24 outubro 2017

pablo garcia casado / blues



a casa é um nojo sem ti o lava-loiça o quarto
de banho os lençóis sujos a comida a apodrecer
no frigorifico tu melhor que ninguém sabes que difícil

é conviver com um tipo como eu incapaz de enfrentar
assuntos tais como lavar a roupa o cesto
das compras a escolha de detergente ou a solidão

a minha vida é um nojo sem ti.


pablo garcia casado
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000








23 outubro 2017

miguel torga / miniatura



Coimbra, 11 de Abril de 1957

Pois eu gosto de crianças!
Já fui criança, também…
Não me lembro de o ter sido;
Mas só ver reproduzido
O que fui, sabe-me bem.

É como se de repente
A minha imagem mudasse
No cristal duma nascente,
E tudo o que ou voltasse
À pureza da semente.


miguel torga
diário VIII
1959




22 outubro 2017

álvaro de campos / dá-nos a tua paz



Dá-nos a Tua paz,
Deus Cristão falso, mas consolador, porque todos
Nascem para a emoção rezada a ti;
Deus anti-científico mas que a nossa mãe ensina;
Deus absurdo da verdade absurda, mas que tem a verdade das lágrimas
Nas horas de fraqueza em que sentimos que passamos
Como o fumo e a nuvem, mas a emoção não o quer,
Como o rasto na terra, mas a alma é sensível...
Dá-nos a Tua paz, ainda que não existisses nunca,
A Tua paz no mundo que julgas Teu,
A Tua paz impossível tão possível à Terra,
À grande mãe pagã, cristã em nós a esta hora
E que deve ser humana em tudo quanto é humano em nós.
Dá-nos a paz como uma brisa saindo
Ou a chuva para a qual há preces nas províncias,
E chove por leis naturais tranquilizadoramente.
Dá-nos a paz, porque por ela siga, e regresse
O nosso espírito cansado ao quarto de arrumações e coser
Onde ao canto está o berço inútil, mas não a mãe que embala,
Onde na cómoda velha está a roupa da infância, despida
Com o poder iludir a vida com o sonho...
Dá-nos a tua paz.
O mundo é incerto e confuso,
O pensamento não chega a parte nenhuma da Terra,
O braço não alcança mais do que a mão pode conter,
O olhar não atravessa os muros da sombra,
O coração não sabe desejar o que deseja
A vida erra constantemente o caminho para a Vida.
Dá-nos, Senhor, a paz, Cristo ou Buda que sejas,
Dá-nos a paz e admite
Nos vales esquecidos dos pastores ignotos
Nos píncaros de gelo dos eremitas perdidos,
Nas ruas transversais dos bairros afastados das cidades,
A paz que é dos que não conhecem e esquecem sem querer.
Materna paz que adormeça a terra,
Dormente à lareira sem filosofias,
Memória dos contos de fadas sem a vida lá fora,
A canção do berço revivida através do menino sem futuro,
O calor, a ama, o menino,
O menino que se vai deitar
E o sentido inútil da vida,
O coveiro antigo das coisas,
A dor sem fundo da terra, dos homens, dos destinos
Do mundo...

s.d.



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993





21 outubro 2017

fiama hasse pais brandão / o relâmpago




Sopro que me trouxe imagens lívidas
pela janela da casa
de par em par abertas ao gemido
de inesquecíveis árvores, seres terrestres
engrandecidos pelos halos
de árvores de luz celeste.




fiama hasse pais brandão
poemas galaicos (galiza 50)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017




20 outubro 2017

al berto / salsugem



II
queria ser marinheiro correr mundo
com as mãos abertas ao rumo das aves costeiras
a boca magoando-se na visão das viagens
levaria na bagagem a sonolenta canção dos ventos
e a infindável espera do país assustado pelas águas

debruçou-se para o outro lado do espelho
onde o corpo se torna aéreo até aos ossos
a noite devolveu-lhe outro corpo vogando
ao abandono dum secreto regresso... depois
guardou a paixão de longínquos dias no saco de lona
e do fundo nostálgico do espelho
surgiram os súbitos olhos do mar

cresceram-lhe búzios nas pálpebras algas finas
moviam-se medusas luminosas ao alcance da fala
e o peito era o extenso areal
onde as lendas e as crónicas tinham esquecido
enigmáticos esqueletos insectos e preciosos metais

um fio de sémen atava o coração devassado pela salsugem
o corpo separava-se da milenar sombra
imobilizava-se no sono antigo da terra
descia ao esquecimento de tudo... navegava
no rumor das águas oxidadas agarrava-se à raiz das espadas
ia de mastro em mastro perscrutando a insónia
abrindo ácidos lumes pelo rosto incerto dalgum mar


al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997





19 outubro 2017

r. lino / palavras do imperador hadriano no princípio de antinöé




não;
não por ti, a quem amei
mas por mim, a quem amaste
construo eu esta cidade:
cruzado centro
entre Roma e o Império.
por aqui
– talvez esquecido, talvez lembrado –
teu nome
noutras bocas se dirá
de mim, de mim sobretudo
soará esta paixão que
em teu nome, assim paraste:
suspenso sacrifício
entre sonos de areia e o teu futuro
muralha por muralha
o teu passado construído.
esta cidade
entre Roma e a Barbárie,
posto seguro na força do Império,
esta cidade
tua e não minha
– pretexto mais grato do meu poder –
ficará esta cidade.
não;
não por mim, a quem amaste
mas por ti, a quem amei
conhecido nome se fará:
nome do corpo, nome de roma
nome do tempo eu
– finito e sem dias –
assim permanece:
memória da memória
na memória de ti.



r. lino
palavras do imperador hadriano
políptico
companhia das ilhas
2016






18 outubro 2017

eugénio de andrade / antes da neve



As grandes searas
sacudirão a crina,
a luz de setembro
tombará dos olmos,
a espuma do vinho
extinguir-se-á
como lume breve –


só então a neve…



eugénio de andrade
ostinato rigore 1963-1965
poemas
edit. inova
1971






17 outubro 2017

rui costa /elegia azul



Clara, como talvez tu antes da última esquina da noite,
uma imagem redonda colava-se aos meus dedos por entre
as folhas de papel que lentamente ardiam. Foram sempre
mais as páginas que juntei do que aquelas de que pude
separar-me, naquele T1 pequeno com vista para Monsanto
e para o teu corpo sempre azul.
Infelizmente, não fora capaz de preparar
o silêncio que sempre se segue a tudo o que
não somos, dirias tu, o rumor de instantes que nos apanha
na canga e nos sugere o vale sem luzes e a varanda grande.
Parado sei que isso é poesia, um sonho, pequenas alucinações
de primavera sem apelo no fundo destas veias e sei também
que continuas a existir e vais ser minha muitas vezes,
como eu quero ser teu intermitentemente em cada lua nossa.
Mas tu sabes como os astros nos pregam partidas ao telefone,
como em certos dias a pique para o sol embatem nas antenas,
e este ligeiro pesadelo é apenas o desconforto baço de saber
que há coisas demasiado belas para não serem tristes


rui costa
à solta no ringue
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017





16 outubro 2017

rui knopfli / progresso




Estamos nus como os gregos na Acrópole
e o sol que nos mira também os fitou.
Mas fazemos amor de relógio no pulso.



rui knopfli
o passo trocado
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982






15 outubro 2017

bernardo soares / a única maneira de teres sensações novas...




A única maneira de teres sensações novas é construires-te uma alma nova. Baldado esforço o teu se queres sentir outras coisas sem sentires de outra maneira, e sentires-te de outra maneira sem mudares de alma. Porque as coisas são como nós as sentimos — há quanto tempo sabes tu isto sem o saberes? — e o único modo de haver coisas novas, de sentir coisas novas é haver novidade no senti-las.

Mudar de alma. Como? Descobre-o tu.

Desde que nascemos até que morremos mudamos de alma lentamente, como do corpo. Arranja meio de tornar rápida essa mudança, como com certas doenças, ou certas convalescenças, rapidamente o corpo se nos muda.

Não descer nunca a fazer conferências para que não se julgue que temos opiniões, ou que descemos ao público para falar com ele. Se ele quiser que nos leia.

De mais a mais o conferenciador semelha actor — criatura que o bom artista despreza, moço de esquina da Arte.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982





14 outubro 2017

herberto helder / elegia múltipla




II
Sobre o meu coração ainda vibram seus pés: a alta
formosura do ouro. E se acordo e me agito,
minha mão entreabre o subtil arbusto
de fogo - e eu estou imensamente vivo.
Agora, nada sei. Se com a neve e o mosto dei ao tempo
a medida secreta, na minha vida tumultuam
os rostos mais antigos. Não sei
o que é a morte. Enchia com meu desejo
o vestíbulo da primavera, eu próprio me tornava uma árvore
abismada e cantante. E a beleza é uma chama
solitária, um dardo que atravessa
o sono doloroso. Dos mortos, nada sei.
E de mim - onde deixaram os pés sombrios, o súbito
fulgor da ausência - de mim, vivo e ofegante,
sei uma flor de coral: delicada e vermelha.

Porque morrem assim no interior do vinho, quando
cantam e se extasiam? Porque morrem seus ombros onde
se derramavam as videiras e as escadas subiam?
Um a um vão nascendo meus mudáveis
pensamentos, e eu digo: porque morrem
os que tinham a carne com seu peso e milagre e sorriam
sobre a mesa
como seres imortais?

E agora é a minha vida que se fecha - assombrada.
A vida funda e selvagem. Porque um dia,
como se depaupera e desfaz a presença de um cacho,
o brilho se apagará onde estava a minha letra.
Dançarei uma só vez, em redor da taça,
festejando a última estação. Hoje,
nada sei. Correm em mim os mortos, como água -
com o murmúrio gelado da sua incalculável ausência.


E eu digo: não refulgia a carne quando
a primavera inclinava a cabeça sobre a sua confusão?
Não dormiam junto ao mosto com lírios no pensamento?
Ei-los em mim, absurdos e puros, e digo: se havia
tanto ouro, dentro e à volta deles, porque
se extinguiram?


Agora, nada sei. Eu próprio serei uma espuma
absorta e casta, algures num coração,
e nesse coração se erguerá uma onda de púrpura,
um terrível amor.


 – Porque meu coração era firme e de ouro, e eu cantava.





herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996



13 outubro 2017

luís miguel nava / ao mínimo clarão




Talvez seja melhor não nos voltamos
a ver, ao mínimo clarão
das mãos a pele se desavém com a memória.
As mãos são de qualquer corpo a coroa.

Das dele já nem sequer o itinerário
sei hoje muito bem, onde o horizonte
se desata o mar agora
regressa ao coração de que faz parte.

Ainda é o mar contudo o que se vê
florir onde ele chegar. Chamando a esse
rapaz rebentação,
o céu rasga-se à volta dos seus ombros.



luís miguel nava
como alguém disse
contexto editora
1982






12 outubro 2017

fernando pinto do amaral / avisos



Teria amado o vento e a fala dos bosques,
as imagens da noite, os pequenos avisos
do coração. Iria regressar
por outros olhos às cores do inverno.



fernando pinto do amaral
acédia 1990
dominei
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000








11 outubro 2017

james wright / contra o surrealismo




Há alguns ínfimos detalhes óbvios na vida humana que sobrevivem ao propósito divino de aborrecer os idiotas até à morte. Em França, bem lá ao Sul, em Avallon, as pessoas gostam de bolos. Os pasteleiros locais amassam um pouco de farinha e chocolate com a forma de um pinguim. Nós voltámos várias vezes a uma certa montra para admirar um bando deles. Mas nunca comprámos nenhum.

Demos por nós a vaguear em Itália, com saudades dos pinguins.

Depois um fogo terrível e selvagem dos dias de canícula rugiu sobre o décimo quarto arrondissement: quer dizer, em Agosto: e três pinguins de chocolate apareceram atrás de uma montra, perto da Place Denfert-Rochereau. Tivemos medo que os parisienses os reconhecessem, por isso comprámo-los todos e esgueirámo-nos com eles para casa, disfarçados.

Pusemo-los numa mesinha acima de metade dos telhados de Paris. Eu fui espanejar uma ínfima, óbvia, partícula de pó na ponta de um bico. De repente o pó caiu uma polegada e ficou a baloiçar. Depois trepou de novo para o bico.

Era uma aranha azul.

Se eu fosse uma aranha azul, certamente apanharia um comboio de Avallon até Paris e montaria casa no nariz de um pinguim de chocolate. É só uma questão de senso comum.





james wright 
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001






10 outubro 2017

sylvia plath / nódoa negra




A cor converge para esse sítio, de um arroxeado mortiço.
O resto do corpo fica todo descolorido,
De cor pérola.

Numa gruta cavada na rocha
O mar suga obsessivamente
Uma cavidade, o ponto central de todo o mar.

Do tamanho de uma mosca
A marca do destino
Arrasta-se pela parede abaixo.

O coração fecha-se,
O mar recua,
Os espelhos são tapados.



sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




09 outubro 2017

tomas tranströmer / meados de inverno



Um rasto de luz azulada
irradia da minha roupa.
Decorrida está metade do inverno.
Música de choques de mil blocos de gelo.
Fecho os olhos.
Há um mundo sem ruídos,
uma fissura,
onde os mortos,
como contrabando, são passados para o além.



tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012