24 abril 2020

luís veiga leitão / o silêncio



É mais de terra feito
que doutra matéria e matizes:
Pesa na fronte e no peito
sobre o tumulto das raízes…

E as raízes deitam fora
dedos, mãos, braços,
de plantas plantadas na hora
dos passos longos, dos longos passos…

E das plantas
há tantas
que mal ou bem
ficam no gesto de quem plantou,
à espera do sol que não vem
ou tardiamente chegou.



luís veiga leitão
a bicicleta e outros poemas
associação dos jornalistas e
homens de letras do porto
2012






23 abril 2020

ana hatherly / falas-me em asas



Falas-me em asas,
Em voar…

Não vês que eu não sou nada,
Nem anjo nem pessoa,
Nem ave nem engenho,
Que é totalmente outra
A minha definição?

Eu não sou mais do que o próprio chão…



ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980







22 abril 2020

diogo alcoforado / díptico



1
É tarde e a pele diz o fundo
instante onde somos, o avesso
do trânsito comum, - quase regresso
a quanto, espelhando, é segundo

feroz proposição, risco e fim.
E em nós, sem suporte, vamos indo
no sulco disponível; se, partindo,
por dentro do excesso só assim

havemos nosso nomes, ou nossa parte.
Nem canto nem imagem são bastantes
a quem supôs haver, embora incerta,

verdade que se queira ter por arte.
E o medo persiste onde, errantes,
os pés tocam o chão, a descoberta


2
passagem por que vivos renascemos:
subindo, na confrontação do lume,
escarpas e desvios, - esse cume
mais alto que a nós mesmos o demos,

exacto, como construção secreta.
Por ele nos mudamos; e depressa
a voz fere a noite, atravessa
a boca e a mão que vai directa

ao cimo ou ao corpo mais preciso.
Inesperado dom! e só aí
a perna e a luz correm a par

ou formam novo trilho, indiviso.
E o passo aumenta onde o vi-
tal sopro dá ao termo seu lugar.



diogo alcoforado
hífen 11 maio 1998
o sitio das nascentes
cadernos semestrais de poesia
1998





21 abril 2020

joão almeida / passeio a pé



primeiro a criação
de porcos ao ar livre

depois a barragem
e vacas a pastar

descubro na bosta antiga
esporos vermelhos
e flores muito finas



joão almeida
canto skin
língua morta
2019








20 abril 2020

luís filipe parrado / brecht no exílio



Trago um cajado, precipito um cão grego
pelas ravinas da história.
Conheço quem se dê mal com a vida
e não encontro a entrada do pomar,
a razão do vermelho da maçã.
Mas nem assim estou disposto a entregar
a minha dor à vossa trela.



luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019









19 abril 2020

ruy belo / poema quotidiano



É tão depressa noite neste bairro
Nenhum outro, porém, senhor administrador,
goza de tão eficiente serviço de sol.
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua.
O senhor não calcula, todo o dia,
que festa de luz proporcionou a todos.
Nunca vi – e já tenho os meus anos –
lavar a gente as mãos no sol como hoje

Donas de casa vieram encher de sol
Cântaros, alguidares e mais vasos domésticos.
Nunca em tantos pés
assim humildemente brilhou.
Orientou – diz-se até – os olhos das crianças
para a escola e pôs reflexos novos
nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais.
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca,  misturou-o no pão.
Chegaram a tratá-lo por vizinho.
Por este andar... Foi uma autêntica loucura.
O astro-rei tornado acessível a todos,
ele, que ninguém habitualmente saudava.
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados.
Íamos, vínhamos, entrávamos, não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida, iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós.
Ficou tão triste a gente destes sítios.
Nunca foi tão depressa noite neste bairro.



ruy belo
aquele grande rio eufrates
1961






18 abril 2020

egito gonçalves / o progresso das ciências



Conseguiram encerrar o vento,
retirar a pouco e pouco o ar
e – maravilha – o povo
resiste ainda e vive.

A asfixia é lenta e os que morrem
parecem ir de morte natural.

Hoje porém os sábios consideram
enganosa essa fórmula que reduz
o paciente à condição de peixe triste.

Pois no repouso fictício a onda
aguarda o luar da maré cheia.

Nas manhãs da terra
as manchas de sangue ganham punhos;
a viva carne cobre o inesperado.



egito gonçalves
os arquivos do silêncio
1963





17 abril 2020

albano martins / no centro da volúpia



No centro da volúpia, como essência
e forma, como adorno,
contorno e cerne, é que o voo
se fixa, é que a ave
reside e o canto mora


e morre.



albano martins
a margem do azul
1982









16 abril 2020

elio pecora / a pier paolo pasolini



Ainda a vida
como se fosse um alhures
a habitar no sonho
e esta – de raivas, de esperas,
ainda assim, querida, procurada –
a porta a transpor,
uma véspera, uma paragem.

Ainda a ânsia,
como escura semente
a estrumar, a regar,
e nela o mapa
para seguir viagem.

(Uma tarde, em Sabaudia,
no teu último Verão
– da varanda a tua mãe
chama o mar que avança –
maldizes o alcatrão
dentro da areia, ao longo da ressaca,
e espantas-te com o azeite
que tira as nódoas).



elio pecora
poemas escolhidos
interlúdio (1987)
tradução de simoneta neto
quasi
2008







15 abril 2020

paul éluard / aqui



Uma rua abandonada
Uma rua profunda e nua
Onde os loucos têm menos dificuldade
Que os sensatos a safar-se
Nos dias sem broa e sem carvão

É uma questão de dimensão
N sensatos para um louco
E nada mais para lá da imensa
Maioria do bom senso
Um dia cru sem proporções

A rua tal uma ferida
Que não voltará a fechar-se
Que o domingo torna ainda maior
O céu é um céu de outro lugar
Senhor de uma terra estranha

Um céu cor-de-rosa um céu bem-disposto
A transpirar beleza e saúde
Sobre a rua sem perspectiva
Que me corta o coração em dois
Que me priva de mim próprio

Na rua não se passa nada nem ninguém.



paul éluard
últimos poemas de amor
o duro desejo de durar  1946
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002






14 abril 2020

marta navarro; paola d´agostino / os verões hão-de durar de novo três meses




os verões hão-de durar de novo três meses
os lanches hão-de vir com desenhos animados
a morte há-de ser coisa do primeiro de novembro
as ruas hão-de ser nossas depois da escola
os joelhos hão-de ser tecidos de esfolar
as bicicletas hão-de deixar de precisar de descanso
mãe há-de querer dizer mãos de veludo
e como antigamente há-de ser um lugar vazio de novo



marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014






13 abril 2020

heiner müller / o anjo sem sorte



O ANJO SEM SORTE. Atrás dele o passado dá à costa, acumula entulho sobre as asas e os ombros, um barulho como de tambores enterrados, enquanto à sua frente se amontoa o futuro, esmagando-lhe os olhos, fazendo explodir como estrelas os globos oculares, transformando a palavra em mordaça sonora, estrangulando-o com o seu sopro. Durante algum tempo vê-se ainda o seu bater de asas, ouvem-se naquele sussurrar as pedras a cair-lhe à frente por cima atrás, tanto mais alto quanto mais frenético é o escusado movimento, mais espaçadas quando ele abranda. Depois fecha-se sobre ele o instante: no lugar onde está de pé, rapidamente atulhado, o anjo sem sorte encontra a paz, esperando pela História na petrificação do voo do olhar do sopro. Até que novo ruído de portentoso bater de asas se propaga em ondas através da pedra e anuncia o seu voo.


heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997







12 abril 2020

herberto helder / lenha, legna





Lenha – e a extracção de pequenos astros,
áscuas. De poro a poro,
os electrões das corolas. Somente no mais escuro
não há nada. No escuro, a carne é um buraco
invisual, e o que arde é o pão
no estômago, e nos brônquios
cortadamente
o ar. E o carbono devora sono a sono a inocência
das imagens. O que toca o órgão mais profundo
do sopro não é música
nem chama: apenas um dedo de mármore entre
as têmporas como
uma bala. E enquanto pontas de fogo marcam
a boca, morremos afogados,
no espelho, no rosto. E se a loucura um instante
levanta as pálpebras.
A grande válvula do corpo.
A escuridão, a terra.

Abril, 1980




Legna – e l´estrazione di piccoli astri,
scintile da poro a poro,
gli elettoni delle corolle. Solamente nel più buio
non c´è nulla. Nel buio, la carne è un buco
cieco, e quel che arde è il pane
nello stomaco, e nei bronchi
tagliatamente
l´aria. E il carbónio divora sonno a sonno l´innocenza
delle immagini. Quel che tocca l´organo più profondo
del soffio non è musica
né fiamma: soltanto un dito di marmo tra
le temple come
una pallottola. E mentre punte di fuoco segnano
la bocca, moriamo affogati,
nello specchio, nel viso. E se la follia per un istante
alza le palpebre.
La grande valvola del corpo.
L´oscurità, la terra.


Aprile, 1980



herberto helder
flash
a cura di carlo vittorio cattaneo
empira
roma
1987