26 agosto 2025

ana hatherly / tipo h

  
 I O PÉ NA CABEÇA
II O INTERREGNO
 
 
I
 
e estava na praia vejo aquele
formoso rapaz correndo admirável
depois correndo como um pássaro
sobre a água asas abertas os in-
divíduos que encolhem diante de
certas pessoas querendo emitir
este deus correndo artrópode
desespera cai na água sopra
longe pé na cabeça quando regresso
cada vez mais insignifica depois
de vestido perdeu cerca de 20 cm
no seu estado de não companhia que
tem apenas conotações abjectas
e é querub
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978

moraes editores
1980




 

25 agosto 2025

ana luísa amaral / da solidão da luz

  
A casa em ruínas que vejo daqui
salta da janela, entra nesta sala,
mas não tem janelas que a façam brilhar,
as molduras rotas carregadas de ar,
as portas cobertas da hera mais pura,
as telhas brilhantes de ausência de cor,
e um buraco imenso onde o coração
devia luzir, se as ruínas não –
 
Morre devagar, como o universo,
galáxias e mares de estrelas e sóis:
política rara sem reis nem senhores,
mas tenso equilíbrio de forças sem luz.
 
Morrem devagar o tempo e os livros,
as estantes todas que habitam a sala:
pobre microcosmo do Bem e do Mal,
e do que nem isso, que é o mais vulgar.
 
Lembra-me, escarlate, só pela memória,
um livro maior de forças a sério:
o claro e o escuro de um igual terror
 
À casa em ruínas salvam-na essas asas
que vejo daqui, saltam da janela
e entram nesta sala. Não são as do anjo,
mas têm nas penas um sistema hidráulico
que as faz oscilar e rasar os ventos.
 
Olham-me, sombrias, dentro de um futuro
liso e sem ruínas – só de um chão mais puro
onde a casa houve, de janelas rasas
carregadas de ar. Só ele é comum
ao anjo e a elas, elas cheias dele,
ele, transportando e oscilando em paz.
 
Quando for sem ser? Só um limpo instante
de equalizador: ruínas e ventos,
janelas e anjo, heras e senhores
em mudas frequências, enxutos os sons?
 
E um poço vazio onde o coração
foi visto bater: partícula igual
ao pó de um cometa que um dia rompeu,
devorando o ar. E a casa em ruínas
abrandada em tempo, vogando no branco
de resplandecentes seis sílabas. Sós.
 
 
 
ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011




 

24 agosto 2025

inês lourenço / domingo

  
Hoje é o dia dos senhores
e dos sóis em algumas línguas. Noutras
já foi ontem ou será depois, conforme
o cansaço divino sucedeu ou
não ao sétimo dia. Vária
gente irá aos templos ou ao parque
passear o cão. É dia de
visitar o lar de idosos ou de
abastecer a nossa arca
congeladora. Os pais solteiros levam
os filhos a comer pizza e outros
putativos progenitores recuperam
as horas de sono convivialmente
líquidas. O ar das ruas
é mais leve devido à pausa de
domingo. Ao menos hoje acontece
algo de bom em nome de Deus.
 
 
inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015
 

23 agosto 2025

ana paula inácio / 1 família feliz

  
Vamos para a praia e levamos:
 
– 1 baralho de cartas,
subtraindo as da electricidade e da água,
ficaremos com as de paus,
por uma questão de sobrevivência,
com 4 paus fazes uma canoa,
como no poema de 2000,
e as de espadas
que é arsenal bélico
de que não se desconfia
(a precaução é relativa à aparência islâmica);
 
– 1 bola de plástico
que jogaremos entre nós
sem levantar suspeitas
ou olhares a outrem
infringindo o 3.º dever
da lista deontológica cristã.
 
Não ergueremos a voz
a um decibel prejudicial ao meio ambiente,
ninguém dirá que
– e seguindo a equação agustiniana da feliciade
é dela condição necessária e suficiente um testemunho que
     a ateste –
não somos 1 família feliz.
 
 
 
ana paula inácio
2010-2011
averno
2011



22 agosto 2025

r. lino / nove instantâneos do sul

  
.quarto.
 
talvez a nora não tenha aqui
do seu tamanho o maior.
aqui.
 
Quando a vasta terra se descobre
lá mais para o sul
na primazia do deserto,
 
há enormes cegonhas poeirentas
que debicam nas raras águas
a funda alegria dos seus poços.
 
 
 
r. lino
nove instantâneos do sul
políptico
companhia das ilhas
2016
 

21 agosto 2025

maria teresa horta / laranja

  
Rosa branda na espuma
do meio-dia
com janelas abertas nas laranjas
 
E um risco de sombra
sobre o sal
traçado devagar, como uma franja
 
Meu claustro de musgo
e de fermento
onde o ferro se perde de humidade
 
Onde o tempo se inventa
noutro tempo
feito de musgo, framboesa e carne
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
educação sentimental
dom quixote
2009
 

20 agosto 2025

fernanda botelho / as coordenadas líricas

  
Desviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu.
 
A geométrica forma de meus passos
procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.
 
Sozinha já não vou. Apenas fujo
às regras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu relógio
– as minhas coordenadas.
 
 
 
fernanda botelho
as coordenadas líricas  (1951)
antologia da novíssima poesia portuguesa
m. alberta menéres e e. m. de mello e castro
moraes editora
1971
 
 


19 agosto 2025

judith teixeira / a sesta



 

 

O sol em calmaria sofucante,
abrindo as grandes azas luminosas
adejou sobre a serra culminante
abrazando-lhe as faces pedregosas…
 
Subindo luminoso, mais brilhante
abrangeu as planícies argilosas
emudecendo a fonte sussurante –
sequioso, anda, a sorver as rosas!...
 
As abelhas, zumbindo nos silvados,
lembram pingos de fogo, condensados,
a refulgirem sob as suas azas…
 
E descansando á sombra dos sobreiros
o encalmado rancho dos ceifeiros
foge aos seus beijos rubros como brazas!
 
Agosto – 922
 
 
 
judith teixeira
castelo de sombras
1923
 




 

18 agosto 2025

salette tavares / dorme o meu peso de água...

  
 
Dorme o meu peso de água numa fonte
um brilho de pena que me dói
molhada, escorrida, plena
doçura de praia serena
um ainda que se foi.
 
Dorme o meu peso de pedra sob o sol
um perto de pavor em que me movo
rica, lúcida, límpida
certeza loira de trigo
na dúvida fatal que te persigo.
 
Dorme o meu peso de hera sob a chuva
um longe de aventura que me segue
escassa, pálida, breve
ternura que a tarde escreve
um sempre que nada dura.
 
 
 
salette tavares
espelho cego (1957)
antologia da novíssima poesia portuguesa
m. alberta menéres e e. m. de mello e castro
moraes editora
1971
 



 

17 agosto 2025

adília lopes / almoço do trolha

  
Pobríssimos
as cabeças cortadas
mas tão felizes
homem mulher e bebé
de um tijolo
do patrão
fizeram um assento
o Estado Novo impede-os
de tirar os sapatos
o Partido Comunista também
desce sobre eles
o Espírito Santo
do almoço
vão comer língua?
 
 
adilia lopes
clube da poetisa morta (1997)
caras  baratas
antologia
relógio d´água
2004




16 agosto 2025

natália correia / cântico do país emerso

  
I
 
ENQUANTO que no mar das Caraíbas
Os albatrozes os peixes-voadores
Os sargaços a bússola a espuma
E a nossa Senhora dos Navegadores
Se punham ao serviço de uma
Nação acabada de nascer,
 
Terra transportuguesa de longo curso
Onde os homens andam de tronco nu
E a barba produz ardor como a urtiga
Onde o instinto lê no voo das aves
Como uma sibila e o medo é abandonado
No país das sombras do urubu:;
 
Terra onde as decisões têm a rapidez
Do leopardo e a fome desenha no ar
Uma hipérbole arquejante; terra onde
A fraternidade é rude como a flor do cardo
E os homens usam a alma como um instrumento cortante;
 
Terra onde por enquanto não há
Encontro às seis horas no bar
Nem estilo de vida nova-iorquino
Nem razões para um homem se casar
Nem o fim-de-semana arrabaldino
Onde não há vivendas para alugar
Com cadeiras de verga sobre a relva;
 
Selva atónita ainda pela desfloração
O violento estupro dos machados
As panteras tensas da iniciação
O batuque dos seus sentidos alterados
Os tigres encolhidos da contracção uterina
Os gamos assustados dos seus peitos
As gazelas da sujeição à força masculina
E o elefante sossegado dos instintos satisfeitos…
 
Terra saudada ainda pelas
Estrelas-do-mar e outras estrelas
Meninas dos olhos dos marujos
Extasiados do avesso sempre
Que um português se fez ao mar
Não para descobrir a Índia
(Isso era o começo de um mundo
Com ondas por fecundar) mas
Para fazer um filho às vagas
Fêmeas de gosto salgado e de ancas
Largas. Mulheres que aderem à pele
Como a salsugem. As únicas
Que verdadeiramente se estorcem e rugem;
 
 
 
natália correia
cântico do país emerso
antologia poética
dom quixote
2018





15 agosto 2025

fiama hasse pais brandão / sistema solar



 
 
Cada voz tem o seu contraponto
num ruído natural. Cada silêncio,
no silente espaço que rodeia, por vezes,
cada coisa. À beira do berço as bocas
percutem sobre a criança. Depois, no sono,
abrem-se como qualquer flor. Sobre
os cílios da adolescente tecem frases.
 
                               *
 
À beira do berço as bocas
percutem sobre a criança. Depois no sono
adensam-se como qualquer árvore. Sobre
os cílios da adolescente tecem frases.
Cada silêncio corporiza-se no espaço.
As coisas têm eixos e rodam
com ruídos diferentes do seu nome.
E o Sol tramonta entre vestígios,
Além dos montes e vales e o mar.
 
                               *
 
E o Sol tramonta sobre as nossas casas
e os montes e vales e o nosso mar.
quando um verso marca o lugar das coisas
elas aí ficam para sempre. O Sol
que perpassa em cumes e em cristas
nasce nas arestas serranas do nascente
e vai até ao mar em sete versos.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d'água
2000




 

14 agosto 2025

natércia freire / hoje, mãe, chega o verão

  
 
                        «Hoje, Mãe, à meia-noite e trinta e cinco,
                        Chega o Verão. Eu vou esperá-lo na varanda.»
 
                        Luís Manuel – 8 anos

 

 
Sobre as copas das árvores da mata
É que o vias chegar
Deus generoso, antigo
A navegar
Desdobrando os navios coloridos
Dessas manhãs sulinas
A mergulhar nas águas submarinas
Verdes, verdes de jóias e sargaços.
 
E sob a tarde em brasa
E cantos roucos
De pássaros com sede
Fogem-te azuis os olhos de criança
Para as viagens que se chamam Espanha.
E Julho, Verão, Baviera, são cometas
E carrocéis em límpidas clareiras.
 
Ouves bronzes de anúncios musicais
No Verão que te pertence e que te abraça
No Verão que tu abraças como Irmão
No Verão dos frutos, teus Irmãos também.
 
Nos somos passageiros, sob tendas
De nómadas, cegando à claridade…
 
Mas para ti, as lendas
É que são a Verdade.
 
 
 
natércia freire
foi apenas ontem (1977-1987)
antologia poética
assírio & alvim
2001