16 julho 2020

fabio weintraub / hotel




Voltei depois de quinze anos
Queria rever meus pais
assentar praça
arrumar marido

Arrumei um diretor
que afaguei por uma década
e ele saiu à francesa
(por um triz não meti
Uma bala na cabeça)

Já tentei me proteger
Num colar carregava
os ossos do meu avô
e uma safira em meus dentes
(o colar acabei dando, a pedra
no hospital me roubaram)

Nasci girino:
operado antes de um ano
deprimido aos cinco
dopado aos doze

Por ser gago e gay
sempre me humilharam
Tia Rana me protegia
Morreu cedo porque me amava

Não posso comer em público
mastigo como quem defeca
A conta é mamãe quem paga

Barriga de mãe
é o hotel mais caro do mundo


fabio weintraub
telhados de vidro n.º 19
maio de 2014
averno
2014







15 julho 2020

sophia de mello breyner andresen / as casas



Há sempre um deus fantástico nas casas
Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contém todo o vento dos espaços.


sophia de mello breyner andresen
obra poética I
dia do mar 1947
caminho
1999











14 julho 2020

josé carlos ary dos santos / soneto presente



Não me digam mais nada senão morro
aqui     neste lugar     dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.

Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer     eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo     os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que for o meu.


ary dos santos
vinte anos de poesia
resumo 1972
círculo de leitores
1983







13 julho 2020

joaquim manuel magalhães / o aqueduto



O aqueduto,
côncavo e desafinado,
singra.

Singulares o indulto e o alqueire.
O baloiço broca a representação.
Assinalam a derrota.

Amei muita vez amei-te.
Dissimulei deriva, nocivo,
feliz a rédea da albufeira.



joaquim manuel magalhães
para comigo
traço
relógio d´água
2018






12 julho 2020

ricardo reis / a cada qual, como a estatura, é dada



A cada qual, como a estatura, é dada
        A justiça: uns faz altos
        O fado, outros felizes.
Nada é prémio: sucede o que acontece.
        Nada, Lídia, devemos
        Ao fado, senão tê-lo.

20-11-1928




fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946

11 julho 2020

nuno / habituário



Tanta publicidade se fez ao nosso amor
para morrer incógnito, sem um
rectângulo no lado esquerdo dum jornal.

Com os anos, a morte torna-se um hábito.


nuno
livro de visitas
díptico
ed. do autor
2019











10 julho 2020

josé tolentino mendonça / um pequeno tremor



A sua morte não passou de um pequeno tremor
as fúrias gritavam
mas ao longe
dentro das câmaras onde esses gritos
de aranha não se escutam

A sua grandeza era uma quase indiferença
aos desastres

No cimo de si próprio
sustinha objectos improváveis
caminhava pelo fogo
sem desordem
sem desejo doutro passo
uma forma de pudor era nele
a acalmia

sem ele saber as palavras
deslizavam para um lugar sem perigos
mas também sem palavras



josé tolentino mendonça
a noite abre meus olhos
(poesia reunida)
assírio & alvim
2006






09 julho 2020

charles bukowski / aviso



sobre a tua boca vermelha e escurecida gritam pássaros
                                                                      selvagens
e aquários de peixes nadam nas suas selvas,
uma manhã de China, um meio-dia ressequido
                                               de machados e
bruxas;
anseias por um sol infecto de homens e madeixas de
fibra a chamar o meu nome;
atenção, não sou o tontinho do teu marido,
sou o teu amante tonto,
e de todos os teus amantes tontos
o último aqui.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018







08 julho 2020

leonard cohen / quando o desejo repousa



Sabes que estou a olhar para ti
sabes em que estou a pensar
sabes que estás interessada
sou muito hábil
vais esquecer-te de que sou velho
a menos que te queiras lembrar
a menos que queiras ver
o que acontece ao desejo
como ele se torna livre e
desavergonhadamente interessado no amor
por cada mulher
                      e pelas suas meias.
Quando o desejo repousa,
fazem-lhe sinal duas pessoas
distantes sobre uma manta verde
(ou serão as flores do musgo?);
duas pessoas que acenam ao longe
estendidas como coisas
                              que têm de secar
com sorrisos ternos nos
                              rostinhos redondos;
acenam ao desejo
enquanto este repousa em primeiro plano
maciço, tranquilo,
fiel como um cão feito de lágrimas.




leonard cohen
a chama
poemas
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019






07 julho 2020

italo calvino / as cidades e os olhos. 3



Depois de ter caminhado sete dias através dos bosques, quem vai para Bauci não consegue vê-la e no entanto já lá chegou. São as finíssimas andas que se elevam do solo a grande distância umas das outras e se perdem acima das nuvens que sustêm a cidade. Sobe-se com escadotes. No chão os habitantes raramente se mostram: têm já tudo de que precisam lá em cima e preferem não descer. Nada da cidade toca o solo à excepção daquelas pernas compridíssimas de fenicóptero em que assenta e, nos dias luminosos, uma sombra perfurada e angulosa que se desenha na folhagem.

Três hipóteses se põem sobre os habitantes de Bauci: que odeiam a Terra; que a respeitam a ponto de evitar qualquer contacto; que a amam tal como ela era antes deles e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de passa-la em resenha, folha a folha, pedra a pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a sua própria ausência.



italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999







06 julho 2020

e e cummings / xix poemas



[xii]

esta pequena noiva & noivo estão
de pé)numa espécie
de coroa ele vestido
de açúcar preto ela

velada de açúcar branco
levando um bouquet de
flores artificiais esta
açucarada coroa com esta açucarada

pequena noiva & pequeno
noivo nela espécie de estar sobre
um fino anel que está sobre um muito
menos fino muitíssimo mais

largo & mais espécie de anel & cujo
mais espécie de está sobre um
muito mais que muitíssimo
larguíssimo & grossíssimo & especiíssimo

de anel & todos um dois três anéis
são de bolo & tudo protegido com
celofane contra seja o que for(porque
nada realmente existe




e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998





05 julho 2020

pat boran / canivete



A cheirar ainda a laranjas
depois de anos numa gaveta
entre botões, clipes,
envelopes e óculos velhos…

uma prenda tua:
destinado a cortar,
é a coisa que nos liga
de algum modo.


pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018









04 julho 2020

wallace stevens / domingo de manhã



3
Nas nuvens Júpiter teve o seu inumano nascimento.
Mãe nenhuma o amamentou, nenhuma doce terra deu
Movimentos magnânimos à sua mente mítica
Movimentou-se entre nós, como um rei rabugento,
Magnifico, se movimentaria entre as suas corças,
Até que o nosso sangue, misturando-se, virginal,
Som o céu, trouxe tal satisfação ao desejo
Que as próprias corças o discerniram, numa estrela.
O nosso sangue falhará? Ou virá a ser
O sangue do paraíso? E será que a terra
Aparenta tudo o que do paraíso conheceremos?
O céu será então muito mais afável do que agora,
Uma parte de trabalho e uma parte de dor,
E em glória a seguir ao amor constante,
Não este azul divisório e indiferente.

(…)



wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991