31 agosto 2024

adonis / aqueles que…

 
 
 
Aqueles que degolados atrás de ti à tua volta em ti e para ti
     tornaram-se nuvens portadoras de chuvas
Chuva de que a terra se veste
Ararat orquestra para os continentes de música de canto de
     poesia e de dança de escultura e de pintura horizontes e do
     mais longínquo quem pergunta
Serás tu outro para gostar de dizer a esse outro:
Tu és eu.
 
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016



30 agosto 2024

amalia bautista / tenho à mostra…

 
 
Tenho à mostra as coisas que deveria
esconder, o mais íntimo e obscuro.
E não só me podem ver o esqueleto,
tenho à mostra também a alma inteira.
 
 
 
amalia bautista
trevo
tradução de inês dias
averno
20212
 




29 agosto 2024

vincenzo cardarelli / gaivotas

 
 
 
Não sei onde as gaivotas fazem ninho,
onde encontram a paz.
Sou com elas,
em perpétuo voo.
Raso a vida
como elas rasam a água
em busca de alimento.
E amo, talvez, como elas, o sossego,
o grande sossego marinho,
mas o meu destino é viver
faiscando na tempestade.
 
 
 
vincenzo cardarelli
dez poetas italianos contemporâneos
trad. de albano martins
dom quixote
1992
 



28 agosto 2024

nuno júdice / praia

 
 
 
De manhã, o mar parecia saltar de dentro
das nuvens, como se não fosse ele que as
reflectisse. Depois, o sol restabeleceu
a ordem das coisas, o prumo voltou a in-
dicar o alto e o baixo, e até o ruído das
ondas deixou de nos submergir com a sua
insistência, deixando ouvir de novo o
bater dos toldos com o vento, os gritos
de um bando de gaivotas, e a tua voz,
atravessando toda a memória deste dia.
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997



 

27 agosto 2024

luiza neto jorge / 5 poemas para a noite invariável

 
 
II
 
Em cada braço uma herança de horizonte
desde o naufrágio de um eco
em cada árvore
trago-me no sol
à hora dos contornos
no sol a voz
é mais difícil
o tempo mais ausente
 
trago um filho
que parte o caule às estrelas
é louco e sofre
e parte o caule às estrelas
 
Tragicamente o sol
põe luz nos braços
A morte é uma feira aberta em lua
 
 
 
luiza  neto jorge
os sítios sitiados
poesia
assírio & alvim
1993
 




26 agosto 2024

antónio franco alexandre / é no meu corpo que morreste

 



 
é no meu corpo que morreste. agora
temos o tempo todo
ao nosso lado, como
um lodo onde dormitam as
 
conhecidas maneiras.
algumas nuvens se aproximam, e depois
se afastam, numa duvidosa
manifestação de imperícia;
 
os animais falantes
atravessam corredores iluminados,
embarcam na
 
sossegada lembrança dos sonetos,
o leve sono que pesou no dia.
é no meu corpo que morreste, agora.
 
 
 
antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983
 



25 agosto 2024

leonor castro nunes e marcos foz / a bifurcação dos ossos

 
 
 
6.
 
Um poema é uma coisa muito pouca
quando o termo de comparação é uma bicicleta, um chão de terra batida
e umas pernas que esqueceram a preguiça há duas ruas atrás.
 
Já é sabido o problema dos triângulos no que toca à antropologia.
O dois é o número dos mínimos agradáveis
condescendente com a exploração das pérolas e das flores nocturnas
que se vão encontrando por engano no peito dos pais
e nas mãos dos matemáticos.
 
Um poema é uma coisa muito pouca
para quem anda indeciso entre os números e a hermética,
os sonhos e os tremores, as palavras e o suicídio,
uma criança triste e a felicidade de uma espécie inteira.
 
 
 
leonor castro nunes
e  marcos foz
a bifurcação dos ossos
do lado esquerdo
2016
 



24 agosto 2024

albano martins / desta varanda, o mar

 
 
 
Quando os peixes se revoltam,
o mar solta as marés vivas
e fica na praia a ver.
 
*
 
Cuando los peces se sublevam
El mar suelta las mareas vivas
Y queda viendo en la playa.
 
 
 
albano martins
desta varanda, o mar
tradução para castelhano de
alfredo pérez alencart
edições simplesmente
2014





23 agosto 2024

antónio amaral tavares / geometrias



(Paul Strand. Wall Street. 1915)
 
 
 
Cinge com a geometria
da ferida das ruas
os seus habitantes
 
as cidades arrebatam
as distâncias e as vontades
 
são escuros os passos
no dia que começa
certos da igualdade dos dias
 
a morte é uma sombra
que amarra cada jornada
 
para a cidade são apenas vultos
que procuram onde passam
o calor de uma luz
 
trazem de casa todo o espaço que podem.
 
 
 
antónio amaral tavares
retratos de nova iorque
do lado esquerdo
2018
 



 

22 agosto 2024

alberto pimenta / jardim zoológico



 
 
dum lado da jaula
os que vêem
do outro
os que são vistos
 
 
e vice-versa
 
 
 
 
 
(No dia 31 de Julho de 1977, Alberto Pimenta, cidadão nacional n.º 0727697, esteve exposto entre as 16 e as 18 horas numa jaula do Palácio dos Chimpazés do Jardim Zoológico de Lisboa.
Em Abril de 1981, o Rádio-teatro de Estocolmo emitiu uma adaptação readiofónica do acto, da autoria de Margareta Ablberg. Na sequência disso, Per-Eric Gustavsson repetiu o acto no Zoo de Estocolmo, e o actor espanhol Alberto Vilar encenou-o em vários Jardins Zoológicos.)
 
 
 
alberto pimenta
IV de ouros
fenda
1992
 





 

21 agosto 2024

antonin artaud / eu, artaud

 
 
Eu, Artaud,
esforçado,
a livrar-me do mal,
 
mas por não saber quando isto terminará.
 
Não posso saber o farei amanhã,
não o quero saber,
mas quero saber que o mal terminará de imediato.
Não, também nunca terminará.
Então.
Sou o senhor dos elementos
e dos acontecimentos.
Já não quero ser tocado,
                   invadido
como sou invadido pelos outros,
já não quero ser adormecido por outros,
o sono é uma ilusão em que se continua a viver.
 
Não quero mais estas angústias mortais.
 
Não quero mais dormir.
 
Não quero morrer.
 
Não quero mais sonhar.
 
 
 
antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019



 

20 agosto 2024

charles bukowski / uma para o caminho

 
 
 
não é triste pensar em Sócrates
a tomar cicuta;
naqueles dias era uma escolha simples:
dentro ou fora.
nos nossos tempos, dentro desta superestrutura
confusa,
imagino-o como qualquer outro
velho bêbado sentado no bar
num sábado à tarde,
muito mais interessante que a maioria
claro
mas igualmente desamparado
ao confrontar-se com a sabedoria
acumulada dos
séculos.
provavelmente iria sair e tentar
comer alguém
e como todos nós
tentaria sobreviver à
noite
seguinte.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018
 



19 agosto 2024

ovídio / metamorfoses

 
 
 
“Porque me proibis a água? O uso da água é comum a todos.
Nem a natureza produziu um sol privado, nem o próprio ar,
nem a fluida água. É um bem público aquilo a que venho.
Porém, rogo-vos, suplicante, que ma deixeis beber. Eu não
me aprestava a lavar aqui os membros ou o corpo exausto,
mas a aliviar a sede. Ao falar-vos, a minha boca está seca,
a garganta ressequida, e por ela a custo a voz consegue sair.
Um golo de água será para mim néctar, e para sempre direi
que recebi com ele a vida: na água ter-me-eis dado a vida.
E condoei-vos também destes, que do nosso colo estendem
os bracinhos’ (e, por acaso, as crianças estendiam os braços).
Quem não se comoveria com as doces palavras da deusa?
Eles, porém, teimam em proibi-la, mesmo com as súplicas,
e juntam ameaças se não partir e, ainda por cima, injúrias.
E isto não lhes bastou. Agitaram o lago com os pés e as mãos,
e, saltando de um lado para o outro por maldade,
desataram a remexer o lodo mole do fundo do lago.
A cólera dela adiou a sua sede. De facto, já a filha de Ceo
não suplica mais àqueles seres indignos, nem suporta falar
abaixo da condição de deusa. Erguendo as mãos aos astros,
‘Que vivais neste lago para todo o sempre!’, exclamou.
 
 
 
ovídio
metamorfoses
livro VI
tradução paulo farmhouse alberto
livros cotovia
2018