26 outubro 2025

rui knopfli / o velho

  
 
Não envelheço. Torno-me antigo.
O velho sempre viveu em mim,
sempre o pressenti no olhar
magoado demorando-se nas coisas,
em certa lentidão não premeditada
dos gestos e nas lembranças confusas
de uma outra recuada idade.
Sempre aflorou na mão e na estima
triste que se estende aos amigos,
na aresta de desconsolo que espreita
as minhas horas de amor.
O velho sempre viveu em mim.
Eis que, enfim, o reboco
se lhe começa a assemelhar.
 
 
 
rui knopfli
maxila triste
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982
 



25 outubro 2025

marta navarro; paola d´agostino / dos meus quartos de hotel

  
 
 
Dos meus quartos de hotel
relembro os objectos que fui deixando para trás
Em Granada um chapéu-de-chuva grená
em sítio incerto um soutien branco
em Andorra um gorro lilás
em Lyon a travessa de prata da avó
Lista cacofónica com que pretendia deixar a minha marca
uma forma antecipada de inscrição na pedra
e a aprendizagem lenta do desapego
 
 
 
 
marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014




 

24 outubro 2025

ana paula inácio & sandra costa / menos uma hora nos açores

 

 
9.
 
Devia ter sido o último poema do ano.
Um sino na paisagem a marcar
as horas. Um desalinho momentâneo
como uma arritmia, demasiado breve
para ser sombra, não ousando ser
árvore para que nenhum pássaro
ali pouse e seja música.
 
Chegando sempre tarde,
é o primeiro, e nele ressoa
a enumeração de todos
os elementos que nos circundam
mas que, por inabilidade
semântica ou biológica,
são sempre distância.
 
 
 
ana paula inácio & sandra costa
menos uma hora nos açores
volta d´mar
2022








23 outubro 2025

paulo campos dos reis / a empregada do café



 

 
A empregada disse olá
acordando-me da distância.
Com a condescendência justa
para quem, como eu
ocupou a mesa
para não beber café.
 
O que deseja, disse.
Pergunta bonita.
Um café, respondi.
 
 
paulo campos dos reis
habilitações literárias
volta d´mar
2022
 




 

22 outubro 2025

sebastião belfort cerqueira / sexto poema sobre o mar

 


 

 
Quando eu morrer
Deitem-me as cinzas
Quais cinzas
Deitem-me inteiro ao rio
E deixem-me seguir
O trilho frio
Até ao mar
 
Quando eu morrer
E me acharem na margem
Só vos peço um empurrão ligeiro
 
Depois vou a boiar
Como um pau
 
Vou a dormir
Como uma pedra
 
Para encravar
A engrenagem do maior cargueiro.
 
 
 
sebastião belfort cerqueira
está um dia lindo
edições sempre-em-pé
2021
 




21 outubro 2025

joão miguel fernandes jorge / e tu perguntas

  
 
E tu perguntas
fechando o corpo e a casa
o que fazemos aqui
como saímos daqui?
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019






20 outubro 2025

egito gonçalves / outubro

  
 
Os mortos esperam o frio de Novembro
enquanto as pétalas dos crisântemos se vão definindo
neste meio de Outubro, hereditariamente mortiço.
Os mortos estão esperando! Os cardíacos, os fuzilados,
os arrogantes, os tuberculosos, os suicidas
estão esperando as sus flores, o seu pretexto
para se imporem ao coração dos existentes
e manejarem a saudade como um látego,
rasgando a carne dos joelhos que amaram.
É a hora de nos ditarem a contemplação de pequenos objectos
sepultados no fundo de gavetas incómodas…
é a hora de se transformarem em flechas
e apresentarem os retratos fidelíssimos
para serem salgados de lágrimas veementes.
Ridículo oferecer-lhes um passeio no rio,
constelações em marcha, conferências sobre o sexo,
magazines ilustrados, foguetes luminosos…
o choro é essencial; Novembro não esquece,
reforça os seus pilares, não tardará a erguer-se.
Com os relógios quebrados contra o tempo
os mortos aguardam embrulhados nas horas que não têm,
enquanto as pétalas dos crisântemos já se torcem, disformes,
como a dor que depositaremos sobre os túmulos.
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020





 

19 outubro 2025

ángél gonzález / o outono atravessava

  
 
O Outono atravessava
as colinas de frágeis
tremores. Cada
folha caída
fazia estremecer uma montanha.
 
Leve rumor de luzes e de brisas
rolava pelo vale, aproximava-se.
Os pássaros deixavam bruscamente
trémulos os ramos
caindo rumo ao céu, arrebatados
por uma força estranha.
 
As carnosas urtigas
comprimiam-se
como um rebanho
inquieto. Levantavam da água
a cabeça, os juncos.
As verdinegras silvas
cresciam.
Imperceptíveis, mais delgadas
pela tensa postura de quem espera,
as ervas, desejantes…
                                        E tu chegavas,
e uma amarelenta paz de folhas caídas
refazia o silêncio atrás de ti.
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 



18 outubro 2025

josé saramago / até ao fim do mundo

  
 
É tempo já, Inês, o mundo acaba
Em que amor foi possível e urgente;
A promessa talhada nessa pedra,
Ou é cumprida hoje, ou tudo mente.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018




17 outubro 2025

josé gomes ferreira / melodia

  
 
II
Há anos de raiva
que te busco em vão.
Melodia!
 
No sopro dos meus versos,
nas fontes com sede,
nas portas que rangem,
na cólera do mar aberto…
 
Mas quem te ouve, Melodia,
para além do contorno do silêncio?
 
Pobre voz que trago em mim
e há-de morrer ignorada
nas trevas sum sol profundo
sem luas de superfície.
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972




16 outubro 2025

jorge luís borges / a luís de camões

  
 
Sem cólera nem mágoa arromba o tempo
As heroicas espadas. Pobre e triste,
À nostálgica pátria regrediste
Pra com ela morrer nesse momento,
O capitão, no mágico deserto.
Tinha-se a flor de Portugal perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.
Quero saber se aquém da derradeira
Margem compreendeste humildemente
Que o império perdido, o Ocidente
E o Oriente, o aço e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana
Mudança) em tua Eneida lusitana.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o  fazedor (1960)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




15 outubro 2025

henri michaux / je vous écris d´un pays lointain

  
2
 
Quando se passeia no campo, confidencia-lhe ela ainda, é possível encontrar-se no caminho massas consideráveis. São montanhas e, mais cedo ou mais tarde, temos de vergar os joelhos. Não serve de nada resistir, não poderíamos avançar mais, nem que nos fizéssemos mal.
 
Não é para magoar que o digo. Poderia dizer outras coisas, se quisesse realmente magoar.
 
 
 
henri michaux
(escrevo-lhe de um país distante, 1942)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999
 



14 outubro 2025

billy collins / como sempre

  
 
Depois de nos termos separado, os barcos
continuarão a sair do cais de madrugada.
O salmão batalhará até às piscinas*,
um mês seguir-se-á a outro na parede.
 
A magnólia florirá
e a abelha, a nobre abelha –
vi uma lá atrás na minha caminhada –
abrirá caminho para o botão.
 
*Penso nas piscinas como lugares onde os salmões vão para se repro-
duzir, para depositar os ovos depois da difícil viagem corrente acima.
(Billy Collins)

 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco José craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023