03 janeiro 2021

jesús llorente / desordem

 
 
 
Por então vivi a minha temporada no inferno.
Quando não sabia quem era eu ou quem se empenhava
em desalojar de mim o meu lado mais ingénuo,
aquele tão suicida, tão acidentado e turvo
que corria ao mesmo tempo em todas as direcções,
passava as tardes
debaixo das aiadas sombras das árvores
e pensava que o amor
era um monte de sombras chinesas
entre as pernas dela.
Algumas manhãs tornava-se difícil respirar,
olhar-se ao espelho
com o coração como um papel amarrotado
e manter uma antiga compostura,
sentir o grito do sangue
e saber que a idade nos declarou a guerra
sem conversações prévias nem grandes ameaças
antes de te haver dado tempo
de proclamar a tua desolada independência.
Não há fronteiras entre a infância e a juventude,
apenas um precipício infestado de ramos salvadores
que te rasgam as mãos quando tentas
não cair com o peso dos teus anos e do teu estômago.
Profundo parece o abismo, e milagroso
um choque sem feridas imediatas
nem negras rochas com as tuas impressões digitais.
Crescer revela-se-nos com a tristeza repentina
e o próprio suor frio e pegajoso
dos minutos que sucedem ao pior sonho,
a própria angústia transcendente
dessas manhãs em que perguntas
quem diabo será esta que dorme ao meu lado,
como é possível que tenhamos bebido tanto,
por que não fiquei eu em casa,
e calculas os estragos, e choras em silêncio.
Crescer não parece grande coisa nem pinta a cara
com as cores do vencedor, não tem
cartão de visita, nem as unhas negras e afiadas,
nem se esmera com um fato cinzento nem seus olhos são de areia,
mas a pouco e pouco faz-se com tudo o que é teu:
as páginas amarelas, o teu sistema nervoso,
a caderneta de poupança, as linhas da tua boca,
ocupa-se das tuas coisas e rouba-te as merendas,
conta-te histórias à noite para adormeceres
até que o tempo é O Tempo com maiúsculas
e és como a morte num filme de Bergman.
 
 

jesús llorente
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000

 



02 janeiro 2021

wystan hugh auden / gare du midi

 
 
Chega do sul um comboio qualquer;
Muita gente cá fora; um rosto
Que não tem a recebê-lo o presidente acompanhado
De fitas e fanfarra: na sua boca um esgar
Enche o nosso olhar de compaixão e alarme.
Neva. Apertando uma pequena pasta,
Ele sai, decidido, para infectar a cidade,
Cujo terrível futuro pode ter acabado de chegar.
 
 
w. h. auden
antologia de poesia anglo-americana
de chaucer a dylan thomas
trad. antónio simões
campo das letras
2002




 

01 janeiro 2021

wislawa szymborska / allegro ma non troppo

  

Tu és bela – digo à vida –
mais esplêndida não podias,
de rouxinóis e de rãs,
de formigas e sementes.
 
E tento ser-lhe agradável,
bajulá-la, olhá-la nos olhos.
Sou sempre a primeira a saudá-la,
de humilde expressão na fronte.
 
Vou-lhe saltando ao caminho,
da esquerda, da direita,
e fascinada me elevo,
e de enlevo me estatelo.
 
Que marinho este cavalo!,
que silvestre é esta amora! –
nunca em tal houvera crido
se não tivesse nascido.
 
– Não encontro – digo à vida –
nada a que possa igualar-te.
Ninguém fará outra pinha,
nem melhor, nem menos bem.
 
Louvo-te a generosidade, a criatividade,
a decisão e o rigor –
e mais ainda – e mais além –
a magia – a negra e a branca.
 
Só para não te ofender,
te irritar, descontrolar.
Eu saltito sorridente
há uns bons cem mil anos.
 
Arranho a vida pela bainha de uma folhita:
Terá parado? Ouviria?
Só uma vez, por um momento,
esqueceu-se de para onde ia?
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998





31 dezembro 2020

andre breton / de pedra e cal

 
 
                                                                                             A Paul Eluard
 
 
 
Liberdade cor de homem
Que bocas voarão em estilhas
Telhas
Sob o impulso desta vegetação monstruosa
 
O sol cão poente
Abandona a escadaria dum rico palacete
 
Lento peito arroxeado onde pulsa o coração do tempo
 
Uma jovem nua nos braços dum bailarino belo e couraçado como São Jorge
Mas isto é muito mais tarde
Fracos Atlantes
 
 
Rio de estrelas
Que levas os sinais de pontuação do meu poema e dos poemas dos meus amigos
Nunca se deve esquecer que tu e esta liberdade vos tirei à sorte
Vos ganhei para só tu
Chegares deslizando por uma corda de orvalho
 
Este explorador em luta com as formigas vermelhas do seu próprio sangue
 
É até ao fim o mesmo mês do ano
Perspectiva que permite avaliar se estamos ou não a lidar com almas
19… Um tenente de artilharia confia-se a um rastilho de pólvora
 

                                                            *
 
Assim como o primeiro a chegar
Debruçado sobre a oval do desejo interior
Enumera estas noites seguindo o pirilampo
Conforme estenderes a mão para fazer a árvore ou antes de fazer o amor
 
Como toda a gente sabe
 
No outro mundo que nunca há-de existir
Vejo-te branco e elegante
Os cabelos das mulheres cheiram a folha de acanto
Ó vidros sobrepostos do pensamento
Na terra de vidro movem-se esqueletos de vidro
 

                                                           *
 
Toda a gente ouviu falar da Jangada da Medusa
E pode em rigor conceber um equivalente dessa jangada no céu
 
 
 
 
 
 
andre breton
claire de terre (1923)
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994




 

30 dezembro 2020

amadeu baptista / o centro do mundo

 
 
1
 
Pouco hei-de saber dos pássaros e das cores
nestes dias cinzentos de melancolia.
As árvores não repousam sob os olhos
com que as vejo transgredirem para sempre
o plano irreal da eternidade.
Na felicidade do azul perscruto a breve
fragmentação da natureza, os verdes inequívocos.
A sorte dos vermelhos, os amarelos inimagináveis
desta praia em que o mistério flui
para outra treva de mais silentes horas.
Em tudo ignoro e reconheço inviamente
o translúcido poder do infinito.
 
  
 
 
amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999





29 dezembro 2020

carlos poças falcão / preciso de me dedicar inteiramente

 
 
Preciso de me dedicar inteiramente
à arte de inspirar, levando a atmosfera
a todos os alvéolos, secando-os
por oxigenação e aquecimento, perfumando-me
na ventilação. Não importa expirar.
O que é preciso é ter os ossos prontos a erguer-se
e sobretudo (o principal) entrar no fogo
e só arder.
 
 
carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018





28 dezembro 2020

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno

 
 
2
 
subitamente estou afastado de todas as águas, rei de uma imensa ilha
forçosamente devastada, filas de escravos, camiões, barreiras
de onde balouçam delgados rostos brancos,
e um pouco adiante, entre carris, areia,
chamas de fogo escuro soltam-se da terra: mas
 
não é de crer sejam as portas dos infernos. escrevo
no luminoso écran onde os corpos se banham
silenciosos, com o firmamento
azul sobre o silêncio deles e
é quando as mãos se soltam quando o fogo, a luz
 
em lâminas separa o seco pó, era um jardim ao fim da tarde! depois
é o costume: cisternas, alçapões, planaltos,
a rua de cavalos, latas de leite, estrume,
e é quando o fogo fica esquecido e as boca escuras ardem
para sempre jamais
e o vento estranhamente tépido está pousado nas colinas
como uma coluna até ao céu
 
e é quando todas as palavras são uma baba muito límpida
que as bocas da terra deitam para fora da terra
sem escadas para descer com o chão muito liso
e só a bruma rasgada a gritar (dizem poetas)
poe este cheiro a coisa nenhuma dobrada
tão cheia de cuidados na manjedoura a louça
translúcida do ar
 
 
 
antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996

 



27 dezembro 2020

vasco graça moura / o mês de dezembro

 
 
IV
os namorados mortos não sabiam
e não queriam morrer, nunca ninguém
em verdade o quis já, mas acontece
que quase sempre morte e amor se tocam
 
dos namorados mortos não se diga
que já não têm destino nem são livres
sequer de os esquecermos mesmo quando
se lhes apaga o rosto o sítio o nome
 
os namorados mortos não são fáceis
tu, por exemplo, evitas enredar-te
com o que sabes deles, mas que sabes
além de alguma história ou da aparência?
 
 
 
vasco graça moura
o mês de dezembro
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007

 




26 dezembro 2020

elio pecora / os etruscos deixaram túmulos pintados

 
 
Os Etruscos deixaram túmulos pintados
dentro de cidades apagadas,
os Romanos ensoberbados
acabaram aterrorizados pelos Hunos,
catervas de escravos abeberaram-se
em nascentes de água verminosa,
mulheres esfarrapadas choraram,
choraram as rainhas de capas de seda.
 
Aquiles saiu da tenda
para vingar o amigo morto
por um herói mais incerto que feroz,
Penélope desfez a teia
para não descer e decidir-se,
Hamlet raciocinou com as sombras,
Faust escolheu o instante errado.
 
Eu, da minha parte,
sinto-me vestido de escuro
e espero o telefonema que adie
para amanhã o meu problema.
 
 
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
motivetto (1978)
tradução de simoneta neto
quasi
2008

 




25 dezembro 2020

julio cortázar / preâmbulo às instruções para dar corda ao relógio

 
 
 
     Pensa nisto: quando te oferecem um relógio oferecem-te um pequeno inferno florido, uma prisão de rosas, um calabouço de ar. Não te dão somente o relógio, muitos parabéns, que te dure muitos e bons, é uma óptima marca, suíço com não sei quantos rubis; não te oferecem somente esse pequeno pedreiro que prenderás ao pulso e passearás contigo. Oferecem-te – ignoram-no, é terrível ignorá-lo – um novo bocado frágil e precário de ti mesmo, algo que é teu mas não é o teu corpo, que tens de prender ao teu corpo com uma correia como um bracito desesperado pendente do pulso. Oferecem-te a necessidade de lhe dar corda todos os dias, a obrigação de dar corda para que continue a ser um relógio; oferecem-te a obsessão de ver as horas certas nas montras das joalharias, o sinal horário na rádio, o serviço telefónico. Oferecem-te o medo de o perder, de seres roubado, de que caia no chão e se parta. Oferecem-te uma marca, a convicção que é uma marca superior às outras, oferecem-te a tentação de comparares o teu com os outros relógios. Não te oferecem um relógio, és tu o oferecido, a ti oferecem para o nascimento do relógio.
 
 
 
julio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973

 



24 dezembro 2020

alejandra pizarnik / mendiga voz

 
 
E ainda me atrevo a amar
o som da luz a uma hora morta,
a cor do tempo num muro abandonado.
 
No meu olhar já perdi tudo.
É tão longe pedir. Tão perto saber que não há.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
los trabajos y las noches (1965)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020

 






23 dezembro 2020

luis garcia montero / tento sem companhia, reabitar uma cidade

 
 
Penso na solução confusa deste céu,
a chuva quase a cair no olhar
frouxo que as raparigas me dirigem
acelerando o passo, solitária,
no meio do sotaque que se escapa
como um gato pacífico
do meio das conversas.
E também penso em ti. É a exigência
de atravessar esta praça, à tarde, Buenos Aires
com nuvens e mil cavalos no céu,
cinco anos depois
de nós a termos conhecido.
 
Os que vêm de fora continuam a ver
este largo resumo de todas as cidades,
rios que de tão grandes
já não esperam o mar para sentir a morte,
cafés que encerraram
a imitação nostálgica do mundo,
com mesas de bilhar e habitantes que vivem
falando das suas perdas em voz alta.
 
Enquanto as pessoas correm para se refugiarem
da chuva, empurrando-me,
penso desorientado
na dor deste país incompreensível
e recordo a nuvem
das tuas perguntas e as tuas profecias,
seladas com um beijo,
na Plaza de Mayo
a caminho do hotel.
 
Testemunhas invisíveis para um sonho,
fizemos a promessa
de regressar ao fim de uns anos.
Parecias então
eterna e eleita,
como um qualquer destino inevitável,
e tomavas nota do número do nosso quarto.
Agora,
quando peço a chave do meu
e a alga da luz no vestíbulo
é chuva rancorosa,
vivo confusamente o desembarque
da melancolia,
em parte por ti, em parte porque é o tempo
água que nos fabrica e nos desfaz.
 
 

luis garcia montero
as flores do frio (1991)
as lições da intimidade
antologia
trad. de nuno júdice
abysmo
2018
 



22 dezembro 2020

joaquim manuel magalhães / o cabelo rasgado de carícias

 
 
O cabelo rasgado de carícias, o orvalho da camisa.
Peguei no vidro dos sais, no sabonete
com musgo de linho, no ígneo frasco
de champô à névoa tão tensa
da lâmpada turva. O sândalo,
o bálsamo servo com vapor de mal.
 
Quando danço contigo as romãs do jardim
ardem no seu sangue. Quando danço contigo
no terror do salão tu és a viagem
mais rápida do meu olhar. Pego num copo
donde te vi beber e esmago-o
como se te apertasse a mão.
 
 

joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990