22 março 2017

rené char / canção do veludo côtelé



O dia dizia: «Tudo o que sofre me acompanha, agarra-se a mim, quer ser feliz. Testemunhas da minha comédia, segurai meu pé alegre. Receio o meio-dia e a sua seta merecida. Não há nada que nos favoreça aos seus olhos. Se o meu desaparecimento anunciar a vossa grandeza, as águas frias do Verão apenas me hão-de receber melhor.»

A noite dizia: «Os que me ofendem morrem jovens. Como não os amar? Pradaria de todos os meus instantes, não podem pisar-me. A sua viagem é a minha viagem e eu permaneço obscuridade.»

Havia entre os dois um mal que os despedaçava. O vento ia de um ao outro; o vento ou nada, as fraldas do rude estofo e a avalanche das montanhas, ou nada.


         
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000




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