14 março 2012

jean-arthur rimbaud / bárbara






Muito depois dos dias e das estações,
dos seres e dos países.

O estandarte de carne sangrando sobre
a seda dos mares e das flores árcticas
(que não existem).

Liberto das velhas fanfarras de he-
roísmo ─  que ainda nos assaltam o co-
ração e a mente ─  longe dos antigos
assassinos ─

Oh! O estandarte de carne sangrando
sobre a seda dos mares e das flores
árcticas (que não existem).

Os braseiros, chovendo em bátegas de
gelo ─  Doçuras! ─  os revérberos da chuva
de diamantes vindos do coração terres-
tre para nós eternamente carbonizado.
─  Ó mundo! ─

(longe das antigas retiradas e dos
velhos incêndios que ainda sentimos,
ainda ouvimos),

Braseiros e espumas. E música, revirar
de abismos e impacto de flocos de neve
nos astros.

Ó Doçuras, ó mundo, ó música! For-
Mas, suores, cabelos e olhos, flutuando.
E as lágrimas brancas, ferventes ─  ó do-
çuras! ─ e a voz feminina chegando ao
fundo dos vulcões e das grutas árcticas.


O estandarte…



   


jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno
trad. mário cesariny
estúdios cor
1972



  

13 março 2012

fiama hasse pais brandão / analogia silenciosa





Emocionava-me a analogia silenciosa
do tumulto do comboio
e do cortejo das nuvens. Via-os
e ouvia-os segundo o princípio de identidade
entre a natureza superior e inferior. Imagino
a passagem monocórdica e invisível dos ventos
que desfazem, uivam e arrastam.
Os sons nocturnos e diurnos fundem-se.
Assim como os volumes e os sulcos
no céu eram perfeitas formas celestes
que obsessivamente me lembravam
os caminhos ao rés da terra.






fiama hasse pais brandão
três rostos
âmago II (nova natureza) 1985-1987
assírio & alvim
1989


  

12 março 2012

josé tolentino mendonça / moradas provisórias





Passava aí as férias
debruçado sobre o mar
pensava se haveria no mundo
caminhos que nos conduzam

não chegava a conclusão
ou nem dava por ela
hesitante nessas moradas
de regras tão imprecisas

existe um momento
pouco importa qual
em que se reúnem ao acaso
diante de nós
todas as condições de uma vida
desesperada




josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999




10 março 2012

thomas mann / morte em veneza




Imagem e espelho! Os seus olhos abraçaram a nobre silhueta adiante, na borda do mar azul, e, num arroubo de encantamento, teve a percepção de que este relance o compenetrava da própria essência do belo, da forma como pensamento divino, da perfeição única e pura que habita o espírito e ali erigia, para adoração, uma imagem, um símbolo claro e gracioso. Era esse o seu êxtase. E o artista no declínio da vida acolheu-o sem hesitar, avidamente mesmo. O seu espírito abriu-se como que em trabalho de parto, toda a sua formação e cultura efervesceram, sofreram mutação, a sua memória fez aflorar pensamentos primitivos, transmitidos como lendas à sua juventude e até então nunca avivados por chama própria. Não estava escrito que o sol diverte a nossa atenção das coisas do intelecto para as coisas dos sentidos? Segundo se dizia, ele atordoa e enfeitiça a razão e a memória, ao ponto de a alma, afundada em prazer, esquecer totalmente o seu estado real, ficando presa em êxtase ao mais belo dos objectos iluminados pelo Sol, e então é só com a ajuda de um corpo que ela encontra forças para se elevar a contemplações mais altas. Na verdade, Amor fazia o mesmo que os matemáticos, apresentando às crianças não dotadas imagens tangíveis das formas puras: assim o deus se comprazia em servir-se também, para nos tornar visível o espiritual, da forma e cor da juventude humana, que enfeitava com todo o esplendor da beleza, para instrumento da lembrança, fazendo-nos inflamar, ao vê-la, de dor e esperança.
Assim pensava o espírito exaltado de Aschenbach; assim se revelava o poder dos seus sentimentos. E o marulhar das águas e o brilho do Sol teceram a seus olhos uma imagem encantadora. Era o velho plátano não distante das muralhas de Atenas — aquele local divinamente sombrio, cheio da fragrância das flores de agnocasto, ornado de imagens sagradas e oferendas piedosas em honra das ninfas e de Acheloo. O ribeiro caía límpido aos pés da árvore frondosa, sobre cascalho liso: os grilos cantavam. Sobre a relva, porém, que descia em declive ligeiro, onde se podia, estando deitado, manter a cabeça mais alta, estavam dois homens estendidos, ali protegidos do calor intenso do dia: um velho e um rapaz, um frio, o outro belo, a sapiência a par da graça. E, entre graças e brincadeiras espirituosas, Sócrates ilustrava Fedro acerca do desejo e da virtude. Falava-lhe do sobressalto ardente sofrido pela pessoa sensível quando esta vislumbra uma imagem da beleza eterna; falava--lhe do apetite do impuro e do mau, que não pode conceber a beleza, ao ver a sua imagem, e é incapaz de veneração; falava-lhe do temor sagrado que assalta o virtuoso à aparição de um semblante divino, um corpo perfeito — como ele estremece e se transporta, mal ousando olhar, venerando aquele que possui a beleza, sim, estando disposto a oferecer-lhe sacrifícios como a uma estátua, se não receasse passar por louco. Pois que a beleza, meu Fedro, e só ela, é digna de ser amada e visível ao mesmo tempo: ela é — nota bem! — a única forma do espiritual que recebemos através dos sentidos e que podemos suportar pelos sentidos. Ou então, o que seria de nós se, por outro lado, o divino, a razão, a virtude e a verdade se nos quisessem revelar através dos sentidos? Acaso não morreríamos e nos consumiríamos de amor, como outrora Sémele perante Zeus? Assim, a beleza é o caminho do homem sensível para o espírito — só o caminho, um meio apenas, pequeno Fedro... E em seguida proferiu o mais subtil, aquele cortejador astuto: ou seja, que o amante é mais divino que o amado, visto que naquele existe o deus e nestoutro não -- ideia que talvez seja a mais terna e a mais irónica que jamais foi pensada e da qual nasce toda a malícia e a mais secreta volúpia do desejo.





thomas mann
morte em veneza
trad. sara seruya
edit. europa-américa
1978




09 março 2012

antónio osório / a antiga pensão





Às escuras
os cães temem
subir as escadas.
Como crianças
e mulheres velhas.

Pelo estudante
esperavam
à porta da pensão.
Ficavam
no terceiro andar.

Vindo atrás,
degrau a degrau,
ele falava
e a voz
subia, iluminava.





antónio osório
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010




08 março 2012

josé ángel cilleruelo / peça ligeira




Uma estação sem ninguém nas plataformas,
Um banco na avenida e ninguém perto,
Um armazém abandonado,
O fim de uma via de manobras,
Um autocarro vazio,
Um jardim solitário,
Um comboio sem luzes,
A madrugada,
Um oco.
Eu.






josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




07 março 2012

julio martínez mesanza / las trincheras





Caíram as torres, e o deserto
é agora do tamanho da alma:
as torres que levantei, o deserto
que eu quis manter afastado da alma.
Os inimigos que inventei morreram,
se há outros não quero imaginá-los:
portanto, não virão os inimigos.
E os amigos não virão também,
como não irei eu a parte alguma:
ficaram apanhados nos seus reinos,
perplexos como eu, sem esperança,
e olham as torres desmoronadas
que foram sua paixão e defesa,
dono de suas almas o deserto.




julio martínez mesanza
las trincheras
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998




06 março 2012

pier paolo pasolini / uma educação sentimental…





Não é Amor. Mas em que medida é minha
a culpa se não converto em Amor
os meus afectos? Muita culpa, de acordo,
se pudesse viver dia após dia
de uma louca pureza, de uma piedade cega.
Escanda1izar com a minha mansidão.
Mas a violência em que me atordoo,
dos sentidos, do intelecto, era desde há anos
o único caminho. À minha volta,
nas origens, só havia a Língua das fraudes
instituídas, das ilusões devidas,
que as primeiras angústias
de um menino, as paixões pré-humanas,
já impuras, não exprimia. E quando,
adolescente, conheci neste país
algo que não era a alegria
de uma vida de criança — num país
provinciano, mas para mim absoluto, heróico —
foi a anarquia. Na nova e já mesquinha
burguesia de uma província sem pureza,
a primeira aparição da Europa
foi para mim aprendizagem do uso mais
puro da expressão, que a escassez
da fé de uma classe moribunda
iria ressarcir com a loucura e os tópoi
da elegância: que seria a indecente clareza
de uma língua que revela
a vontade inconsciente de não ser,
e a consciente vontade de subsistir
no privilégio e na liberdade
que por Graça são pertença do estilo.



pier paolo pasolini
poemas
de «la ricchezza» (1955-59)
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005






05 março 2012

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral




I

Vou pôr anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro de água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro um relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.





antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999





03 março 2012

ruy belo / turismo

  


Eu vi morrer um homem e caminho
Vários motivos de morte e uma
agenda mas
almoço
Há mesas e cadeiras e passeios e
sabe-me
a café
Mistério de maresia ou de ninguém





ruy belo
solidão e morte
todos os poemas I
assírio & alvim
2004


02 março 2012

tiago araújo / o lugar do morto

  




ao teu lado, no lugar do morto, enquanto
conduzes a conversa a uma frase sem
preparação. chegámos tarde à praia,
como a quase tudo. o vento levanta o
pó do parque de estacionamento e não
saímos do carro. não sei a resposta certa
e por isso represento mal o meu papel secundário.
limito-me a ficar em silêncio, onde
sempre me senti mais confortável.
um lugar sombrio, discreto, abrigado
e ainda assim, segundo dizem, o mais perigoso.




tiago araújo
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010




01 março 2012

gil t. sousa / lições





47

não há nada tão triste
como a primeira coisa
que escondemos numa gaveta


ou a última pessoa
que enterrámos num papel



gil t. sousa
falso lugar
2004



29 fevereiro 2012

andre breton / as atitudes espectrais







Não dou nenhuma importância à vida
Não pego com alfinetes na importância a mais ínfima borboleta de vida
Não importo à vida
Mas os veios do sal os veios brancos
Todas as bolhas de sombra
E as anémonas do mar
Descem e respiram dentro do meu pensamento
Vêm das lágrimas que não verto
Dos passos que não dou passos duas vezes passos -
Na memória da areia ao encher da maré
As grades estão no interior da gaiola
E os pássaros vêm das maiores a1turas cantar diante delas
Uma passagem subterrânea une todos os perfumes
A mulher que lá entrou um dia
Tornou-se tão brilhante que não a vi
Com estes olhos que a mim mesmo viram arder
Tinha já a idade que hoje tenho
E vigiava-me vigiava o meu pensamento como um guarda-nocturno numa fábrica sem fim
Só eu vigiava
A praça continuava a encantar os mesmos eléctricos
As figuras de gesso nada haviam perdido da sua expressão
Mordiam a figa do sorriso
Sei de um tecido numa cidade perdida
Se me apetecesse aparecer-vos vestido desse pano
Imaginariam chegado o vosso fim
E o meu
Enfim as fontes saberiam que não se deve dizer Fontaine
Atraem-se os lobos com espelhos de neve
Tenho uma barca solta de todos os climas
Sou arrastado por um banco de gelo de dentes flamejantes
Corto e racho a lenha desta árvore sempre verde
Um músico ata-se às cordas do seu instrumento
O Pavilhão Negro do tempo de nenhuma história de infância
Aborda um navio que não passa do fantasma do seu
Há talvez uma bainha para esta espada
Mas nesta bainha existe já um duelo
Em que os dois adversários se desarmam
o morto é o menos ofendido
o futuro não é nunca

As cortinas jamais corridas
Tremulam nas janelas por construir
As camas feitas de todas as flores-de-lis
Resvalam sob os candeeiros de orvalho
Uma noite virá
As pepitas de luz imobilizam-se no musgo azulado
As mãos que fazem e desfazem os nós do amor e do ar
Mantêm a transparência para quem vê
As palmas sobre as mãos
As auréolas nos olhos
Mas o braseiro das auréolas e das palmas
Acende-se começa a arder no ermo da floresta
Lá onde os cervos inclinam a cabeça para ver passar os anos
Ainda só se ouve uma fraca pulsação
A gerar mil rumores mais leves ou mais surdos
E esta pulsação perpetua-se
Há vestidos vibrantes
Vibração em uníssono com a pulsação
Mas quando quero ver as caras das que os vestem
Uma grande névoa levanta-se da terra
Por baixo do campanário atrás dos mais elegantes reservatórios de vida e de riqueza
Nas gargantas que escurecem entre duas montanhas
No mar à hora de arrefecer o sol
As estrelas separam os seres que me acenam
Mas o carro lançado a toda a desfilada
Leva-me as hesitações até à última
Que me espera lá longe na cidade onde as estátuas de bronze e de pedra trocam de lugar com as estátuas de cera
Banians banians


Le Revolver à cheveux blancs (1932)





andre breton
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994