10 novembro 2025

alain bosquet / três poemas

  
 
3
Em nome das nostalgias
que formam este cristal.
Em nome do verbo massacrado
donde saem as cegonhas.
Em nome do mistério antigo
que junte a montanha
aos cetáceos do crepúsculo.
Em nome do gosto pelo desgosto
vigilante no fundo da inocência.
Em nome de uma enfermidade
Que diz ser a nossa glória.



alain bosquet
trad. de eugénio de andrade
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990




 

09 novembro 2025

álvaro de campos / chove muito, chove excessivamente...

  
 
Chove muito, chove excessivamente...
Chove e de vez em quando faz um vento frio...
Estou triste, muito triste, corno se o dia fosse eu.
 
Num dia no meu futuro em que chova assim também
E eu, à janela de repente me lembre do dia de hoje,
Pensarei eu «ah nesse tempo eu era mais feliz»
Ou pensarei «ah, que tempo triste foi aquele»!
Ah, meu Deus, eu que pensarei deste dia nesse dia
E o que serei, de que forma; o que me será o passado que é hoje só presente?...
O ar está mais desagasalhado, mais frio, mais triste
E há uma grande dúvida de chumbo no meu coração...
 
20-11-1914
 
 
 
álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993




08 novembro 2025

louise glück / canção de embalar

  
 
Descansa agora. Foram
demasiadas emoções.
 
O crepúsculo, depois a noitinha. No quarto
cintilam pirilampos, aqui, acolá, aqui, acolá,
e a funda doçura do Verão entra pela janela aberta.
 
Não penses mais nestas coisas.
Ouve-me a respirar, ouve-te a respirar
como os pirilampos, cada pequeno sopro
é um clarão onde aparece o mundo.
 
Já cantei muito para ti na noite de Verão.
Hei-de conquistar-te, no final: o mundo não pode conceder-te
esta visão contínua.
 
Deves aprender a amar-me. Os humanos devem aprender a amar
o silêncio e o escuro.
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020




07 novembro 2025

konstandinos kaváfis / para ficar

  
 
As horas uma da noite havia de ser,
ou uma e meia.

                       Num canto do tasco;
por detrás da divisória de madeira.
Além de nós os dois o sítio completamente vazio.
Um candeeiro de petróleo mal o iluminava.
Dormia, à porta, o criado por causa da demora.
 
Não nos veria ninguém. mas já
nos tínhamos acalorado tanto,
que nos tornámos inadequados para precauções.
 
As roupas entreabriram-se – muitas não eram
pois ardia um mês de Julho divino.
 
Deleite de carne por entre
as roupas entreabertas;
rápido desnudamento de carne – cuja imagem ideal
atravessou vinte e seis anos; e agora veio
para ficar nesta poesia.
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
I (1919-1932)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005




06 novembro 2025

charles bukowski / sol a descer

  
 
ninguém lamenta que eu esteja de partida,
nem eu;
mas devia haver um trovador
ou pelo menos um copo de vinho.
 
creio que isto incomoda principalmente os jovens:
uma morte lenta e pacífica.
ainda faz um homem sonhar;
anseias por um velho veleiro,
a vela branca com sal incrustado
e o mar a sacudir indícios de imortalidade.
 
mar no nariz
mar no cabelo
mar no tutano, nos olhos
e sim, aí dentro do peito.
será que sentiremos saudades
do amor de uma mulher ou da música ou da comida
ou do salto do grande e furioso cavalo
musculado, coiceando torrões de terra e destinos
ao alto e para fora
no momento exacto em que o sol se põe?
 
mas agora é a minha vez
e não há majestade nisto
porque não houve majestade
antes
e cada um de nós, como vermes que escavaram
                                   a saída de dentro de maçãs,
não merece qualquer reprimenda.
 
a morte entra-me na boca
e serpenteia ao longo dos meus dentes
e pergunto-me se tenho medo deste
morrer mudo, sem arrependimentos, que é
como o murchar de uma rosa.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018




 

05 novembro 2025

federico garcia lorca / adelina em passeio

  
 
Não tem laranjas o mar,
nem Sevilha tem amor.
Morena, que luz de fogo!
Empresta-me o guarda-sol.
 
Pôr-me-á a cara verde
– sumo de lima e limão –.
Tuas palavras – peixinhos –
nadarão em seu redor.
 
Não tem laranjas o mar.
Ai amor.
Nem Sevilha tem amor!
 
 
 
federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013
 



04 novembro 2025

juan ramón jimenez / às vezes, sinto

  
 
137
 
Às vezes, sinto
como a rosa
que serei um dia, como a asa
que serei um dia;
e envolve-me um perfume, alheio e meu,
meu e de rosa;
e um vaguear me prende, alheio e meu,
meu e de pássaro.
 
 
 
juan ramón jimenez
antologia poética
tradução de josé bento
relógio d’água
1992




03 novembro 2025

john ashbery / na quinta do norte

  
 
Algures alguém viaja furiosamente ao teu encontro,
A uma velocidade incrível, viajando dia e noite
Por entre nevões e calores do deserto, transpondo torrentes, atravessando desfila-
                                                                                                           [deiros.
Mas saberá ele onde te encontrar?
Reconhecer-te-á quando te vir?
Dir-te-á a coisa que tem para ti?
 
 
Aqui quase nada cresce,
E contudo os celeiros estão a abarrotar,
As sacas de grão empilhadas até às traves do tecto.
Os ribeiros correm docemente, engordando o peixe;
Pássaros escurecem o céu. Será que basta
Deixar a malga do leite lá fora à noite,
Pensar nele às vezes,
Às vezes e sempre, com sentimentos confusos?



john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992



 

02 novembro 2025

bernardo soares / escrever é esquecer

  
 
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida — umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.
 
 
Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




 

01 novembro 2025

rui caeiro / saber que o verão

  
 
Saber que o Verão foi uma vez e pronto, saber que a paixão idem idem, mas saber também que tudo se passa como se não, isto é, como se o não soubesse ou o Verão durasse sempre.
E também por isso não devem escrever-se poemas de amor: ficam a mirrar e a desbotar no papel pelos séculos dos séculos.
 
 
 
rui caeiro
sobre a nossa morte bem muito obrigado
baba de caracol
maldoror
2019





31 outubro 2025

rui diniz / ode aos ateadores de incêndio

  
Na nudez dos mares pousei mãos curtidas.
Acendi o fogão no quarto. «Cheira aqui
a petróleo.» Era com efeito um cheiro de lacre,
de ganchos para o cabelo queimado ao
rubro. Fiz também queimar nessa noite alguns
castiçais de velas – espécimes preciosos
e raríssimos. Havia sobre as mesas e
o soalho fósforos franceses. Pus fogo
a uma vivenda junto ao mar. fiz isso em
memória de Ana de Rivera que passava as
noites de inverno no seu quarto,
queimando fósforos.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




30 outubro 2025

rui lage / da limpeza das matas



 

 
Desconhecem os versos
que escreves na terra
a firmes golpes de enxada
ou que recolhes em cestos,
maçãs de sol,
rotundos pêssegos
 
líricos frutos para os quais
não há leitores.
 
Ignoram como te segues
no voo da perdiz
quando o machado abala o tronco
no coração da floresta.
 
 
 
rui lage
corvo
quasi
2008
 



 

29 outubro 2025

rui nunes / vésperas portuguesas



 

 
o dia corre de poente para nascente, a chuva
é um lençol tenso sobre os velhos que separam
as lembranças, com palavras que não chegam
a dizer: esquecem os subterfúgios do tempo
e avançam cambaleantes pelas grandes fissuras
entregues ao despovoamento alucinante
 
no interior dos carros, os crimes
são ligeiras confidências
 
 
 
rui nunes
ofício de vésperas
relógio d’ água
2007