21 julho 2025

manuel de freitas / quando sós à boleia do crepúsculo

  
                [para o Fernando Guerreiro]

                         
Não mais a literatura, os seus
fúteis e imperiosos desígnios
– julgamos dizer, insistindo
numa ourivesaria do terror
e em gestos que sabem o quanto
chegam tarde. quando sós,
à boleia do crepúsculo, dizemos
coisas assim, mentimos com
os dentes todos que não temos.
 
E a mentira (a literatura)
é ainda a improvável derrota
de que não nos salvaremos
nunca. Tão igual à vida, portanto:
pouso o copo, recupero o fôlego,
fumo uma silepse. Sei que vou morrer.
 
E isso que – talvez – nos diz
é uma evidência que escurece
(tivemos por amigo o desconforto).
 
Quanto ao mais, vamos andando.
Casados ou sozinhos. Mortos.
 
 
 
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002





20 julho 2025

leopoldo maría panero / um louco tocado pela maldição do céu

  
 
Um louco tocado pela maldição do céu
canta humilhado a uma esquina
as suas canções falam de anjos e coisas
que custam a vida ao olho humano
a vida apodrece aos seus pés como uma rosa
e já perto do túmulo, passa junto dele
uma Princesa.
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019




19 julho 2025

víctor botas / tentativas de felicidade

  
 
As páginas de um livro de Baroja
à sombra de uma árvore
no verão.
Um poema de Octávio Paz, de Larkin, de Pessoa
ou do meu amigo d’Ors,
na cama de um comboio Madrid-Paris.
A jovem que percorre
a manhã e as ruas, com as ondas
retumbando nos seus olhos.
Os meus filhos na praia de Salinas, tão felizes,
brincando com a areia.
A rosa solitária que se ilumina,
húmida e temerária,
num jardim qualquer da tarde.
O curioso olhar dos velhos.
O brilho da Lua.
Todas estas coisas podem ser motivo de inusual felicidade.
Todas estas coisas podem ser a tua cruz e o teu calvário.
Todas estas coisas podem ser a armadilha em que cais de bruços.
Todas estas coisas podem inclusivamente não ser nada.
Nada de nada, irmão.
 
 
 
víctor botas
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997


18 julho 2025

joão miguel fernandes jorge / neste silêncio

  

 
Neste silêncio.
 
Vês esta ruína
tempo em que plantámos cinzentos agapantos
e amámos esta música de pinheiros
esta companhia das coisas?
 
Olha
quase colina
não respira
salta no pensamento a outra coisa,
 
Ensina-me.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019



17 julho 2025

antónio maria lisboa / sinalização ossificada

  
 
A aranha-termómetro mergulhou no peso do meu nome
e deixou que ele falasse gota a gota:
 
«---- O sexo-limbo é um composto sobrevivente… etc., etc.»
Daí tirei conclusões que tudo me permitem:
 
___ A borracha-centopeia furada ao lado pela parede–
–telefone
a invenção dum novo dialecto para falar às formigas
a auto-fixação dum purificador nos buracos do vento
uma complicação perfeita para
objectivada em gesso morder o cio na boca… etc., etc.
 
 
 
antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995
 


16 julho 2025

joaquim manuel magalhães / estava ali por esse dia

  
 
Estava ali por esse dia.
Diante da janela, além
nos bancos de trás. Sorriu,
o ar ergueu-se em labirintos,
a tarde pousou-lhe na tez.
A cultura tornou-se um conflito
de desalento. No fim da aula
fomos tomar café.
 
Diante dos outros tocava só
na sua chávena, no maço
dos cigarros, era o seu corpo
que eu queria atingir.
 
Não és real, eu não existo.
Raízes desertas do auriga.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
de súbito
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990




 

15 julho 2025

luís miguel nava / essas manhãs

  
 
Essas manhãs, as mais profundas e por que eu caminho para as ondas, manhãs como um poço, no perfil das águas ouço-as eclodindo o leite a avolumar-se pelas cristas, esta página redu-las a uma árdua anotação. A luz por dentro agora invadem-na outra sondas.
 
 
luís miguel nava
películas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002





 

14 julho 2025

manuel antónio pina / azul

  
 
A luz, se formos luz. A sombra
se formos sombra: os olhos, sombra;
o coração, sombra; a própria luz
do pensamento, exílio e sombra.
 
Na infância (pois fomos
jovens um dia) atrás dos reposteiros
o invisível vigiava
o nosso sono desperto.
 
Agora que acordámos
do amarelo e do azul
e do branco e do azul
e do coração e do azul,
 
como regressaremos
a este mundo?
(O azul não é deste mundo,
nem os olhos são deste mundo).
 
À nossa porta batem
Inúteis lembranças: sombras.
Cegámos. Os amigos (sombras)
morreram de doenças de velhos,
 
o enfarte, a solidão, ou só
de morte, e nem
uma réstia de azul iluminou
o seu último olhar.
 
Se ao menos tivéssemos
envelhecido sem motivo, sem tempo,
desaparecido para dentro
lucidamente, como uma coisa desprendendo-se!
 
 
 
manuel antónio pina
moradas
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012





 

13 julho 2025

miguel torga / sagres

  
 
Vinha de longe o mar…
Vinha de longe, dos confins do medo…
Mas vinha azul e brando, a murmurar
Aos ouvidos da terra um cósmico segredo.
 
E a terra ouvia, de perfil agudo,
A confidencial revelação
Que iluminava tudo
Que fora bruma na imaginação.
 
E o resto do mundo que faltava
(Porque faltava mundo!).
E o agudo perfil mais se aguçava,
E o mar jurava cada vez mais fundo.
 
Sagres sagrou então a descoberta
Por descobrir:
As duas margens de certeza incerta
Teriam de se unir!
 
 
 
miguel torga
história trágico-marítima
poesia completa vol. II
dom quixote
2007




12 julho 2025

vitorino nemésio / dunas



 
Lá onde a garça deixa
O seu último ovo
E os juncos melodiosos vão ao vento,
Aí, nem uma queixa
Nem sentimento
Novo.
 
Lá onde areias, bicos, água, o extenso
Mar sozinho se der,
Lá, só um lenço
E um malmequer.
 
O lenço, humano, pequenino
E o malmequer selvagem:
Ele só, teimoso e fino,
Guarda segredo à aragem.
 
Flor breve,
Adeus das dunas,
O malmequer me quis bem.
Em seu corpo radiado o mar me escreve
De amores piratas, sobre escunas
Que já não salvam ninguém.
 
 
 
vitorino nemésio
nem toda a noite a vida
antologia poética
asa
2002



 

11 julho 2025

pedro homem de mello / emigrante

  
 
Partiram todos. Fico desterrado
Na mesma Pátria que me viu nascer.
E foi tão longo e breve o meu reinado!
E foi tão longo e breve o meu prazer!
 
Os pés finco na Terra. E, do outro lado,
Vagueia o mar onde há-de sempre haver
Caminhos o moiro destronado
Pode ouvir fontes ao anoitecer…
 
Partiram todos. Mas de flor ao peito,
(Flor de alguém que, ao deixar a minha rua
Se lembrasse de mim naquele instante?)
 
Beijo-lhe, então, as pétalas, no jeito
De quem recolha lágrimas da Lua,
Neste país, neste país distante…
 
 
 
pedro homem de mello
fandangueiro (1971)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




10 julho 2025

nuno vidal / cegarrega

  
 
Helena no riso nervoso
no recuo d’aflição
declaravas o amor escuso.
Amêndoa amarga
frivolidades da razão
a ver se pegava.
 
Éramos escolha fraquinha,
uma carga de desgostos
lumes bruxuleantes
arredios, teimosos
a errarmos assim
sem fim, sem mais além.
 
Gostei de ti no minimercado
à fruta
ao alçapão do leite
à cata dos rótulos.
Depois, abóbora.
A tarde caiu do nono
fogo, fingido nosso.
 
Partidos de meias verdades
num adeus de soslaio
e caras de caso.
Um final felizinho
azul, lua conforme.
 
Agora para castigo
dormes no cúmulo das escadas
que por agora vagou
e eu vou aviado
de calores e a pé
para o fim do mundo.
Um lindo par
mas nem uma jarra.
 
Podes escolher-me casacos, calções.
Este amor vai durar
sem nunca ser o teu homem
nem camisas engomadas, ou assim.
 
 
 
nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990






 

09 julho 2025

fernando luís sampaio / as vozes de marraquexe

  
 
Enquanto vai e não vem
A nossa sombra sob o palmar
Desfaz-se na poeira
Do atlas, o silêncio floresce
Na rosa do algodão poeirento,
O cantil gargareja à cintura.
 
A lâmina de aço brota
Das flâmulas tingidas de sangue,
Assim nos recebem à porta
Num gesto moçárabe e elegante,
A piscina murmura a leve frescura.
 
A tarde aquece as ramagens,
Um súbito vento açoita o açafrão
Que se desprende, a pedra infunde
O seu perfume raro e soturno sobre
As fachadas floridas ao anoitecer.
 
As mil vozes da cidade
Adormecem depois
Com a adaga do céu embainhada.
 
 
 
fernando luís sampaio
relâmpago
revista de poesia 29-30
out 2011 abril 2012