amor, tantos velhos roxos
abrasam minha língua e gengiva.
Seguir-te, amor, seguir a sua mão
pequena – doce e dura! Mas a asa
de qual noite… as garras… qual falcão?
E assim eu te arrasto até ao meu deserto.
 
 
 
 
maria-mercè marçal
desglaç / degelo
tradução meritxell hernando marsal
e beatriz regina guimarães barboza
editora urutau
2019




05 dezembro 2020

jorge melícias / todo o horror é uma interpelação à beleza

 
 
Todo o horror é uma interpelação à beleza.
E só à beleza vai buscar o seu referente.
 
Tudo o mais deverá ser imputado a quem vê:
a rapina
de um campo de batalha
 
ou os mastins
cruzando a ternura da devastação.
 
 
jorge melícias
felonia (2013)
a oratória dos mansos
porto editora
2020