03 fevereiro 2017

adnan özer / o conselho da minha avó




A minha avó dizia-me:
- não sopres as brasas
meu lindo menino não vão sujar-te os pulmões

decorreu-me a meninice como alento
expirado contra as brasas

minha querida avozinha sempre me lembrei de ti
e do jardim cor de ameixa seca
com os troncos das árvores ressequidos
e os seus vestígios de cal apagada

minha querida avozinha sempre me lembrei de ti
quis ver de novo à noite
a lua cheia, o bandoleiro do céu,
bebendo a água com lábios de prata
em sulcos de crisântemos

sempre me lembrei de ti
e dos gerânios entre os quais
compunha os meus primeiros versos
da rã com manchas verdes da minha poesia
e do estribilho dos ciganitos:
«rãzinha, rãzinha
com pernas de raminho»

minha querida avozinha sempre me lembrei de ti
e da fronte enrugada do avô
que morreu anos depois de
sussurrar-me ao ouvido o meu nome

e da sua vide adornada
com campânulas entre águas-marinhas

os anos passaram
evolou-se dos sacos o cheiro a melões de inverno
acabou o bem-estar
de Abraão sobre a nossa mesa

minha querida avozinha sempre me lembrei de ti.


adnan özer
as asas de orvalho dos ventos
trad. jorge velhote
quetzal
1997



02 fevereiro 2017

amalia bautista / pensaram que era a paciente esposa



Pensaram que era a paciente esposa
e um herói. A que espera noite e dia
tecendo e destecendo. A que ignora
que nunca volta o mesmo que partiu.
E apenas sou uma maldita aranha.



amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013





01 fevereiro 2017

alexandre o'neill / o tempo sujo



Há dias que eu odeio
       como insultos a que não posso responder
sem o perigo duma cruel intimidade
coma mão que lança o pus
que trabalha ao serviço da infecção
São dias que nunca deviam ter saído
do mau-tempo fixo
que nos desafia da parede
dias que nos insultam que nos lançam
as pedras do medo os vidros da mentira
as pequenas moedas da humilhação

Dias ou janelas sobre o charco
que se espelha no céu
dias do dia-a-dia
comboios que trazem o sono a resmungar para o trabalho
o sono centenário
mal vestido mal alimentado
para o trabalho
a martelada na cabeça
a pequena morte maliciosa
que na espiral das sirenes
se esconde e assobia

Dias que passei no esgoto dos sonhos
onde o sórdido dá as mãos ao sublime
onde vi o necessário onde aprendi
que só entre os homens e por eles
vale a pena sonhar


alexandre o’neill
tempo de fantasmas
cadernos de poesia
novembro de 1951





31 janeiro 2017

edgar lee masters / a colina



Onde estão Elmer, Herman, Bert, Tom e Charley,
O irresoluto, o de braço forte, o palhaço, o ébrio, o guerreiro?
Todos, todos, estão dormindo na colina.

Um morreu de febre,
Um lá se foi queimando numa mina,
O outro assassinaram-no num motim,
O quarto se extinguiu na prisão,
E o derradeiro caiu de uma ponte quando trabalhava para e esposa
                          e os filhos –
Todos, todos, estão dormindo, dormindo, dormindo na colina.

Onde estão Ella, Kate, Mag, Lizzie e Edith,
A de bom coração, a de alma simples, a alegre, a orgulhosa, a feliz?
Todas, todas, estão dormindo na colina.

Ella morreu de parto vergonhoso,
Kate de amor contrariado,
Mag nas mãos de um bruto num bordel,
Lizzie ferida em seu orgulho à procura do que quis seu coração.
E Edith, depois de ter vivido nas distantes Londres e Paris,
Foi conduzida a seu pequeno domínio por Ella e Kate e Mag –
Todas, todas estão dormindo, dormindo, dormindo na colina.

Onde estão tio Isaac e tia Emily,
E o velho Towny ncaid e Sevigne Houghton,
E o major Walker que conversara
Com os veneráveis homens da revolução? –
Todos,todos, estão dormindo na colina.
Trouxeram-lhes filhos mortos na guerra,
E filhas cuja vida tendo sido desfeita,
Os filhos sem pai choravam –
Todos, todos, estão dormindo na colina, dormindo na colina.

Onde está o velho violinista Jones
Que brincou com a vida durante noventa anos,
Desafiando as geadas a peito descoberto,
Bebendo, fazendo arruaças, sem pensar na esposa, nem na família,
Nem em dinheiro, nem em amor, nem no céu?
Vede! Fala sobre os cardumes de peixes de antigamente,
Sobre as corridas de cavalo, outrora em Clary’s Grove,
Sobre o que Abe Lincoln disse
Uma vez em Springfield.


edgar lee masters
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de jorge de lima 
assírio & alvim
2001




30 janeiro 2017

joaquim manuel magalhães / nada consentia



Nada consentia ainda o nosso amor.
Eu punha sobre os teus ombros os meus braços
anulado da gente mais agreste
e descobria o riso ao pé do teu.


Era o que sou e sabia cantar-


te, queria que visses em redor
toda a cinza a que tu não pertencias.
Tu vias. Eu cantava. Era o amor.

  


joaquim manuel magalhães
consequência do lugar
relógio d´água
2001



29 janeiro 2017

ricardo reis / deixa passar o vento



Deixa passar o vento
Sem lhe perguntar nada.
Seu sentido é apenas
Ser o vento que passa…
Consegui que desta hora
O sacrifical fumo
Subisse até ao Olimpo.
E escrevi estes versos
Pra que os deuses voltassem.

12-9-1916



fernando pessoa
poemas de ricardo reis
imprensa nacional - casa da moeda
1994



28 janeiro 2017

miguel torga / cântico de amor



Ama quem amas, como o vento
Ama as folhas do olmo
(Amor que lhes transmite movimento
E alegria).
Asa que possa andar no firmamento,
Só caminha no chão por cobardia.



miguel torga
nihil sibi
1948



27 janeiro 2017

manuel antónio pina / van gogh mondrian


Uma vez um anjo apaixonou-se por van gogh e veio vê-lo
van gogh pintou-o naquela cadeira, te acuerdas federico bajo
                                                                                      [la tierra?
o anjo depois foi-se embora  van gogh ficou com o tabaco
                                                                               [estragado

mondrian também tinha um anjo mas o dele era mau
não se importava com coisa nenhumas batia-lhe nos olhos



manuel antónio pina
as pessoas e outros poemas clóvis da silva
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992



26 janeiro 2017

s. kierkegaard / que é um poeta?



Que é um poeta? Um homem infeliz que esconde profundas agonias no seu coração, mas cujos lábios estão conformados de tal modo que, quando o suspiro e o grito por eles fluem, soam como uma bela música. Passa-se com ele como com os infelizes que eram demoradamente torturados com fogo brando no touro de Fálaris: os seus gritos não podiam chegar aos ouvidos do tirano para o aterrorizar – a ele soavam-lhe como uma doce música. E os homens aglomeram-se em torno do poeta e dizem-lhe: «depressa, canta outra vez», [o que] quer dizer, «que novos sofrimentos martirizem a tua alma e que os lábios continuem a estar conformados como antes, pois o grito apenas nos angustiaria, mas a música é encantadora». E vêm os autores de recensões, que dizem: «está correcto, assim deve ser, de acordo com as regras da estética». Ora, isso percebe-se: também um autor de recensões se parece com um poeta como duas gotas de água, só não tem agonias no coração, nem música nos lábios. Eis por que prefiro ser guardador de porcos em Amagerbro e ser entendido pelos porcos a ser poeta e mal entendido pelos homens.




s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011




25 janeiro 2017

egito gonçalves / a aventura é ficar…




Calafetado contra os sonhos, fico
Contigo, prisioneiro dos liames
Que te cercam e cercam o teu rosto,
A tua carne rasgada nos arames.

Extinguiu-se o apelo da partida…
As quilhas já não sofrem a espuma.
Fico contigo na luta pelo dia
No endurecido leito de caruma.

Tu estás sentada sobre a terra…
Pelas searas corre um vento rude.
Teu corpo é uma espiga amadurecida
Pela água aprisionada do açude.

Corsários acamaradam no mar largo…
Mas do teu caule fino, nasce e ondeia
À minha volta, uma canção serena
Que me prende docemente à sua teia.



egito gonçalves
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




24 janeiro 2017

ruy cinatti / momento num café



As mãos lindas que vi deixam-me absorto:
compridos dedos, polegares de espátula,
um dedilhar de flores em jardins ociosos,
só comparável a conversa amena
de duas mulheres simples debruçadas
sobre o tampo liso de uma mesa.

A riqueza da vida reside nisto:
um leve toque no ombro do próximo…
uma cortina de chuva vedando a verdade
olhos indiferentes, indiscretos…
e um ar de encanto, um fácil soluço
ouvido longe, como que em segredo.

9/11/76


ruy cinatti
56 poemas
de antiguidades burlesco-sentimentais
relógio d´agua
1981




23 janeiro 2017

álvaro feijó / os dois sonetos de amor da hora triste



1
Quando eu morrer – e hei-de morrer primeiro
do que tu – não deixes fechar-me os olhos
meu Amor. Continua a espelhar-te nos meus olhos
e ver-te-ás de corpo inteiro


como quando sorrias no meu colo.
E, ao veres que tenho toda a tua imagem
dentro de mim, se, então, tiveres coragem
fecha-me os olhos com um beijo.
                                                          Eu, Marco Pólo,


farei a nebulosa travessia
e o rastro da minha barca
segui-lo-ás em pensamento. Abarca


nele o mar inteiro, o porto, a ria…
E, se me vires chegar ao cais dos céus,
ver-me-ás, debruçado sobre as ondas, para dizer-te adeus.



2
Não um adeus distante
ou um adeus de quem não torna cá,
nem espera tornar. Um adeus de até já,
como a alguém que se espera a cada instante.


Que eu voltarei. Eu sei que hei-de voltar
de novo para ti, no mesmo barco
sem remos e sem velas, pelo charco
azul do céu, cansado de lá estar.


E viverei em ti como um eflúvio, uma recordação.
E não quero que chores para fora,
Amor, que tu bem sabes que quem chora


assim, mente. E se quiseres partir e o coração
to peça, diz-mo. A travessia é longa… Não atino
talvez na rota. Que nos importa, aos dois, ir sem destino.


álvaro feijó
os poemas de álvaro feijó
portugália
1961



22 janeiro 2017

alberto caeiro / talvez quem vê bem não sirva para sentir



Talvez quem vê bem não sirva para sentir
E não agrada por estar muito antes das maneiras.
É preciso ter modos para todas as coisas,
E cada coisa tem o seu modo, e o amor também.
Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas
Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir.
Amei, e não fui amado, o que só vi no fim,
Porque não se é amado como se nasce mas como acontece.
Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes,
E eu continuo como era dantes, sozinho no campo.
Como se tivesse estado de cabeça baixa,
Penso isto, e fico de cabeça alta
E o dourado sol seca a vontade de lágrimas que não posso deixar de ter.
Como o campo é vasto e o amor interior...!
Olho, e esqueço, como seca onde foi água e nas árvores desfolha.
Eu não sei falar porque estou a sentir.
Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa,
E a minha voz fala dela como se ela é que falasse.
Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo ao sol claro,
E a boca quando fala diz coisas que não só as palavras.
Sorri, e os dentes são limpos como pedras do rio.

8-11-1929


alberto caeiro
o pastor amoroso
poemas completos de alberto caeiro
fernando pessoa
presença
1994



21 janeiro 2017

vasko popa / canção da verdade jovem



A verdade cantava no escuro
No cimo da tília sobre o coração

O sol há-de amadurecer dizia
No cimo da tília sobre o coração
Se os olhos o iluminarem

Troçámos da canção
Agarrámos prendemos a verdade
Cortámos-lhe a cabeça debaixo da tília

Os olhos estavam noutro sítio
Ocupados com outra obscuridade
E nada viram


vasko popa
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de eugénio de andrade
assírio & alvim
2001





20 janeiro 2017

thom gunn / a visão da morte de um motociclista perturbado



Em pleno campo,
Avanço por entre muralhas de chuva
Que me fustiga o rosto e me ensopa os joelhos,
Mas sou o homem que quero ser.

A charneca firme acaba e surge o pântano.
Estamos agora em guerra: quem ganhar
Não conseguirá submeter a minha vontade humana
À natureza embora seja de lá que ela veio.
As rodas afundam-se; o ruído nítido torna-se confuso:
Porém, curvado sobre o volante,
Lanço esta minha máquina que escolhi
Contra a possibilidade de ser um corpo ainda.
A roda da frente penetra com firmeza entre
Dois arbustos de um verde esmaltado e insensível
 – Gigantesco equilíbrio no contorno
De cada folha lisa. Redemoinhos negros sobem
Em redor do meu pé que, comprimindo com força,
Acelera o sono que espera.

Costumava viver no ruído e desconhecia
A existência da realidade calma ou rastejante,
Mas agora as águas paradas, coladas ao meu rosto
Sob o peso da morte, retiram-me o alento;
Embora angustiado julgo que posso
Mover-me através da matéria. Encontro o meu caminho,
Onde a morte e a vida se conjugam,
Através da negra terra que não é minha,
Povoada de fragmentos, embotada, informe,
Enquanto pelos meus ouvidos, enxameados de ruído,
As extremidades brancas das plantas do pântano,
Lentas, sem paciência, espalham-se à vontade
Invulneráveis e flexíveis, e se estendem
Numa posse serena em direcção ao seu fim.

Embora os cogumelos quando eu apodrecer
Me recubram os ossos lívidos com lívidos nós
Até enfunarem os meus fatos, eles fingem
Que este espantalho é de novo um homem,
E é como servos que persistem
Ou, sem qualquer vontade, se contorcem;
E o hábito, pelos homens laboriosamente
Adquirido, não os deixa cansados.
Essa vegetação converte célula após célula
A minha única riqueza em lixo:
Tudo o que obtêm, obtêm-no por acaso.

E multiplicam-se na ignorância.


thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



19 janeiro 2017

sara f. costa / palco invisível



trago comigo as gigantes perguntas
que ardem no peso da fala.
de ti espero a noite corrompida,
a solidão contínua
que vai até aos prédios e retorna
mas acredito na tua companhia
como acredito na vaidade do sol
a vida ruge-me nos ombros
enquanto a vergonha respira
entre segredos.
onde estás e por onde andaste
são grutas miseráveis
que se erguem pela lógica
porque a tua presença não faz sentido
somos atores de um palco invisível
não te percas no retorno
porque a verdade é que nunca cá vieste.



sara f. costa
o movimento impróprio do mundo
âncora editora
2016


18 janeiro 2017

ángél gonzález / epílogo



Arrependo-me de tanta queixa inútil,
                                                              de tanta
lamentação impertinente.
São as regras do jogo inapeláveis
e justificam toda, qualquer perda.
Agora
só o inesperado ou o impossível
poderia fazer com que eu chorasse

uma ressurreição, nenhuma morte.



ángél gonzález
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985





17 janeiro 2017

jorge luís borges / a lua



                           Para Maria Kodama



Há tanta solidão naquele ouro.
Lua destas noites é igual
À do primeiro Adão. Os longos séculos
Da humana vigília cumularam-na
E antigo pranto. Olha-a. É o teu espelho.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a moeda de ferro  (1976)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




16 janeiro 2017

vasco gato / um no outro



imensamente nos deitamos um no outro
e não mais nascemos para a mão escura
que tapa o sol e afoga a luz

estamos como se tudo estivesse connosco
e connosco estivessem os nomes que primeiro se deram
flor   rio   azul   estrela   terra



vasco gato
um mover de mão
assírio & alvim
2000