17 dezembro 2025

ana hatherly / 463 tisanas

  
28
 
A civilização consiste em aprendermos a fazer naturalmente tudo o que não é natural. É daí que vem a ideia de angelismo porque o animal em nós consente tudo. Só de vez em quando é que sentimos uma estranha melancolia e sacudindo uma mosca dizemos apetecia-me tanto ir para o campo.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006




 

16 dezembro 2025

carlos poças falcão / olhar cada coisa

  
 
Olhar cada coisa, sondar-lhe as naturezas
abissais. É um trabalho de metamorfoses
com o tempo a tombar pelos eixos da matéria
no seu modo oculto, a sua crepitação
elementar. Haver sinais despercebidos
nesse tombo interior que tudo desarruma,
as pequenas unhas que desgastam, as áridas
luzes sem sentido. E as bifurcações, as ondas
propagadas como numa lavra, uma química
lustral. Ver os objectos nessa despedida
por si dentro, a maneira imóvel de caírem
arrastando as manchas, as sombras, as palavras.
 
 
 
carlos poças falcão
três ritos
arte nenhuma
poesia 1987-2012
opera omnia
2012




15 dezembro 2025

josé agustin goytisolo / autobiografia

  
Quando era pequeno
estava sempre triste,
e o meu pai dizia,
olhando-me e meneando
a cabeça: meu filho
não serves para nada.
 
Fui depois para a escola
com pão, até logos,
mas acompanhado
pela tristeza. O professor
grasnou: menininho
não serves para nada.
 
Veio, então, a guerra,
a morte – vi-a –
a quando acabou
e toda a gente a esqueceu,
continuei, triste, a ouvir:
não serves para nada.
 
E quando me puseram
as largas calças,
a tristeza de imediato
tratou de mudá-las.
Meus amigos disseram:
não serves para nada.
 
Na rua, nas aulas,
odiando e aprendendo
a injustiça e as suas leis,
perseguia-me sempre
a triste cantilena:
não serves para nada.
 
De tristeza em tristeza
fui caindo pelos degraus
da vida. E um dia
a miúda que eu amo
disse-me, de modo alegre:
não serves para nada.
 
Vivo agora com ela,
limpo e bem penteado.
Temos uma filha,
a quem, por vezes, digo,
também com alegria:
não serves para nada.



josé agustin goytisolo
iluminação do eu
antologia de poesia hispano-americana
tradução de daniel ferreira
contracapa
2021




 

14 dezembro 2025

alberto caeiro / acordo de noite subitamente

  
XLIV
 
Acordo de noite subitamente,
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas volto-me, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única coisa que o meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...
E esta sensação é curiosa porque só para mim é que ele enche a noite
Com a sua pequenez...
 
7-5-1914
 
 
 
alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas completos de alberto caeiro, fernando pessoa
presença
1994




13 dezembro 2025

júlio pomar / TRATAdoDITOeFEITO

  
XLI
 
 
     Não acredito que haja quem não tenha avistado uma vez que
                                                                                         fosse o avesso
do mundo.
Mas com receio
de se enganar ou de vir a ser
perseguido, quem aí esteve não sabe como
dizê-lo ou o que contar sem perigo.
E se acaso algo viram, atentaram depois
no que lhes foi possível discernir
do avesso do mundo?
 
Nas escolas são as crianças proibidas de
falar nisso umas às outras
e as professoras explicam-lhes que é para bem delas, para lhes
guardar a candura, é falso, é para
não se meterem em trabalhos e não correrem o risco
de pôr lado a lado afirmações opostas
tão verdadeiras umas como outras
porque ajustá-las entre si nunca deu resultado nem trouxe a paz
às famílias. Como explicar isto a quem vive na crença de que é preciso
escolher, trinchar, riscar do quadro o que está mesmo a ver que não é
preto nem branco, cru ou cozido, duro ou mole?
Assim as constituições regem os países, se escrevem as leis e
regulamentam os jogos,
se anunciam os modelos de vida, os exemplos
morais os feitos
heroicos os bravos
suicidas.
 
 
júlio pomar
poema TRATAdoDITOeFEITO
dom quixote
2004
 




12 dezembro 2025

joão pedro grabato dias / estou agora só no fim da avenida

  
 
Estou agora só no fim da avenida. Minha casa é aqui.
Sacudo a ligeira vertigem que me acode sempre que chego
Como um intruso que teme acordar a prata dos espelhos
e receia vê-la ondular, enrugar, nas pálpebras do fogo
paro, num fugaz pestanejo em que acendo um cigarro
e passo a ombreira para o visgo da solidão controlada.
 
Que fiz da minha raiva? Esgotei-a? onde estão, quais os culpados?
Onde esqueci (em que desvão, em que lavabo?) o alforge de enganos?
Todos vamos na culpa, como diria o Ioannes. Todos.
O nosso minúsculo e secreto maquinismo de masoquismo
ritmava o ofegar do sádico menor em cada esquina de tédio
todos álvaro de campos com imenso dó de si próprio
todos ceguinhos do acordéon do fado automático
uns mais e outros um pouco menos gozando a música do látego
cada um adiando, cada qual consentindo, todos indo na culpa…
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
uma meditação, 21 laurentinas e dois fabulários falhados, 1971
tinta da china
2021
 


11 dezembro 2025

luís miguel nava / o poema

  
 
É um arbusto, armados
ainda nele os últimos relâmpagos,
o poema.
 
A pedra cai no ventre
da água – a fruta poderosa, as páginas
onde a brancura se estilhaça, o lenço
como um relâmpago.
 
Os cães brilham ao alto
– são eles o arbusto
de imagens onde a força miúda
como um leão íris
a atravessa o poema encarcerado em sua própria imagem.
 
A pedra, digo, cai no ventre
da água como um punho
 
– agora está no fundo desta imagem.
 
 
 
luís miguel nava
películas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002




 

10 dezembro 2025

eugénio de andrade / a mão no ombro

  
 
 
Como se tu alumiasses
ainda
cada degrau, cada palavra,
e a noite não fosse
a única porta estranhamente
branca,
eu subia sem conhecer o ombro
onde apoiava a mão.

 
 
eugénio de andrade
rente ao dizer
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





 

09 dezembro 2025

joão miguel fernandes jorge / eugénio de andrade ao descer belmonte

  
 
Os olhos, verde claro, envolviam a água e a vila.
Erguiam a linha da manhã,
levantam a âncora
na madrugada marítima e as velas
não deixam sombra na baía da serra – os olhos
a um tempo insolentes, divertidos e duros
arco num verde de carícia, ao longo
do mastro; no ar translúcido de quem desce de
Belmonte para o plaino de Caria. Os olhos
sobrepunham a um rumor de fundo – os remadores
ergueram a direitura do tronco, viram o verde
incessante, murmúrio contido de surpresa, grito
de saudação – quebrar da vaga.
À partida da serra, à entrada da barra
prendia-se um coração exposto ao vento
movia rostos vazios
 
por detrás ficara a cidade. Nas ruas e praças
o rapazio fazia-se à vela, navegava por entre o
cume dos montes: um grupo de homens atravessa na
Cordoaria, o que restou do jardim – onde ficou
Belmonte? – com uma expressão de
destroço fala grosseiramente. Era
por demais manhã, os remadores estendiam o braço e
retesavam o remo
apontaram o barco na direcção do mar.
 
Nas casas, as mulheres passam o vinho pela vela,
                                       pano de serapilheira.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004




08 dezembro 2025

joaquim manuel magalhães / prosa


 

UM
 
Devemos ir pelos versos muitas vezes, fixá-los fora dos modos usuais aos actores cobertos de adereços, representar nas palavras as fugidias imagens, os vazios dos sons adormecem nas fogueiras, a mudante linguagem vem como as aranhas pelos revoltos mercados dos homens, tudo seco, a seiva entre a areia e das flores. Antes de os destinos estarem nomeados, o corpo escuro e o claro dos astros dançam a tua mão, muda, muda, ludibria a negra encantação, as estrelas vês como flutuam no pão diário, no sal esmagado das comidas, no dinheiro com que compras coisas? Estende-te com elas sobre a cama, pousa num peito a brilhante boca, estão à espera que digas o destino até te despedires. Transformados na terra leva-nos o ar pelas maiores derivas para tornarmos esquecidos a um novo corpo de suplícios e não sabemos onde. As fogueiras acesas no largo de teatro devem aquecer no escuro o teu corpo vigilante. As sombras das árvores dançam-te à roda e nas mãos estendidas passa o fumo. O teu corpo está sozinho, desconhece quem o imagina de roupas grossas, a barba por fazer avermelhada por um fogo. Podiam defender-te o peito do frio de janeiro, acertar-te o cinto com os braços, viria ver-te um gato pelo muro, as névoas da boca subiriam com o fumo no areão molhado do orvalhos. Tens esta casa para repousar, jogar, deixar a roupa suja. Com as palavras destes versos atraio os planetas ao teu curso, os corpos benfazejos que não vês e vais sentindo enquanto representas. Esta qualidade que tenta aproximar-se dos desígnios arrasta sobre o corpo rios, lagos, aves de verão, vegetações. Vêm os mortos sobre o mar que são os vivos do futuro escutar-te. Não deixes que parta o fogo ou se avizinhe. Transformam este texto numa víbora para te morder.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
antónio palolo
na regra do jogo
1978
 



 

07 dezembro 2025

ruy belo / na noite de madrid

  
 
                                     para o João Miguel Fernandes Jorge

 
 
Na noite de Madrid eu vi um homem morto
Jazia ali como uma afronta para os vivos
que voltavam dos bares com música nos olhos
com estrelas na testa e festa nos ouvidos
e passavam de táxi a boa velocidade
Há quanto tempo o homem jazeria ali
à superfície escura do asfalto
já meio devolvido à terra nossa mãe?
Não o cobria o manto dos heróis
nenhum clarim tocara em sua honra
Como o confortaria a santa madre igreja?
Tombara apenas imolado ao dia-a-dia
Pagara com a vida a paz da consciência
de toda uma cidade que dormia
E ele crescia alastrava na estrada
e assumia inesperadas proporções
quando há bem pouco ainda se reduzia ao dia
Quem seria? Quem fora?
Que jornal conteria a imensidão do nome
de quem como um insulto ali jazia?
Que pensamentos próximos tivera?
E o que levaria ele nos bolsos?
Donde viria? Sorriria? Onde ia?
Fora criança? Sonharia ser feliz?
Mudaria de vida na manhã seguinte?
Brincara alguma vez naquela mesma rua?
Fora criança ali onde profundamente o vi?
Teria soluções para problemas que tivesse?
Seria porventura um bom chefe de família?
Disporia da consideração da vizinhança?
Era bom funcionário? Homem de futuro?
Mas já naquele momento o rosto lhe cobriam
pois não conseguiria ver nem as estrelas
nem ao menos a luz dos citadinos candeeiros
Havia curiosos e polícia havia uma ambulância inútil
para quem como cama só teria a pedra fria
«Aonde vai?» - perguntou-me o homem do táxi
«- Eu tenho cinco mil pesetas - respondi-lhe
Leve-me pelas ruas da cidade até nascer o sol
talvez ele possa dizer-me alguma coisa
daquelas muitas coisas que gostava de saber
(o sol é hoje uma das minhas poucas soluções)
Passe longe do corpo por favor»
Lembrei-me de leituras soterradas
de súbito subiram-me à memória cenas esquecidas
Samaritano eu? Mais um levita
que calmo procurava a promessa do dia
Inquietação ou pena? Sombra de metafísica?
Política? Moral? Lição? Comportamento?
Queria alguma coisa? Não sabia
Posso-vos garantir que não sabia
Só sabia que olhava e nenhum mar havia
 
 
                            Póvoa de Varzim, à vista do mar, 10 horas da manhã
                                                                do dia 29 de Dezembro de 1971

 
 
ruy belo
dispersos
todos os poemas III
assírio & alvim
2004




06 dezembro 2025

álvaro de campos / sim, está tudo certo.

  
 
Sim, está tudo certo.
Está tudo perfeitamente certo.
O pior é que está tudo errado.
Bem sei que esta casa é pintada de cinzento
Bem sei qual é o número desta casa —
Não sei, mas poderei saber, como está avaliada
Nessas oficinas de impostos que existem para isto —
Bem sei, bem sei...
Mas o pior é que há almas lá dentro
E a Tesouraria de Finanças não conseguiu livrar
A vizinha do lado de lhe morrer o filho.
A Repartição de não sei quê não pode evitar
Que o marido da vizinha do andar mais acima lhe fugisse com a cunhada...
Mas, está claro, está tudo certo...
E, excepto estar errado, é assim mesmo: está certo...
 
5-3-1935
 
 
álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993




05 dezembro 2025

vasco graça moura / a sombria beleza do tema

  
 
«a sombria beleza do tema
da estação e da morte» diz o Kundera algures.
nesta imagem desenha-se um olival perdido
de surdas tonalidades, atrás do cais de onde
 
se despenhou alguém, alguma forma
aflita e trágica, vinda do fundo súbito de uma
paisagem tão modesta, sob as vozes
de quem chega a quem parte, ou simplesmente foi ali para olhar
outros seres de passagem, outros rasos destinos sem anjo para o
     remorso.
há flores, dirás, algumas flores diurnas, confiantes,
que outras mãos hão-de dispor na jarra, relembrada
junto à parede branca, mas essas são um ténue
 
sopro de acaso, ou um fulgor antecipando outra nudez.
quando a luz já se tornou mais húmida e quase musical,
e através da folhagem a harpa do desgaste estremeceu,
e passaram as horas e passaram
 
pesadas, contadas, divididas, já não dói
a beleza de alguém que vai partir, a sombria beleza
da sua ocultação intransmissível, uma brisa leve misturar-se-á
ao cheiro de óleo, aos acenos afectuosos, aos
 
ruídos do tema da estação. é tudo. à noite o olival
será uma massa negra de clareiras adiadas,
atrás do cais sem ninguém e sem tempo, como sempre acontece
nas pequenas estações de uma província da alma.
 
 
 
vasco graça moura
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001