05 dezembro 2020

jorge melícias / todo o horror é uma interpelação à beleza

 
 
Todo o horror é uma interpelação à beleza.
E só à beleza vai buscar o seu referente.
 
Tudo o mais deverá ser imputado a quem vê:
a rapina
de um campo de batalha
 
ou os mastins
cruzando a ternura da devastação.
 
 
jorge melícias
felonia (2013)
a oratória dos mansos
porto editora
2020

 



04 dezembro 2020

jennifer clement / a casa nocturna

 
 
Aqui, para falar verdade,
não há cabides para os meus braços,
 
armários para as minhas pernas,
ganchos para as minhas mãos.
 
À noite na Casa Nocturna
não há prateleira para a minha sombra.
 
Aqui, vou dormir
vestida com o meu corpo.
 
 
 
jennifer clement
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020




 

03 dezembro 2020

vladimir maiakóvski / insignificâncias

 
 
Exibirei a série de cores da minha imaginação como a cauda de um
       pavão,
entregarei a minha alma a um enxame de rimas desconhecidas.
Quero ainda ouvir nas colunas dos jornais rezingar
aqueles
que com o focinho zurzem as raízes
do carvalho que os alimenta.
 
 
vladimir maiakovski
33 poesias
trad. adolfo luxúria canibal
edições snob
2019

 




02 dezembro 2020

claudio rodríguez / céu

 
 
Agora sim preciso mais que nunca
de olhar o céu. Já sem fé, sem ninguém,
findo este seco meio-dia, levanto
os olhos. E é a mesma verdade de antes,
embora a testemunha seja outra.
Riscos de uma aventura já sem lendas
nem anjos, e nem sequer esse azul
da minha pátria. Pagaria para
sorver o ar, erguer os olhos, ver
sem recompensa, aceitar uma graça
que não cabendo nos sentidos dá
saúde nova, alívio, ocupação.
Troco pelo amor o dom, esta beleza
que não mereço nem ninguém merece.
Preciso hoje do céu mais que nunca.
Não para me salvar, para não estar só.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019





 

01 dezembro 2020

marin sorescu / historioterapia

 
 
 
Se ando com insónias,
À noite, antes de me deitar
Tomo um atlas histórico
Com um pouco de água.
 
Enquanto espero o efeito,
Sigo com o dedo
O império dos hititas,
Mas após um momento
Tenho de recomeçar.
 
Porque, de facto, o império dos hititas
É o império dos egípcios,
Ah, não, o dos assírios…
Dos medo-caldeus…
Dos persas…
 
Se as coisas são assim, penso,
Também eu posso dormir
Tranquilo.
 
 


marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997

 



30 novembro 2020

maria victoria atencia / história

 
 
     Oh transe dos que amo, vivido em minha pele:
sê benigno comigo.
Se está em todo o fim
a pegada do início,
deixa-me acordada folgar com esta minha história
o resto da minha morte.
 
 
 
 
maria victoria atencia
antologia poética
el coleccionista
tradução josé bento
assírio & alvim
2000




29 novembro 2020

antónio josé forte / um homem

 
 
De repente
como uma flor violenta
um homem com uma bomba à altura do peito
e que chora convulsivamente
um homem belo minúsculo
como uma estrela cadente
e que sangra
como uma estátua jacente
esmagada sob as asas do crepúsculo
um homem com uma bomba
como uma rosa na boca
negra surpreendente
e à espera da festa louca
onde o coração lhe rebente
um homem de face aguda
e uma bomba
cega
surda
muda
 
 
 
antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m. pereira
2003





28 novembro 2020

maria velho da costa / (dom se bastião)

 
 
Todas as coisas revêm a seu termos
se mantido o começo
o seu (de cada uma) pedúnculo,
sinal; fiel a si só quem outrem ladeia
no recreio de achá-lo só contíguo
ao desejado, o longes,
desfeitos assim lios, tramas
(ter, ter, só do engano e não da jorna).
 
Que, sob a mesma traça,
mão que desenhe o sacro de seu nome
praça de si condigna queira
e laude como, à ida,
e perseguindo a encoberta desavinda vinda,
a pele lhe não foi raias de mortal.
 
Onde achar paradouro do ir indo
que as mesmas vascas agasalhe e cumpra?
 
O olhar permutado, a líquida juntura
não congelada porque bem fugida,
o integral dum sim já denegado,
o tão de si senhor que em desistir-se tento tenha
e embrumado (nunca por nunca certo)
vagueie um solidíssimo ficar?
 
Conjugar montaria sem quebreiras
no quadrado de cama jugulada,
(a terra em trevas);
amar redondo (em giração) e a eito;
casal que por fendido
a casa casta aberta e hoste rotornante
pátria dos pés crescentes caminheiros faça.
 
 
 
 
maria velho da costa
desescrita
afrontamento
1972
 



27 novembro 2020

carlos saraiva pinto / atiras um livro

 
 
atiras um livro
à profundidade da água
a incerteza desagua
 
gostava de arrumar tudo
os passos que dava
um pensamento heróico de absolutos
sentado naquele alpendre
coberto de orvalho
de onde via o mar
 
reúnem-me os livros
para quebrar os pecíolos
de um quotidiano
 
mas a solidão de um irmão
não é igual à ambição de outros
 
lembra a adolescência
quando colhíamos
açucenas dos naufrágios
 
e descobríamos quando o mar
retirava às dunas um navio ferrugento.
 
enquanto guiava pelas montanhas
ao lado dava-lhe substantivos.
 
trazer até tão tarde
a luz cansa.
em breve chega o outono,
a dobra dos lençóis,
as crianças da escola,
a oração dos rostos.
 
sabes, agora,
que a vida
é um sonho desnecessário.
 
também se vive no campo.
 
os sentimentos de culpa
não nos devoram
as entranhas
 
nem vão aos funerais
os príncipes da igreja.
 
 


carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001




 

26 novembro 2020

artur do cruzeiro seixas / não são cabelos


 

Não são cabelos
nem algas
nem o vento
o que prende estas mãos
no rio barrento
 
Tu estás
onde te sustento.
 
Áfricas, 57
 
 

cruzeiro seixas
viagem sem regresso
tiragem limitada
2001
 


 




25 novembro 2020

josé gomes ferreira / neste momento

 
 
I
 
Neste momento
um pássaro qualquer
canta, explica as flores
perto da margem dum rio.
 
Nunca ouvi esse pássaro cantar
nem sei onde o rio corre…
 
Mas todas as noites no meu quarto
tento aprender de cor
essa melodia que não ouço
– sentindo o coração pesado
como um pássaro morto.
 
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972





24 novembro 2020

jack gilbert / para ver se algo vem depois

 
 
Não há nada aqui no cimo do vale.
Céu e manhã, silêncio e o cheiro seco
da pesada luz solar na pedra, por toda a parte.
Cabras, ocasionalmente, e o som dos galos
no vivo calor onde ele vive com a mulher
morta e a pureza. Tentando ver se algo
vem depois. Perguntando-se se terá estagnado.
Talvez, pensa, seja como o Nó: sempre
que o guião pede dança, faça o actor o que fizer
é uma dança. Se permanecer quieto, está a dançar.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
DeStrauss
2020





23 novembro 2020

pat boran / a planta

 
 
 
Na praia em Malahide
o casal jovem num jogo estranho
com paus e fitas, andando para a frente e para trás,
para trás outra vez – sem bola à vista – está apenas
 
a planear a casa que tenciona construir,
as paredes e as entradas marcadas na areia húmida,
indo de quarto imaginado para quarto
sob o sol a pôr-se, a lua a nascer.
 
 
pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018