02 abril 2017

bernardo soares / as coisas sonhadas só têm o lado de cá...



As coisas sonhadas só têm o lado de cá... Não se lhes pode ver o outro lado... Não se pode andar à roda delas... O mal das coisas da vida é que as podemos ir olhando por todos os lados... As coisas de sonho só têm o lado que vemos... Ter amores só puros como as nossas almas...
s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982






01 abril 2017

al berto / um dia a manhã limpa perturba



[4]

Um dia a manhã limpa perturba
o brilho molhado da boca -alastra
cicatrizando a fonte maligna do sangue

a fala ergue-se clara -sem dor
o tronco da árvore reverdece e
o mistério do voo dos pássaros sobe
á raiz viva do corpo -húmus

seiva fogo fundem lentamente -poeira
de lume vibrando
árvore volátil nascida no fundo da água
intensa - de novo
a respiração



al berto
o último coração do sonho
editora quasi
2000






31 março 2017

federico garcia lorca / aldeia

 
Sobre o monte nu
um calvário.
Água clara
e olivais centenários.
Pelas vielas
homens embuçados
e nas torres
cataventos girando.
Eternamente
girando.
Oh, aldeia perdida,
na Andaluzia do pranto!
 
 
 
federico garcia lorca
antologia da poesia espanhola contemporânea
trad. de josé bento
assírio & alvim
1985




30 março 2017

jorge luís borges / a trama



No segundo pátio
a torneira periódica goteja,
fatal como a morte de César.
Ambas são peças da trama que abarca
o círculo sem princípio nem fim,
a âncora do fenício,
o primeiro lobo e o primeiro cordeiro,
a data da minha morte
e o teorema perdido de Fermat.
Essa trama de ferro
pensaram-na os estóicos como um fogo
que morre e que renasce como a Fénix.
É a grande árvore das causas
e dos ramificados efeitos;
nas suas folhas estão Roma e Caldeia
e o que vêem os rostos de Jano.
O universo é um dos seus nomes.
Nunca ninguém o viu
e nenhum homem pode ver outra coisa.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a cifra (1981)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



29 março 2017

nuno vidal / coda



Quando falas duma estrela
falas da ruiva, da polícia,
de ti? Falas da falta.
Uma cova de leite.
Pode ser um brilho que prende
o casaco, um talismã de procela.
Aquilo fica connosco até
de madrugada, quando reparamos
obriga-nos a não dormir
e por vezes tossimos um pouco.

Mas ninguém sabe da cera
iluminada por trás, pensa
cada fervor de solitário.
Depois vem a ver uma fotografia
de novecentos e sessenta e sete
e lá está bem melhor. Com
semelhante sediela se ata
o gosto para versos para ninguém.
Há uma rapariga que vê.
Liga com a sua infância
e vai tornar a filosofia inútil.


nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




28 março 2017

gil de carvalho / amazonas



Em Manaus, por esta altura nadavas
Respirando longe do jacaré,
Na posse dos segredos da beleza
O fumo dos camiões era uma seca
Homenagem, quase intacta, à floresta.
E o sabiá, forasteiro,
Sabia tanto, que era
O princípio, o meu
Olhar seguia-te, voava alto,
Eras nova, esguia, carne do rio:
Piranhas sangravam o boi
Mas quem é que via?
Em Manaus nadavas por essa altura
E eu também, nas águas sem fumo
De uma calçada fria. Carreto
Do exílio que desfaz o teu cabelo
Vermelho – sem medo da agonia.


gil de carvalho
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




27 março 2017

pier paolo pasolini / poemas mundanos



21 de Junho de 1962


Trabalho o dia todo como um monge
e à noite vagueio, como um gato
à cata de amor… Vou sugerir
à Cúria que me santifique.
Com efeito, respondo à mistificação
com a mansidão. Olho com olhos
de imagem os que vão linchar-me.
Observo o meu massacre com a coragem
serena de um sábio. Pareço
sentir ódio, mas escrevo
versos cheios de amor atento.
Estudo a perfídia como um fenómeno
fatal, como se dela não fosse objecto.
Tenho pena dos jovens fascistas,
e aos velhos, que são para mim formas
do mais horrível mal, oponho
apenas a violência da razão.
Passivo como um pássaro que, voando,
tudo vê, e, no seu voo para o céu,
leva no coração a consciência
que não perdoa.



pier paolo pasolini
de «la realtà»
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005




26 março 2017

camilo pessanha / quem poluiu...



Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer - meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear - tábua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...

Ó minha pobre mãe!... Nem te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.


camilo pessanha






25 março 2017

miguel torga / perplexidade



Hesito no caminho.
Ninguém segue este rumo…
É noutra direcção
Que o vento leva o fumo
Das paixões…
Chegar, sei que não chego,
De nenhuma maneira;
Mas queria ao menos ir no lírico sossego
De quem não se enganou na estrada verdadeira.

E não vou.
Cada vez mais sozinho
Na solidão,
Duvido da certeza dos meus passos.
Vejo a sede ancestral da multidão
Voltar costas às fontes que pressinto,
E fico na mortal indecisão
De afirmar ou negar o cego instinto
Que me serve de guia e de bordão.


miguel torga
câmara ardente
1962





24 março 2017

saint-john perse / estrofe



I
…Estreitos são os barcos, estreita a nossa cama.
Imensa a extensão das águas, mais vasto o nosso império
Nos quartos fechados do desejo.

Entra o Verão, que vem do mar. ao mar apenas, diremos
Que estrangeiros fomos nas festas da Cidade, e que astro su-
bindo das festas submarinas
                Veio certa noite, sobre a nossa cama, farejar a cama do divino.

                Em vão a terra vizinha traça para nós a sua fronteira. Uma
mesma vaga pelo mundo, uma mesma vaga desde Tróia
                Rola a sua anca para nós. Num mar alto longe de nós foi
outrora  impresso este sopro…
                E certa noite foi grande o rumor nos quartos: a própria
morte, com um som de búzios, não se faria ouvir!

                Amai, ó casais, os barcos; e o mar alto dentro dos quartos!
                A terra chora certa noite os seus deuses, e o homem caça as
bestas fulvas; as cidades gastam-se, as mulheres sonham… Que
para sempre paire à nossa porta
                Essa alvorada imensa que se chama mar – elite de asas e le-
vantamento de armas, amor e mar do mesmo leito, amor e mar
no mesmo leito –

e de novo este diálogo nos quartos:



saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016






23 março 2017

tamura ryuichi / país longínquo



O meu sofrimento
É simples
     Tal como para cuidar de um animal de um país longínquo
     Não é necessário um tratador

A minha poesia
É simples
     Tal como para ler uma carta de um país longínquo
     Não são necessárias lágrimas

As minhas alegrias e penas
Ainda são mais simples
     Tal como para matar um homem de um país longínquo
     Não são necessárias palavras


tamura ryuichi
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001


22 março 2017

rené char / canção do veludo côtelé



O dia dizia: «Tudo o que sofre me acompanha, agarra-se a mim, quer ser feliz. Testemunhas da minha comédia, segurai meu pé alegre. Receio o meio-dia e a sua seta merecida. Não há nada que nos favoreça aos seus olhos. Se o meu desaparecimento anunciar a vossa grandeza, as águas frias do Verão apenas me hão-de receber melhor.»

A noite dizia: «Os que me ofendem morrem jovens. Como não os amar? Pradaria de todos os meus instantes, não podem pisar-me. A sua viagem é a minha viagem e eu permaneço obscuridade.»

Havia entre os dois um mal que os despedaçava. O vento ia de um ao outro; o vento ou nada, as fraldas do rude estofo e a avalanche das montanhas, ou nada.


         
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000




21 março 2017

luis muñoz / a moral ordinária



Não foi somente provar, mas provar-se.
Foi um cheiro e um tacto,
uma penugem,
pegar com as palavras as carícias,
consentir-se na forma de um corpo semelhante,
nadar nesse espelho de prata temperada,
saber que estava nele, no seu destino.

Se se deitou na sua cama ao meio-dia,
Depois de mergulhar no prazer de outro,
se transportou um calor a outro calor
e se passou na rua pela moral ordinária,
a tenaz de gelo de volta do trabalho,
soube que não voltava a retroceder no seu caminho,
soube que para sempre
atravessava um cerco.


luis muñoz
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000