26 junho 2014

eugénio de andrade / as amoras



O meu país sabe às amoras bravas
no verão.    
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.



eugénio de andrade



25 junho 2014

stella zagatto paterniani / mourning



enquanto ouço confissões a olhos brilhantes
de sonhos reveladores
transbordantes d´alento
fico eu cá com minh´aflição:
sonho elefantes rajados de rosa
que esguicham água em silêncio
e nem sei se me respingo:
não porque acordo, mas porque decorre
sono pesado e sem sonhos.
e nada recordo ao amanhecer.



stella zagatto paterniani
natália gregorini
deleites e ladrilhos
editora medita
2013



24 junho 2014

cristovam pavia / visita



Eu estava esperando esta noite
Eu estava esperando ter a garganta apertada
Sem poder gritar
Eu estava esperando ver montes negros desenhados no céu
Eu estava esperando minhas estrelas
(E minhas mãos como duas foices de lua
Andassem sozinhas brincando com elas)
Hoje houve a solidão da visita
Daquela asa invisível que entra em mim
Quando a terra se desprende da Terra
E as montanhas são altas, mais ainda…


cristovam pavia
távola redonda
1950



23 junho 2014

adolfo casais monteiro / poeta



Poeta: uma criança em face do papel.
Poema: os jogos inocentes,
invenções de menino aborrecido e só.
A pena joga com palavras ocas,
atira-as ao ar a ver se ganha o jogo;
os dados caem: são o poema. Ganhou.

  

adolfo casais monteiro



22 junho 2014

yorgos seferis / um velho na margem do rio



E, no entanto, há que pesar como avançamos,
Não basta que sintas, nem que penses, nem que te movas,
Nem que arrisques o corpo na antiga ameia,
Quando o azeite a ferver e o chumbo líquido riscam a muralha.
E, no entanto, há que pesar para onde avançamos,
Não como quer a nossa dor, e as nossas crianças famintas,
E o abismo do convite dos nossos companheiros na outra margem;
Nem o que murmura a luz obscura do hospital improvisado,
Mas de outro modo; talvez queira eu dizer como
O longo rio que vem dos grandes lagos fechados de uma profunda África
E já foi Deus e depois se fez estrada e dom e juiz e delta;
Que nunca é o mesmo, como ensinam os antigos letrados,
Mas é sempre o mesmo corpo, o mesmo curso, o mesmo sítio,
E o mesmo norte.
Mais não quero que falar de modo chão, que me seja dada tal graça,
Pois a canção, tanto a carregámos de músicas que se vai afundando
E a nossa arte, tanto a decorámos, que os ouros lhe devoram a face
E é tempo de dizermos as nossas palavras poucas, pois a alma
Amanhã vai soltar o pano.
Se é humana a dor, não somos homens apenas para sofrer
E, por isso, tanto tenho meditado no grande rio;
Este sentido que avança por entre plantas e ervas
E bichos que pastam e matam a sede e homens que semeiam e ceifam
E grandes túmulos e até pequenas habitações dos mortos,
Esta corrente que abre o seu caminho não é diferente do sangue dos homens
E do olhar dos homens quando olham em frente sem medo no coração,
Sem o quotidiano temor das pequenas coisas nem até das grandes;
Quando olham em frente como o caminheiro que se afeiçoou a medir o caminho
                                                                                                          [pelas estrelas,
Não como nós no outro dia olhando o jardim fechado na casa árabe adormecida,
Por trás da cerca, o jardinzinho fresco, mudando de forma, crescendo e minguando;
Mudando enquanto olhávamos, também nós, a forma do nosso desejo e do nosso coração,
Ao orvalho do meio-dia, nós, a paciente massa de um mundo que nos expele e nos molda,
Presos na rendada renda de uma vida que estava certa e se fez pó e se afundou na areia,
Deixando atrás de si apenas o indistinto balançar de uma pequena palmeira que nos
                                                                                                          [deixou tontos.




giórgios seféris
(1900-1971)
tradução de manuel resende



21 junho 2014

david mourão ferreira / aviso de mobilização



Passaram pelo meu nome e eu era um número
- menos que a folha seca de um herbário.
Colheram-no com mãos de zelo e gelo;
escreveram-no, sem mágoa, num postal.


Convite a que morresse. .. mas por quê?
Convite a que matasse. .. mas por quem?
Ó vago amanuense, ó apressado
e súbito verdugo, que te ocultas
numa rubrica rápida, ilegível,
que dirás tu do meu e de outros nomes,
que dirás tu de mim e de outros mais,
no Dia do Juízo já tão próximo
- que dirás tu de nós, se nem tremeu,
na rápida rubrica, a tua mão?

Bem sei que a tua mão só executa;
mas para além do ombro a ti pertences.
Bem puderas chorar, ter hesitado. . .
- A mancha de uma lágrima bastara
para dar um sentido a esta morte
a que a tua indiferença nos convoca!



david mourão ferreira
tempestade de verão
1954



20 junho 2014

manuel de castro / tenho como certo que isto não resiste



Tenho como certo que isto não resiste
que eu próprio hei-de quebrar o berço aos pedaços
o berço delicado onde matei um jovem
a fim de o ver sereno listrado de luar.
Não olho para o sol. Sei que existe

pela luz quente aberta nos telhados
vermelhos onde o musgo é mágica subtil.
Sentir é uma febre de cansaços.
Sentir vai como febre nos nervos, sincopada,
onde se sabe que o corpo está presente

porque atirei o que visto para uma estrada
estando eu ali dentro casualmente
exactamente como o esforço fútil
de ver um pôr-de-sol e concordar.

E agora ─ nada mais que traços
em papel de seda, verde-claro, frágil…
nada mais que um pequeno segredo,
torres, e a nuvem que eu vou para existir
tão plenamente, um risco no lajedo…

Amanhã
serei bom
por música



manuel de castro
paralelo w
1958





19 junho 2014

antónio ramos rosa / no centro da aparência




Repousa no espaço de um olhar. O ar dança na rua.
Sombras e ruídos. As árvores têm uma idade clara.
Vagarosa persistência, a alguns metros do solo.
O enigma está vivo no centro da aparência.
Uma criança designa o mar. Alguém traz uma folha.

Alguém compreende a sede de uma pedra!
Quem estuda a felicidade? Quem define um jardim?
Que linguagem é a do espaço? O que é o sal da sombra?
Esquecemos a linguagem do vento e do vazio
Nunca houve um encontro. Quando será o inicio?

Vejo a folhagem e os frutos da distancia.
Olho longamente até ao cimo da ternura.
Vivo na luz extrema em todas as direcções.
O pequeno e o grande conjugam-se, consagram-se.
Canto na luz suave e bebo o espaço.



antónio ramos rosa





18 junho 2014

luis muñoz / traduzido na noite


              (Giuseppe Ungaretti)


Doce decai o sol.
Do dia se separa
um céu demasiado luminoso
cheio de solidão.

Como se a muita distância
umas vozes se movem.
Ofendida se adular
tem esta hora uma arte estranha.

Não é a aparição primeira
do outono já sozinho?
E sem outro mistério
aqui corre a dourar-se
e o tempo belo rouba
a mercê da loucura.

Contudo gritaria, contudo:
tu, veloz juventude dos sentidos,
que me tens às escuras de mim mesmo,
e à imortalidade consentes as imagens,

não me deixes, espera, sofrimento.



luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004




17 junho 2014

ben jonson / a vida perfeita



Não é crescendo à toa,
Como as árvores, que alguém se aperfeiçoa;
Não como o roble, em pé trezentos anos,
E ser madeiro enfim, calvo, seco sem ramos.
Esse lírio de um dia,
Em Maio, tem mais valia,
Mesmo que à noite caia já sem cor:
Foi a planta da luz, era o sol a flor.

Em justas proporções a beleza se ajeita,
E só num ritmo breve é que a vida é perfeita.


ben jonson
oiro de vário tempo e lugar
trad.  a. herculano de carvalho
asa
2003



16 junho 2014

hans-ulrich treichel / dias de brasa



Mas que calor!
Esfregamo-nos até doer
nos lençóis salgados
Eterna a hora
em que acordamos

Para através dos
olhos escaldantes
olharmos a luz
amarela suja, a ofuscante
ausência de árvores



hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994



15 junho 2014

paul auster / desaparecimentos



1

De pura solidão, ele recomeça ─

como se fosse a última vez
que respirasse,

e é por isso agora

que pela primeira vez respira
para além do alcance
do singular.

Está vivo, e ele não é senão por isso
o que se afoga no insondável poço
do seu olho,

e o que ele vê
é tudo o que ele não é: a cidade

da indecifrável
ocorrência,

e logo a língua das pedras,
pois ele sabe que por toda a vida
uma pedra
dará lugar a outra pedra
para fazer uma parede

e que estas pedras todas
farão a soma monstruosa

da singularidade.


paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002




14 junho 2014

edmundo de bettencourt / luar



Apenas o luar chegou,
desfez-se em asas no ar.
E toda a noite levou
a regressar devagar...

Em noites alvas, de lua,
não há nudez com vergonha.
À luz do luar, o barro
é o mármore com que sonha.

À luz do luar, as aves
nocturnas, breve, enlanguescem
e, ao seu crepúsculo da sombra,
mortas de sonho adormecem...

Os silêncios do luar são
aléns de notas agudas,
são gritos paralisados
em rictos de bocas mudas!

O luar rouba ao escuro
o que de dia é segredo.
À luz do luar podemos
ver respirar o arvoredo...

Canção ouvida ao luar
não terá ritmos perdidos
- é som vivendo no olhar
- luz que fica nos ouvidos.

À luz do luar a água
soluça todas as dores,
que à luz do luar a água
tem na cor todas as cores.



edmundo bettencourt
poemas de edmundo bettencourt
1962