24 dezembro 2018

paul éluard / onde é que eu ia?




Faz-se tarde o céu abandona o quarto
Esta noite vou vender as minhas cabras
Caminho atrás de um rebanho
De claridades delicadas
As árvores que me guiam
Fecham-se
Ficam ainda mais seguras
Hoje vou construir uma noite excepcional
A minha noite
Informe como o sol
Toda em colinas redondas sob mãos camponesas
Toda em perfeição em esquecimento de mim próprio

A dançarina imóvel e o peso das suas pernas
Se eu agora a fosse beijar
Suas frívolas cúmplices giram em torno dela
Ondulam alto nas linhas do candelabro
Marcarei de negro o soalho e o tecto
De negro e de repouso de ausência de felicidade
Entre palma e pupila a multidão do prazer
Até no sono se mantém inteira

Esta noite acenderei uma fogueira na neve



paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977







23 dezembro 2018

alberto caeiro / pouco me importa.




Pouco me importa.
Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me importa.

24-10-1917




alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas de alberto caeiro, fernando pessoa
àtica
1946

22 dezembro 2018

fernando echevarría / na aldeia




Na aldeia, os anjos quase que ficam sendo
lugar de paração. Por onde as árvores
só desenvolvem o tempo
na poeira das quelhas sem idade.
O estio mensura-lhes o alento.
E a secura estende-se imutável
pela atenção de ver como o silêncio
isola cada ruído na sua eternidade.
Mas é nos adros, quando o calor o eixo
imobiliza da tarde,
que o anjo das aldeias nos aparece aberto
respeito onde o azul quase que range.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998






21 dezembro 2018

joão vasco coelho / discussão




Agora vejo,
mais nítido que o zero da régua,
os sábados
os domingos de pedra,
assim silenciosos
nas alturas.

Vejo
como o tempo se demora,
em movimentos mínimos,
nas vozes que farejam defeitos.

Agora vejo
o grão adverso,
o dente miúdo lavradio,
dos amores que se trancam em casa,
sem pele alguma,
a discutir viennettas.




joão vasco coelho
eufeme
magazine de poesia
n.º 8 julho/setembro 2018







20 dezembro 2018

carlos poças falcão / a verdade é um dom silencioso




A verdade é um dom silencioso
move-se ou repousa em regiões não devassadas.
Dá-se a ver por vezes em esfinge
ou nessa liberdade que se ajusta bem ao corpo
abotoando a alma mas deixando solto o espírito
– para não travar o voo
para não negar encontro
para cumprir-se todo no instante de viver.



carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018








19 dezembro 2018

juan luis panero / lenha e cinza



Falamos de sórdida política ou de alguém que acaba de
          telefonar,
das mudanças do dia e das rajadas da nortada,
tudo sem importância ou demasiado importante,
por vezes aborrecido e sem dúvida íntimo, pouco grandiloquente.
Depois de tantos anos conhecermos as perguntas e as suas vagas
          respostas,
mas ainda assim surgem as palavras, que se esfumam
como o fumo dos cigarros ou da lareira.
Impassível como a lenha, indecifrável como a cinza,
assisto à tua remota presença – tão próxima –
e sei que os teus lábios e este copo vermelho
apenas anunciam, reflectem, um tempo de derrota.



juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003







18 dezembro 2018

david lehman / interior holandês




Ele gostava da luz do fim de tarde a diminuir
Na sala de estar e não acendia
As luzes até passar das oito.
A mulher queixava-se, chamava-lhe sombrio, mas
Não era um caso de melancolia; gostava apenas
Do aspecto das coisas no ar cada vez mais escuro
Tão gradual e imperceptivelmente que parecia
O próprio ambiente em que vivemos. Todos os homens
E mulheres merecem um momento verdadeiro de grandeza
E este era o seu, este interior Holandês, onde se entrou,
Que se possui, tão calmo e contudo tão cheio
De detalhes: as roupas despidas do casal espalhadas
Nas costas das poltronas, o cão atrás dum sapato,
A janela bem aberta, a luz do fim de tarde.



david lehman
uma echarpe no banco da frente
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017







17 dezembro 2018

silvia ugidos / os dias traidores




São esses que nos passam pelas mãos
com gestos quotidianos,
onde nunca acontece
nada mais senão a vida
com minúscula, quero dizer.
Os do chá com limão enquanto lá fora chove
e se fuma no café para passar a tarde,
os do regresso a casa pelas ruas do costume.
São os dias das coisas pequenas
que secretamente pactuam connosco
o peso dos anos.
Os dias traidores:
silenciosos, amáveis
são o futuro que pouco a pouco aproximam
o oculto abraço da morte
com a mesma doçura
com que os braços do amigo acolhem o meu cansaço.



silvia ugidos
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000








16 dezembro 2018

florbela espanca / ao vento




O vento passa a rir, torna a passar,
Em gargalhadas ásperas de demente;
E esta minh’alma trágica e doente
Não sabe se há-de rir, se há-de chorar!

Vento de voz tristonha, voz plangente,
Vento que ris de mim, sempre a troçar,
Vento que ris do mundo e do amar,
A tua voz tortura toda a gente! ...

Vale-te mais chorar, meu pobre amigo!
Desabafa essa dor a sós comigo,
E não rias assim ! ... Ó vento, chora!

Que eu bem conheço, amigo, esse fadário
Do nosso peito ser como um Calvário,
E a gente andar a rir pla vida fora!! ...


florbela espanca
sonetos
livraria bertrand
1981






15 dezembro 2018

maria gabriela llansol / o raio sobre o lápis





XIII

     Aqui, tudo o que é estranho é imediatamente possível:
     o encontro com um pequeno sapo perdido, a tua aparição que surge ainda sem elo com a palavra. Uma velha bilha que se transforma em cornucópia de abundância, dizer de amor ao meu amante através de ovelhas, e misturando-me com o rebanho.
     Com esta resposta ao amor do meu amante por mim, com esta resposta ao amor do meu amante por ele,       e aos outros amantes que teremos, e que não terão igualmente fim,


     descemos, através de um arruamento branco, da plataforma da serra de Ossa.



maria gabriela llansol
o raio sobre o lápis
livro de artistas
europalia 91
1991









14 dezembro 2018

sophia de mello breyner andresen / espera-me




Nas praias que são o rosto branco das amadas mortas
Deixarei que o teu nome se perca repetido

Mas espera-me
Pois por mais longos que sejam os caminhos
Eu regresso.



sophia de mello breyner andresen
coral
obra poética
assírio & alvim
2015










13 dezembro 2018

wislawa szymborska / amor feliz



Amor feliz. Será normal,
será sério, será útil? —
que tem o mundo a ver com duas pessoas
que não vêem o mundo?

Erguidos ao seu céu sem mérito nenhum,
os melhores entre milhões e convencidos
que assim tinha que ser — a premiar o quê? Nada;
de algum ponto cai a luz —
e porquê logo sobre estes e não outros?
Ofenderá isto a justiça? Sim.
Perturbará os princípios estabelecidos com cuidado?
Derrubará do seu púlpito a moral? Perturba e derruba.

Olhem-me bem estes felizardos:
se ao menos se mascarassem um pouquinho,
fingissem melancolia dando assim algum ânimo aos amigos!
Ouçam bem como se riem — é um insulto.
A linguagem que usam — entendivel, pelos vistos.
E aquelas cerimónias, etiquetas,
obrigações rebuscadas um para com o outro —
parece mesmo um acordo nas costas da humanidade.

É difícil até de prever no que daria
se um tal exemplo pudesse ser seguido.
Com que é que poderiam contar as religiões, a poesia,
de que nos recordaríamos, de que desistiríamos,
quem quereria pertencer ao círculo?

Amor feliz. Assim terá que ser?
Tacto e bom senso mandam omiti-lo
como a um escândalo nas altas esferas da Existência.
Magníficas crianças nascem sem a sua ajuda.
Nunca por nunca ele poderia povoar a terra
já que tão raro é acontecer.

Deixem que quem não conheceu o amor feliz
afirme que não há amor feliz.

Com esta crença mais leve lhes será tanto viver como morrer.


wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







12 dezembro 2018

sylvia plath / papoilas em outubro




Esta manhã nem mesmo as nuvens entre o sol podem pôr estas
     saias.
Nem a mulher na ambulância
De coração vermelho a florescer assombrosamente através do
     casaco –

Uma oferenda, uma oferenda de amor
Jamais pedida
Nenhum céu

Esmaiado e em chamas
Pondo a trabalhar o seu monóxido de carbono, nenhuns olhos
Estáticos, em sentido sob chapéus de coco.

Ó meu Deus, o que sou eu
Possam as últimas bocas gritar alto
Numa floresta de gelo, num amanhecer de centáureas.


sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996