06 fevereiro 2025

paul éluard / identidades

 
 
 
                                                a Dora Maar

 
 
Vejo os campos e o mar cobertos por um dia igual
Não há diferenças
Entre a areia que dormita
O machado à beira da ferida
O corpo em feixe desatado
E o vulcão da saúde
 
Vejo mortal e boa
O orgulho que retira o seu machado
E o corpo que respira a plenos desdéns sua glória
Vejo mortal e desolada
A areia que volta ao leito de partida
E a saúde que tem sono
O vulcão palpitante como um coração desvendado
E as barcas respigadas pelos ávidos pássaros
As festas sem reflexos as dores sem eco
Frontes olhos atormentados pelas sombras
Risos como encruzilhadas
Os campos o mar o tédio torres silenciosas torres
                                                          [sem fim
Vejo leio esqueço
O livro aberto das minhas janelas fechadas
 
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




05 fevereiro 2025

paul bowles / canção

 
 
 
Sereis escravos num castelo.
Para cada beijo haverá um esgar.
Para cada garrafa haverá um discípulo.
Somos livres e podemos subir às montanhas.
Mas para cada passaporte há uma entrada
E para cada cálice uma gota.
Os relevos dos antigos mosaicos perseguiam-nos
E para cada fragmento havia um soluço
E para cada punhalada um silêncio.
A nossa liberdade era uma prisão,
Mas para cada riso havia uma carícia;
Para o amor havia um sorriso.
 
                                                           1929
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008




04 fevereiro 2025

paul auster / desenterrar

 
 
II
 
Manguais, a brancura, as flores
da terra prometida: tudo
vais arrebanhando, esboroando-te no limiar
da respiração. Por uma palavra apenas
no ar deixámos de respirar, por uma
pedra, fendendo-se com a fome
dentro de nós-fúria,
desde a desordem dos ossos, aparentando-nos
ao verme. Tua única
testemunha é a parede. Apartada
de mim, mas nada desperdiçando,
espalhas-te sobre cada página em branco,
como se a tua voz tivesse rastejado
para fora de ti: e entrado
na brancura do pranto.
 
 
 
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
 



03 fevereiro 2025

jack gilbert / talvez ninguém deva ser aberto

 
 
Sabes, eu levo a sério as baleias.
O seu vasto movimento através da escuridão,
mudo.
É insuportável.
Ou Crivelli, com a sua fruta.
Os japoneses.
Ou o miolo branco dos melões,
sempre na escuridão.
Essa escuridão inviolada desde o início.
O pequeno vazio no centro,
na escuridão.
Como virgens.
A paisagem às escuras.
Iluminada por mim.
Iluminada como as minhas mãos
na câmera-escura
prendendo a fita na bobina
na escuridão absoluta.
O árduo trabalho
e logo as minhas mãos enormes e brilhantes.
Virgens.
Baleias.
Escuridão e Laudes.
Mas talvez ninguém deva ser aberto.
Os veados voltam ao comedouro
na súbita época de caça.
As raparigas encontram segundos amores.
Sémele foi fulminada
enquanto olhava a baleia
mesmo na sua pior panóplia.
Foi o notável Sócrates a arruinar Atenas.
Agora enlouqueceste
e eu fugi.
Não são os sonhos.
É este teu amor
que cresce em mim,
maligno.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020




02 fevereiro 2025

ricardo reis / manhã que raias sem olhar a mim,

 
 
 
Manhã que raias sem olhar a mim,
Sol que luzes sem querer saber de eu ver-te,
        É para mim que sois
        Reais e verdadeiros;
Porque é na oposição ao que eu desejo
Que sinto real a natureza e a vida.
        No que me nega sinto
        Que existe e eu sou pequeno.
E nesta consciência torno a grande
Como a onda, que as tormentas atiraram
        Ao alto ar, regressa
Pesada a um mar mais fundo.
 
23-11-1918
 
 
fernando pessoa
poemas de ricardo reis
imprensa nacional-casa da moeda
1994




01 fevereiro 2025

bernardo soares / e assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos...

 
 
 
L. do D.
 
E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa: uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância — irmãos siameses que não estão pegados.
 
s.d.
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




31 janeiro 2025

lawrence ferlinghetti / três donzelas foram de viagem

 
 
 
 
Três donzelas foram de viagem
Uma levava um pedaço de pão
                                      na mão
Uma disse
                Cortemo-lo e dividamo-lo
 
E chegaram a uma floresta vermelha
e no meio da floresta vermelha
                  encontraram uma igreja vermelha
e na igreja vermelha
                  havia um altar vermelho
e em cima do altar vermelho
                  estava uma faca vermelha
e agora chegamos à parábola
                                                     Elas
pegaram na faca vermelha e feriram
                                                      o pão
e onde o golpearam com a
                                       faca vermelha
                                       o pão era vermelho
 
 
 
lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972
 

30 janeiro 2025

saint-john perse / para festejar uma infância

 
 
 
I
 
    Palmeiras…!
    Então banhavam-te na água-de-folhas-verdes; e a água era também sol verde; e as criadas da tua mãe, grandes raparigas luzentes, moviam as pernas quentes perto de ti, que tremias…
    (Falo de uma alta condição, dantes, entre os vestidos, no reino de claridades revoluteantes.)

    Palmeiras! e a doçura
    de uma velhice de raízes…! A terra
  desejou então ser mais surda, e o céu mais profundo, onde árvores demasiado grandes, cansadas de um obscuro desígnio, urdiam um pacto inextricável…
   (Tive este sonho, dentro da estima: uma estadia segura entre os tecidos entusiastas.)
               
    E as altas
    raízes curvas celebravam
    o pôr-se a caminho das vias prodigiosas, a invenção das abóbadas e das naves,
   e aluz, então, em mais puras proezas fecunda, inaugurava o branco reino para onde levei, talvez, um corpo sem sombra…
  (Falo de uma alta condição, outrora, entre os homens e as suas filhas, que mastigavam certa folha.)

    Os homens tinham então
    uma boca mais grave, as mulheres tinham braços mais lentos;
   então, alimentando-se como nós de raízes, grandes animais taciturnos enobreciam-se;
    e mais longas sobre mais sombra se erguiam as pálpebras…
    (Tive este sonho, ele consumiu-nos sem relíquias.)
 
 
 
saint-john perse
para festejar uma infância
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016
 

29 janeiro 2025

roger wolfe / o tinteiro

 
 
 
Em toda a parte
há poemas.
Muitas vezes
os melhores
são os que deixas ficar
onde estão.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020




28 janeiro 2025

rené char / que viva!

 
 
 
Esta terra não passa duma esperança do espírito, dum
                                                       contra-sepulcro.
Na minha terra, as ternas provas da primavera e os
                              pássaros mal enfarpelados são
preferidos às metas longínquas.
A verdade espera pela aurora junto a uma vela acesa.
A vidraça da janela é desleixada. Isso que importa a
                                                     quem é atento?
Na minha terra não se interroga um homem emocionado.
Não há sombra maligna sobre a barca que mete água.
Bom dia sem mais, é coisa desconhecida na minha terra.
Só se pede emprestado o que se pode devolver aumentado.
Há folhas, muitas folhas nas árvores da minha terra.
Os ramos são livres de não carregarem frutos.
Não se acredita na boa fé do vencedor.
Na minha terra agradece-se.
 
 
 
rené char
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




27 janeiro 2025

billy collins / budapeste

 
 
 
A minha caneta move-se pela página
como o focinho de um estranho animal
com a forma de um braço humano
enfiado na manga de uma camisola larga e verde.
 
Vejo-a farejando incessantemente o papel,
determinada como se pensasse apenas
em forragear as larvas e os insectos
que lhe permitirão viver mais um dia.
 
Apenas quer estar aqui amanhã,
enfiada, talvez, na manga de uma camisa de xadrez,
com o nariz encostado à página,
obrigando-se a escrever mais umas poucas linhas,
enquanto eu espreito pela janela e imagino Budapeste
ou qualquer outra cidade onde nunca estive.
 
 
 
billy collins
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001



26 janeiro 2025

charles bukowski / a cara de um candidato político num cartaz de rua

 
 
 
lá está ele:
poucas ressacas
poucas discussões com mulheres
poucos pneus furados
nunca pensou em suicídio
 
não mais de três dores de dentes
nunca falhou uma refeição
nunca esteve na cadeia
nunca se apaixonou
 
7 pares de sapatos
 
um filho na faculdade
 
um carro com um ano
 
apólices de seguros
 
uma relva muito verde
 
caixotes do lixo bem fechados
 
será eleito.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018




 

25 janeiro 2025

bob dylan / agora acabou-se tudo, baby blue

 
 
 
Deves partir agora, leva o que precisas, o que pensas que há-de durar
Mas o que quer que desejes guardar, é melhor agarrá-lo depressa
Além está o teu órfão com a sua arma
Chorando como uma fogueira ao sol
Cuidado que os santos estão a passar
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
A estrada é para os jogadores, é melhor usares o teu bom senso
Leva tudo o que juntaste da coincidência
O pintor de mãos-vazias das tuas ruas
Está a desenhar padrões loucos nos teus lençóis
Também este céu se está a dobrar debaixo de ti
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
Todos os teus marinheiros enjoados, eles estão a remar para casa
Todos os teus exércitos de renas, estão todos a ir para casa
O apaixonado que acabou de sair pela tua porta
Tirou todos os seus cobertores do chão
Também o tapete se está a mover debaixo de ti
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
Deixa o trilho de pedras para trás, algo chama por ti
Esquece os mortos que abandonaste, eles não te seguirão
O vagabundo que bate levemente à tua porta
Está com as roupas que dantes usavas
Acende outro fósforo, vai e começa de novo
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
 
 
bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
bringing it all back home
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008