08 setembro 2025

izidro alves / metanoia

  
Se fosse hoje
Tinha tirado um curso superior
Talvez de latim e grego
Para falar com os deuses
E nunca nunca nunca
Esta maneira tosca de fazer versos
Este jeito de arquear as mãos
De alimentar os pombos
Nos jardins públicos
Com flores amarelas nos passeios.
 
 
 
izidro alves
cédula do mundo
labirinto
2025




07 setembro 2025

filipe marinheiro / porque nos prendemos a um lugar seguro?




 

 
porque nos prendemos a um lugar seguro?
se o mais importante é a calma, a pureza, a unidade e o modo
como as árvores de mar se enraízam no solo.
– luminoso solo em potência.
 
 
 
filipe marinheiro
a morte do amor
cordel d’ prata
2025
 


 

06 setembro 2025

joão rebocho / a morte

  
 
a morte
caminha ao nosso lado,
carregamo-la às costas,
a vida toda
alimentada na boca,
debruçados no poço;
a de quem nos interessa e amamos,
 
sempre a morte,
do profundo sono
ao cume do Everest,
e também pesa o
medo dela,
trinta vezes mais,
e não peses que é só tédio
repetido
 
 
 
joão rebocho
altas temperaturas
fernando dos santos
2024
 


05 setembro 2025

herberto helder / aberto por uma bala

 



 

 

Aberto por uma bala
de fora para dentro. Como um olhar de Deus,
ou da paisagem,
até à raiz do nervo de que vivo todo.
Aberto, descoberto.
Ou fechado inteiro para sempre.
E ao furo imaginário queimado
reflui o sangue do mundo.
O nó mais duro, o puro nó da carne
– o centro.
Furioso fulcro do espírito.
É aí que penso.
Por onde falo ainda tão depressa
que ressuscito, ardido.
 
 
 
herberto helder
flash
a cura di carlo vittorio cattaneo
empira
roma
1987






04 setembro 2025

cesare pavese / paisagem VIII

  
 
As recordações começam ao cair da tarde
com o hálito do vento a erguer o rosto
e a escutar a voz do rio. A água
é a mesma, na escuridão, dos anos mortos.
 
No silêncio da escuridão eleva-se um murmúrio
onde passam vozes e risos distantes;
acompanha o rumor uma cor inútil,
de sol, margens e olhos claros.
Um Verão de vozes. Cada rosto contém
como um fruto maduro um sabor passado.
 
Cada olhar que volta conserva um gosto
a erva e a coisas impregnadas de pôr-do-sol
na praia. Conserva um hálito de mar.
como um mar nocturno é esta vaga sombra
de ânsias e arrepios, que o céu roça
e que volta ao fim de cada dia. As vozes mortas
assemelham-se à rebentação daquele mar.
 
 
 
cesare pavese
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997





 

03 setembro 2025

claudio rodríguez / sem epitáfio

  
Levanta voo entre os flocos cegos
de cada letra. Solta
uma inocência que então se grava
mesmo ao meio da alma. Deixa, deixa
tal mistério, e tal proximidade,
tal segredo que é já renascimento.
A vida pressente-se. Vai, vai. Foi
essa harmonia de pesar e graça,
tal a felicidade que é verdade
e agora alumia o teu ofício
com o seu silêncio fugidio, em som
sereno como de água ao meio-dia.
Levanta voo. Não entres
neste corpo total:
onde amanhece.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019





 

02 setembro 2025

joan margarit / chegas tarde ao teu tempo

  
Chegas tarde ao teu tempo. palavras duras
que escuto agora como uma derrota.
Mas já não sei de nenhum combate,
nem que tempo era o meu. É uma pena
não se ser ninguém, ter errado
o comboio, perdido as malas,
adormecido no banco, passar ao largo,
e achar-se agora sem roupa limpa,
cansado, num hotel reles de uma só
e má estrela, que deve ser a minha.
Prescindirei de tudo menos do poeta
que fica do desastre. Fingirei ver
que no fim de contas errei o século:
isto será Paris e eu Verlaine.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




01 setembro 2025

nizzar qabbani / sobre o amor marinho

  
 
sou o teu mar, senhora minha,
e não me perguntes da viagem
nem do tempo da partida e da chegada:
só tens de
esquecer os impulsos da terra
e obedecer às leis do mar
e entrar-me como peixe enfurecido;
racha o navio em dois pedaços
e o horizonte em dois pedaços
e a minha vida em dois pedaços
 
 
 
nizzar qabbani
um árabe é um árabe é um árabe, um árabe
breve antologia de poesia árabe
versões e traduções de joana santos e andré simões
contracapa
2022




31 agosto 2025

maria do rosário pedreira / nesse verão…

  
Nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos
andaram aos gritos sobre as ondas. A beleza excessiva
das crianças arrombou os espelhos; e as raparigas,
surpreendendo a intimidade dos pais, enlouqueceram
nos corredores e foram perder-se, também elas,
na volúpia dos dias. Nas árvores centenárias
 
rebentaram frutos que inflamavam a concha das mãos
e escorregavam para a boca com a pressa dos nomes
proibidos. O sol queimou as páginas do livro
interrompido na violência de um poema e revirou
os cantos do único retrato que resistira à moldura
do tempo. de noite, os rapazes deitaram-se às baías
 
atrás das estrelas; e os amantes, incomodados
com a exiguidade dos quartos, foram fazer amor
nos balneários frios da praia e acordaram nas vozes
um do outro. Já não sei o que disse e o que disseste:
 
o verão desarruma os sentimentos.
 
 
 
maria do rosário pedreira
o canto do vento nos ciprestes
gótica
2001





 

30 agosto 2025

marta cristina de araújo / hexagrama kan, depois de finisterra

  
 
TRONO SOBRE TRONO
 
 
O perigo é companhia para o soberano
que instalou seu trono sobre a dinastia
seu projecto (recto) vem do longe donde
se ameaçam o riso e o corpo o movimento
o segredo  (segrego) a fala o linguajar
do dia anterior continuadamente.
Nem todos são os súbditos, quem o conduziu
ao trabalho do quotidiano (ano) inquieto
entre o sono iniciado tarde nas manhãs?
 
Breve é o receio de (o meio) deslocar-se
da paisagem mar apreendida extensa
entre o fio a fio assíduo da janela.
O momento é pouco para olhar as tintas e a criança
acode à chamada urgente (gente) dos vizinhos
Surpreende (prende) o plano do levantamento
apropriado à sede (sede de melancolia)
no curso das leis seu código fechado
em área de confusos (usos) dos lugares.
 
Não é de desistência ainda o tempo
de há muito em sua mão a rédea de colares:
eu estou aqui segura e cúmplice
nada pretendo (entendo) além do encadeado
de anéis colhidos (escolhidos) devagar.
Talvez seja amor o medo da assistência
talvez seja amor a culpa d enão ter
o objecto (o ente) predilecto que refaz
solene esta alegoria do frágil (ágil) vidro
e nos separa (pára) à margem do poder.
 
 
 
marta cristina de araújo
os poemas da minha vida
miguel veiga
público
2004
 




29 agosto 2025

maria velho da costa / dois poemas

  
1.
Nem sei estimar das vestes sem costura
o fito e alba
ou louvar da tala dos instantes
um só vermelho.
Pelas moradas ledas e subtis
à passagem dos castos e escolhidos
                                                        sustenidos
dos lidos
nada soube
que mais que o sáurio verde não prossiga.
Nem escolhido é o signo por lavrado
entre a testa e o chão
no húmido verdor dalguma víscera.
Se casas são plantadas com perícia
e arrematados autos lautos
louvados por tão cautos
seja a lhaneza desta a palha da debulha
o verde devolvido em amarelo.
É que não sei dos nomes com firmeza
mais que o início quedo e boçal talo
nem companhia posso ou artefactos
que o langor da lagarta não assista
que não consinta e emergir dos cactos.
 
 
2.
No entretanto do tempo é que o verde resiste
o interstício manso     a prova do contínuo
que quebra o passo e mais que o acrescenta
o assegura; se a roda começou
e do metal a terra é estreita     diminui
e de redonda à recta se afeiçoa
pelo verde o sabemos     no intervalo
dum ponto a outro ponto
do recado
da boca a outra boca     da fissura
entre o nome e o feito vertical.
 
No caule o facto osso e a semente
no espaço a obra de metal e a folha crua.
 
                                    In Capital, 20.1.71



maria velho da costa
desescrita
afrontamento
1972

28 agosto 2025

maria amélia neto / o areal

  
 
Só há areia
E um céu demasiado lúcido.
A transparência intacta feriu o nosso cérebro,
Mutilou os nossos pensamentos,
Fez nascer violetas de fogo no silêncio.
Arrastados pelas torrentes de luz,
Alagamos de solidão os nossos olhos.
 
Nem silvados, nem pauis,
Nem o pulsar do álamo.
É necessário continuar,
Mas quem descobre o rumo da areia?
Escutei vozes e nem uma conhecia o caminho.
Inventei vultos para me fazerem companhia,
E todos mantiveram os olhos cerrados.
Se eram cegos, porque me sorriam?
E porque havia nos seus dedos
A sugestão da cítara?
E porque me apontou um deles
Um flamingo, um cipreste, um lago,
Que os seus olhos não viam
E que os meus tinham começado a imaginar?
 
 
 
maria amélia neto
cicuta em março (1964)
antologia da novíssima poesia portuguesa
m. alberta menéres, e. m. de mello e castro
moraes editora
1971
 



27 agosto 2025

isabel meyreles / o livro do tigre

  
 
                      XXX
 
          POST HANC DIEM
 
De mãos vazias
sem nada nas algibeiras
sem tigre no chapéu
sem pomba na manga
o poeta atravessa o palco
sobre a corda bamba das palavras
de mãos vazias
sem nada nas algibeiras
sem tigre na manga
sem pombas no chapéu
a sala está às escuras
as cadeiras vazias
os músicos partiram
o poeta está sobre a corda bamba
e as palavras foram-se como sempre.
O espectáculo terminou.
Cai o pano.
 
 
 
isabel meyreles
poesia
o livro do tigre 1976
tradução de isabel meyreles
quasi
2004