18 dezembro 2018

david lehman / interior holandês




Ele gostava da luz do fim de tarde a diminuir
Na sala de estar e não acendia
As luzes até passar das oito.
A mulher queixava-se, chamava-lhe sombrio, mas
Não era um caso de melancolia; gostava apenas
Do aspecto das coisas no ar cada vez mais escuro
Tão gradual e imperceptivelmente que parecia
O próprio ambiente em que vivemos. Todos os homens
E mulheres merecem um momento verdadeiro de grandeza
E este era o seu, este interior Holandês, onde se entrou,
Que se possui, tão calmo e contudo tão cheio
De detalhes: as roupas despidas do casal espalhadas
Nas costas das poltronas, o cão atrás dum sapato,
A janela bem aberta, a luz do fim de tarde.



david lehman
uma echarpe no banco da frente
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017







17 dezembro 2018

silvia ugidos / os dias traidores




São esses que nos passam pelas mãos
com gestos quotidianos,
onde nunca acontece
nada mais senão a vida
com minúscula, quero dizer.
Os do chá com limão enquanto lá fora chove
e se fuma no café para passar a tarde,
os do regresso a casa pelas ruas do costume.
São os dias das coisas pequenas
que secretamente pactuam connosco
o peso dos anos.
Os dias traidores:
silenciosos, amáveis
são o futuro que pouco a pouco aproximam
o oculto abraço da morte
com a mesma doçura
com que os braços do amigo acolhem o meu cansaço.



silvia ugidos
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000








16 dezembro 2018

florbela espanca / ao vento




O vento passa a rir, torna a passar,
Em gargalhadas ásperas de demente;
E esta minh’alma trágica e doente
Não sabe se há-de rir, se há-de chorar!

Vento de voz tristonha, voz plangente,
Vento que ris de mim, sempre a troçar,
Vento que ris do mundo e do amar,
A tua voz tortura toda a gente! ...

Vale-te mais chorar, meu pobre amigo!
Desabafa essa dor a sós comigo,
E não rias assim ! ... Ó vento, chora!

Que eu bem conheço, amigo, esse fadário
Do nosso peito ser como um Calvário,
E a gente andar a rir pla vida fora!! ...


florbela espanca
sonetos
livraria bertrand
1981






15 dezembro 2018

maria gabriela llansol / o raio sobre o lápis





XIII

     Aqui, tudo o que é estranho é imediatamente possível:
     o encontro com um pequeno sapo perdido, a tua aparição que surge ainda sem elo com a palavra. Uma velha bilha que se transforma em cornucópia de abundância, dizer de amor ao meu amante através de ovelhas, e misturando-me com o rebanho.
     Com esta resposta ao amor do meu amante por mim, com esta resposta ao amor do meu amante por ele,       e aos outros amantes que teremos, e que não terão igualmente fim,


     descemos, através de um arruamento branco, da plataforma da serra de Ossa.



maria gabriela llansol
o raio sobre o lápis
livro de artistas
europalia 91
1991









14 dezembro 2018

sophia de mello breyner andresen / espera-me




Nas praias que são o rosto branco das amadas mortas
Deixarei que o teu nome se perca repetido

Mas espera-me
Pois por mais longos que sejam os caminhos
Eu regresso.



sophia de mello breyner andresen
coral
obra poética
assírio & alvim
2015










13 dezembro 2018

wislawa szymborska / amor feliz



Amor feliz. Será normal,
será sério, será útil? —
que tem o mundo a ver com duas pessoas
que não vêem o mundo?

Erguidos ao seu céu sem mérito nenhum,
os melhores entre milhões e convencidos
que assim tinha que ser — a premiar o quê? Nada;
de algum ponto cai a luz —
e porquê logo sobre estes e não outros?
Ofenderá isto a justiça? Sim.
Perturbará os princípios estabelecidos com cuidado?
Derrubará do seu púlpito a moral? Perturba e derruba.

Olhem-me bem estes felizardos:
se ao menos se mascarassem um pouquinho,
fingissem melancolia dando assim algum ânimo aos amigos!
Ouçam bem como se riem — é um insulto.
A linguagem que usam — entendivel, pelos vistos.
E aquelas cerimónias, etiquetas,
obrigações rebuscadas um para com o outro —
parece mesmo um acordo nas costas da humanidade.

É difícil até de prever no que daria
se um tal exemplo pudesse ser seguido.
Com que é que poderiam contar as religiões, a poesia,
de que nos recordaríamos, de que desistiríamos,
quem quereria pertencer ao círculo?

Amor feliz. Assim terá que ser?
Tacto e bom senso mandam omiti-lo
como a um escândalo nas altas esferas da Existência.
Magníficas crianças nascem sem a sua ajuda.
Nunca por nunca ele poderia povoar a terra
já que tão raro é acontecer.

Deixem que quem não conheceu o amor feliz
afirme que não há amor feliz.

Com esta crença mais leve lhes será tanto viver como morrer.


wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







12 dezembro 2018

sylvia plath / papoilas em outubro




Esta manhã nem mesmo as nuvens entre o sol podem pôr estas
     saias.
Nem a mulher na ambulância
De coração vermelho a florescer assombrosamente através do
     casaco –

Uma oferenda, uma oferenda de amor
Jamais pedida
Nenhum céu

Esmaiado e em chamas
Pondo a trabalhar o seu monóxido de carbono, nenhuns olhos
Estáticos, em sentido sob chapéus de coco.

Ó meu Deus, o que sou eu
Possam as últimas bocas gritar alto
Numa floresta de gelo, num amanhecer de centáureas.


sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996








11 dezembro 2018

anna akhmatova / tantas vezes maldizia



Tantas vezes maldizia
Este céu e esta terra,
As mãos do moinho com musgo
Agitando-se pesadas!
No anexo está um morto,
Hirto e grisalho, num banco,
Como há três anos atrás.
Os ratos roem os livros,
Para a esquerda verga a chama
Da vela de estearina.
E canta e canta odioso
O guizo de Níjni-Novgorod
Uma singela canção
Da minha alegria amarga.
E pintadas vivamente
Erguem-se rectas as dálias
Pelo carreiro de prata
Com caracóis e absinto.
Foi assim: a reclusão
Tornou-se segunda pátria,
Mas da primeira não ouso
Nem nas preces recordar.

Julho de 1915
Slepnevo




anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003







10 dezembro 2018

steve klepetar / mille feuille




Ando à procura de alguém nesta
rua deserta, perto dum café onde
um dia comemos o melhor Mille Feuille

de sempre, mas ela desapareceu há horas,
muito depois de todos os camiões passarem,
os autocarros arquejarem e se sumirem no calor.




steve klepetar
o filho da bebedora de café
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018










09 dezembro 2018

alberto caeiro / não basta abrir a janela





Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

4-1923



alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas de alberto caeiro, fernando pessoa
àtica
1946






08 dezembro 2018

eugénio de andrade / branco no branco




XLIX

As casas entram pela água,
a porta do pátio aberta à estrela
matutina, em flor
os espinheiros,

nas janelas apenas a cintilação
juvenil do mar antigo,
esse que viu ainda as naves
do mais errante de quantos marinheiros

perderam norte e razão
a contemplar a reflectida estrela
da manhã:
só na morte não somos estrangeiros.




eugénio de andrade
branco no branco
poesia
fundação eugénio de andrade
2000






07 dezembro 2018

juan gelman / nota XXII




     ossos que deram fogo a tanto amor
exilados do sul sem casa ou número
agora dessonham tanto sonho destruído
uma fadiga distrai sua alma

     passeiam pela dor como crianças
sob a chuva alheia / uma mulher
fala em voz baixa com seus pedacinhos
como embalando-os não ser / ou nunca

     partiram do país ou pátria ou puma
que percorria a cabeça como
dita infeliz / país de memória

     onde nasci / morri / tive substância /
ossinhos que juntei para acender /
terra que me enterrava para sempre



juan gelman
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. josé bento
assírio & alvim
2001






06 dezembro 2018

richard zenith / só coisas boas



Nas ruas das grandes cidades do Brasil
Ninguém carrega consigo uma história.
Os rapazes que se esfregam pelo bar à esquina
Respiram leveza, de camisas brancas
Desabotoadas. Já têm idade para
Gostar de cerveja mas ainda não sentem o barulho
E os escapes dos autocarros parando pela Avenida
Abaixo. E nem sequer vêem os mendigos
Estropiados batendo o passeio largo e sujo.
Porém eles (os rapazes) por vezes dão-lhes
Dinheiro, como se fosse natural, ou mesmo,
Uma vez por outra, uma cerveja. E então eles
(Os mendigos) vão andando de mãos
Estendidas, como se fossem elas
A oferecer a vida ao mundo.

Pago a minha cerveja e vou atrás deles
Na torrente pedestre, onde todos
São exactamente o que eu vejo à luz sem nuvens
Do sol subtropical. Esbarro em alguém
E instintivamente volto-me
Com uma desculpa muda, por sua vez recebida
Pela linguagem universal de olhos e mãos,
Que foi sem querer,
Aconteceu, e eu avanço, perdido
De repente no presente entre tantos como eu.



richard zenith
trad. maria irene ramalho
poesia do mundo/2
edições afrontamento
1998