20 agosto 2010

josé luis garcía martin / aqueles dias de verão








Estava de verdade
muito só naqueles dias
de verão. Á noite
sentava-se à janela comigo,
desgrenhada, descalça, suada
à espera de um fresco amanhecer
que não chegava nunca.

Chegaste, porém, tu,
arcanjo de trevas, sanguinário e belo,
portador de uma cega sentença.
Com o punho batias
ao portão incapaz de dormir. Aqui
não vive ninguém.
Cavernosa a voz
e com susto a noite, as estrelas
aziagas. É um morto quem vive
nesta casa. Que Deus o ampare,
irmão.

E amparaste-me tu
no fundo de um poço
sem ar e sem ninguém.








josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998






19 agosto 2010

andre breton e paul éluard / o juízo original








Não leias. Olha as figuras brancas desenhadas pelos intervalos separando as palavras de várias linhas dos livros e inspira-te nelas.

Dá aos outros a tua mão a guardar.

Não te deites sobre as muralhas.

Retoma a armadura que abandonaste na idade da razão.

Põe a ordem no seu lugar, desarruma as pedras da estrada.

Se sangras e és homem, apaga a última palavra na ardósia.

Forma os teus olhos fechando-os.

Dá aos sonhos que esqueceste o valor daquilo que não conheces.

Conheci três lampistas, cinco guarda-barreiras mulheres, um guarda-barreira homem: e tu?

Não prepares as palavras que gritas.

Habita as casas abandonadas. Não foram habitadas senão por ti.

Faz um leito de afagos aos teus afagos.

Se eles batem à porta, escreve as tuas últimas vontades com a chave.

Rouba o sentido ao som, existem tambores encobertos mesmo nos vestidos claros.

Canta a grande piedade dos monstros. Evoca todas as mulheres de pé sobre o cavalo de Tróia.

Não bebas água.

Como a letra l e a letra m, pelo meio encontrarás a asa e a serpente.

Fala consoante a loucura que te seduziu.

Veste-te com cores cintilantes, não é hábito.

O que encontras só te pertence enquanto a tua mão está estendida.

Mente ao morder o arminho dos teus juízes.

Enforca-te, bravo Crillon, eles te tirarão da forca com o seu Isso depende.

Ata as pernas infiéis.

Deixa a madrugada aumentar a ferrugem dos teus sonhos.

Aprende a esperar, de pés para a frente. É assim que brevemente sairás, bem coberto.

Acende as perspectivas da fadiga.


Vende com que comer, compra com que morrer de fome.

Faz-lhes a surpresa de não confundir o futuro do verbo ter com o passado do verbo ser.

Sê o vidraceiro da pedra engastada no vidro novo.

A quem peça para ver o interior da tua mão, mostra os planetas não descobertos do céu.

Diz à luz, tu calcularás as dimensões encantadoras do insecto-folha.

Para descobrir a nudez daquela que amas, olha as suas mãos. O seu rosto baixou.

Separa o giz do carvão, as papoulas do sangue.

Dá-me o prazer de entrar e sair nas pontas dos pés.

Ponto e vírgula: vês, mesmo na pontuação, como eles são surpreendentes.

Deita-te, levanta-te e agora deita-te.

Até à nova ordem, até à nova ordem monástica, isto é até que as mulheres mais jovens e belas adoptem o decote em cruz: os dois ramos horizontais descobrindo os seios, o pé da cruz nua no baixo-ventre, ligeiramente avermelhado.

Daquilo que tem a cabeça sobre os ombros, abstêm-te.

Regula a tua marcha pela das tempestades.

Nunca mates uma ave da noite.

Olha a flor da campainha: ela não permite ouvir.

Falha a finalidade aparente, quando tiveres que atravessar o teu coração com a flecha.

Opera milagres para os negares.

Tem a idade deste velho corvo que diz: Vinte anos.

Tem cuidado com os carroceiros do bom gosto.

Desenha na poeira os jogos desinteressados do teu tédio.

Não escolhas o tempo de recomeçar.

Sustenta que a tua cabeça, contrariamente às castanhas-da-índia é em absoluto sem peso, uma vez que ainda não caiu.

Doura a pílula com a centelha sem isso negra pela bigorna.

Faz para ti sem franzir as sobrancelhas uma ideia possível das andorinhas.

Escreve o imperecível na areia.

Corrige os teus pais.

Não guardes em ti aquilo que não fira o bom senso.

Imagina que esta mulher está contida em três palavras e que esta colina é um abismo.

Lacra as verdadeiras cartas de amor que escreves com uma hóstia profanada.

Não deixes de dizer ao revólver: Muito lisonjeado mas parece-me tê-lo já encontrado em qualquer lado.

As borboletas do exterior não procuram mais do que alcançar as borboletas do interior; não substituas em ti, se vier a ser quebrado, um único espelho do revérbero.

Amaldiçoa o que é puro, a pureza está amaldiçoada em ti.

Observa a luz nos espelhos dos cegos.

Queres ter ao mesmo tempo o mais pequeno e o mais inquietante livro do mundo? Pede para relerem os selos das tuas cartas de amor e chora; não obstante tudo, tens razão para isso.

Nunca esperes por ti.

Contempla bem estas duas casas: numa estás morto, na outra estás morto.

Pensa em mim que te falo, põe-te no meu lugar para responderes.

Receia passar demasiadamente perto das tapeçarias quando estás só e ouças chamar por ti.

Torce o teu corpo com as tuas próprias mãos por cima dos outros corpos: aceita corajosamente este princípio de higiene.

Come apenas aves em folhas: a árvore animal pode sofrer de Outono.

A tua liberdade com a qual me fazes chorar a rir é a tua liberdade.

Faz fugir o nevoeiro diante de ti mesmo.

Considerando que a natureza mortal das coisas não te confere um poder excepcional de duração, pendura-te pela raiz.

Deixa ao travesseiro idiota o cuidado de te acordar.

Corta as árvores se quiseres, quebra também as pedras mas tem cuidado, tem cuidado com a luz lívida da utilidade.

Só te fitas com um olho, fecha o outro.

Não anules os raios vermelhos do Sol.

Segues pela terceira rua à direita, depois pela primeira à esquerda, chegas a uma praça, voltas junto do café que conheces, segues a primeira rua à esquerda, depois a terceira rua à direita, lanças a tua estátua por terra e ficas.

Sem saber o que irás fazer com ele, apanha o leque que esta mulher deixou cair.

Bate à porta, grita: Entre, e não entres.

Nada tens para fazer antes de morrer.










andre breton e paul éluard
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972








17 agosto 2010

luis filipe castro mendes / história pessoal

1.
Entre a morte e a música,
abandonámos finalmente as nossas mãos sobre as águas.
A persistência dos rios serviu-nos de guia
e o silêncio escondeu-nos
de olhares atravessados pelo frio
de uma só palavra.


2.
A recusa
percorrida na terra,
partilhada
por mãos brutais de amor,
a recusa
floresce,
transforma o pássaro na sua própria voz
transfigurada.


3.
A dor
«antiquíssima, libertando»
o archeiro do seu arco,
o tempo do seu peso,
tornando enfim o corpo
pura respiração.


4.
A poesia
recupera restos, tonalidades
desapercebidas,
a intensidade de uma paixão vazia.
A poesia
não tem memória.


5.
Margens
de orvalho
ou a inquietação penosa
de durarem os dias
na sua perda.


6.
A claridade
da flor na chama,
o rumor
por dentro dos frutos,
a palavra «raiz».

O inverno
nas árvores enfim concordes.


7.
O amor, uma história
quase pessoal.






luís filipe castro mendes
poemas
nova renascença
janeiro/março
inverno de 1987








15 agosto 2010

aurora maria amaral / histórias a contar






Acalento o silêncio da noite
como se de um filho se tratasse.
aqui estou,
ébria de solidão e tempo passado,
plena de esperança,
certa da resistência que virá...
acalento memórias e desilusões
sei que outras virão
e alegrias também
e música e magia e luares
mantenho acesa a minha chama
a alma plena de alegria
partirá a dar a mão ao sonho
e muitas historias a contar
era uma vez...
nesse lugar longínquo
onde as dores não existem
e o tempo permanece quedo,
um cavalo alado,
um tesouro antigo,
gnomos que passeiam
nos corpos anunciando
o prazer






aurora maria amaral





12 agosto 2010

harold pinter /poema







Não olhes.
O mundo está prestes a rebentar.

Não olhes.
O mundo está prestes a despejar a sua luz
E a lançar-nos no abismo das suas trevas,
Aquele lugar negro, gordo e sem ar
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos
A ver se conseguimos de novo um posto de partida.






harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006






11 agosto 2010

09 agosto 2010

ângela marques / circulares





VIII

a casa que sonhei era branca, muito rente ao chão,
e as janelas de madeira amparavam-me os sonhos,
traziam histórias estranhas e levavam-me pelo mundo:
corria de lyon a paris, passava por veneza
para lembrar aquele degrau onde me sentei feliz
e voltava à mesa com a toalha posta de linho
uma malga de leite
um naco de pão
o teu sorriso quente
a festa começava quando as mãos se encontravam
e partiam a descobrir os recantos de nós
a viagem era louca até ao chão
os corpos rolavam envolvidos em água
até que o teu cheiro se vertia pelo soalho

era tudo tão simples na casa que sonhei!



Porto, 5-4-85





ângela marquescircularesnova renascença
abril/junho
primavera de 1985






05 agosto 2010

juan luís panero / arte poética





A comprida, vagarosa língua da morte
lambeu a mão daquele que escreve,
lucidez ou loucura, ninguém sabe;
só restam palavras, palavras roídas.







juan luís panero
antes que chegue a noite
versões de antónio cabrita e teresa noronha
fenda
2000






04 agosto 2010

tim webb e sarah brewer / sexo





Só para ter uma ideia geral do que é o sexo no nosso planeta (e para impressionar os seus amigos nas festas) pense apenas que, a cada segundo que passa, ocorrem em todo o mundo 19 000 orgasmos masculinos. Por outras palavras, é bastante provável que, no mundo inteiro, 6 milhões de seres humanos estejam constantemente ocupados com a apreciação sexual do corpo de outra pessoa. E isto sem contarmos com aqueles que estão a apreciar activamente o próprio corpo.

Se compararmos o número referido com a taxa de natalidade internacional de 4,5 NPS (nados por segundo), a hipótese de os humanos copularem apenas com fins reprodutivos torna-se completamente ridícula. E óbvio que o rácio entre o produto resultante e a unidade de energia gasta não impressionará os economistas, já que, provavelmente, a maior parte deles terá abandonado estes prazeres mundanos há muito tempo.

O sexo apresenta inúmeras vantagens quando comparado com outros passatempos. É mais barato do que o golfe ou o ténis, porque a maior parte do equipamento é gratuito. Exige menos perícia do que, por exemplo, o snooker, apesar de não podermos negar que, em ambos, o desempenho pode ser aperfeiçoado com prática e trabalho árduo. Dá mais satisfação imediata do que coleccionar selos ou ouvir a Rádio Renascença e tem ainda a vantagem de não ser necessário reunir tantos jogadores como para um jogo de futebol.

Tudo isto se deve, provavelmente, ao facto de o sexo ser uma actividade bastante simples, aprazível e normalmente inofensiva, que entrou nos nossos hábitos ao longo dos séculos. Basta apenas consultarmos os documentos históricos mais básicos para chegarmos à conclusão de que todos os grandes líderes (especialmente aqueles que, durante os últimos anos, foram apontados como déspotas incompetentes e tirânicos) apresentaram propostas políticas que incluíam menos sexo para as massas. Na realidade, para se descobrir um ditador dos tempos modernos, o melhor a fazer é saber quais os seus pontos de vista sobre sexo ilícito.

Antigamente a situação era bastante simples. O sexo era uma actividade tão normal como comer, beber ou respirar. O facto de todas as pessoas o fazerem era reconfortante, e não ameaçador, pelo que a discussão pública estava limitada às casernas, aos bares e a outros locais de limitada actividade sexual, onde era fácil contar histórias fantásticas sem precisar de provar nada.

No entanto, a invenção da penicilina, da contracepção eficaz, da Cosmopolitan e do Ford Escort XR 3i alterou esta situação para sempre.

A compreensão das convenções sexuais (e de inspiradas novas maneiras de fazer sexo) tomou-se aceitável e, mais do que isso, um requisito obrigatório para a admissão em determinados círculos sociais.





tim webb & sarah brewer
o especialista instantâneo em sexo
trad. de paulo david silva
gradiva
1996




02 agosto 2010

saint-john perse / estreitos são os navios






fragmentos


I

…Estreitos são os navios, como estreito o nosso tálamo.
Imensa a extensão das águas, mais vasto o nosso império
Nas câmaras cerradas do desejo.

Entra o Verão, que vem do mar. Somente ao mar diremos
Os estrangeiros que fomos nas festas da Cidade, e qual o astro subindo das festas submarinas
Que veio uma noite, sobre o nosso tálamo, farejar o leito do divino.

Em vão a terra próxima nos vai traçando a sua fronteira. Uma única vaga através do mundo, uma única vaga desde Tróia
Até nós vem rolando a sua anca. No muito grande largo, ao largo, longe de nós, outrora este sopro se imprimiu...
E uma noite nas câmaras foi imenso o rumor: a própria morte, nem ao som de búzios, de modo algum aí se faria ouvir!

Amai os navios, ó pares apaixonados; e o mar alto no interior dos quartos!
Uma tarde a terra chora os seus deuses, e o homem dá caça às feras ruivas; as cidades usam-se, as mulheres sonham... Que exista sempre à nossa porta
Esta alvorada imensa chamada mar — escol de largas asas e levantamento armado, amor e mar do mesmo leito, amor e mar no mesmo leito —

e de novo este diálogo dentro dos quartos:






saint-john perse
estreitos são os navios (fragmentos)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003






01 agosto 2010

fernando luís / num café de bolonha







4

De quando em quando há
um precipício, um desatino nas coisas,
encadeamentos nebulosos a que
nos levam palavras, olhares.

Nada altera a substância do mundo,
nem o acreditado sentimento nem,
em irradiado poder,
a inesperada metáfora.

Tudo está no vazio,
nesse estremecimento. Tu, mesmo
tu, levas o teu nome ao impasse,
à perda das coisas nele contidas.

É então, de quando em quando,
que voa a trave do pensamento,
a pedra da alma, o sangue,
o sangue encordoado e brilhante
e acordas impaciente,
parado, e te afundas
na ideia de morte.









fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990






30 julho 2010

miguel esteves cardoso / rara







Ouço-te
a ser rara
a estrela

no espaço

onde algo
se desprende
e quase tudo
se desmonta

Ouço-te
a virar
os paus

a comer
vestígios
importantes

e estás
em apuros

com as noites

estás em
ponta fina
de margens
dadas

os braços
pelo pó

e os olhos
por força maior

Ouço-te
ao aparecer
da vista

e do tacto
e estás incólume

de mim

das causas
disso

dos porquês
daquilo









miguel esteves cardoso
sema
publicação sazonal de artes e letras
ano I, n.º 2,
verão 1979





28 julho 2010

wallace stevens / a casa estava silenciosa e o mundo estava calmo








A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo
O leitor tornava-se no livro; e a noite de verão

Era como a essência consciente do livro.
A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo.

As palavras eram pronunciadas como se não houvesse livro,
A não ser o leitor inclinado sobre a página,

A desejar inclinar-se, a desejar extremamente ser
O letrado para quem o seu livro é verdadeiro, para quem

A noite de verão é como uma perfeição de pensamento.
A casa estava silenciosa porque assim tinha de estar.

O silêncio fazia parte do sentido, parte do espírito:
Era a perfeição no seu acesso à página.

E o mundo estava calmo. A verdade num mundo calmo
No qual não há outro sentido, a própria verdade

Está calma, ela própria é verão e noite, ela própria
É o leitor em tardia vigília, inclinado, lendo.








wallace stevens
the house was quiet and the world was calm, transport to summer (1947)
vozes da poesia europeia III

traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003