28 junho 2025

diego doncel / para um lugar de ninguém

  
 
Não é necessário fugir, perder-se em qualquer sítio
debaixo de uma identidade que não é a minha?
 
Ao longo desta madrugada estive a ver a passagem das nuvens
e tenho os olhos cheios da minha própria cinza.
No écran do céu, por cima desta cidade abstracta,
acossadas pelas sirenes e pelo tráfico das auto-estradas
vi-as lá no alto a serem pasto do frio,
porventura símbolos de domínios alheios, mensagens de uma íntima irrealidade.
 
Certas ocasiões tinham forma de fronteira como folhas que voam
de um mistério para não sabemos onde, noutras eram o rosto
mutável dos sonhos ou pareciam planetas desertos,
grandes rochedos cósmicos, objectos esquecidos
nos limites de uma tragédia que estava prestes a chegar.
 
Soube que as suas metamorfoses me falavam
de qual era o destino dos homens
e decidi renuncia à sua beleza.
Debaixo da sua fragilidade, debaixo da sua enganadora doçura,
debaixo da sua aparência humilde e quase introvertida
são um lugar de ninguém, como o Génesis.
E o seu cheiro a terra húmida, as gotas
com que às vezes caíam nos meus gerânios
apenas assinalavam o caminho do pouco que sou, do meu abandono.
 
Por isso pergunto se não é preciso fugir.
ser outra vez um grão de areia na poeira de outro tempo.
Embora saiba que há-de levar-me a este mesmo lugar, embora ali me esperem
estas mesmas alamedas brilhantes e sonâmbulas como uma furgonete de distribuição,
estes mesmos pombos pensativos criados com a combustão
dos motores e com flocos achocolatados de cereais,
embora me esperem este mesmo vento e estas mesmas folhas secas
que se arrastam ao pé de dias igualmente escuros e fugazes.
 
Ao longo desta madrugada estive a ver a passagem das nuvens
sem consolo, como um homem perdido,
enquanto elas reflectiam pouco a pouco nos vidros
da minha casa as coisas que perdi, o meu desamparo.
Nuvens que eram tempo e que passavam mudas, nuvens
que eram restos de mim e cuja passagem não deixava qualquer marca
sobre a geografia desta cidade, só um punhado de sombras,
quase nada, perplexidades e desvarios no meu coração.
 
Vi-as descer à minha pele e encheram-me o rosto
de silêncio, do silêncio que vem dos bairros adormecidos,
do silêncio que vem do outro lado das coisas,
de um insuportável desdém.
Vi-as arrastar a gordura dos seus ventres
pelo que esta cidade oferece:
sexo, laboratórios de condutas do prazer,
fábricas de tratamento de resíduos afectivos, cruzamentos ferroviários
onde convergem diferentes nostalgias,
áreas de oração para estimular o consumo
e a obesidade sentimental.
 
Quando senti a ferrugem dos seus nervos
nos nervos dos meus olhos, quando senti que elas
eram eu próprio, só um punhado de cinza,
o tele-predicante do novo dia gritava de um estúdio de televisão:
– Sai daqui, desaparece, que ninguém te conheça.
Deixa atrás de ti os passos da tua fuga.
Corre, os países hão-de passar um após outro,
os diferentes estados de consciência.
Apenas necessitas da mecânica dos teus pulmões
para receberes umas migalhas de misericórdia. Por seres homem.
Por veres que tudo se acelera. A velocidade cardíaca,
os pensamentos, a elevada temperatura da tua espinha dorsal.
Toda a tua miséria. Os rumos do teu exílio à margem,
sempre à margem das coisas.
 
 
 
diego doncel
em nenhum paraíso
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2007




 

27 junho 2025

bertolt brecht / quem é o teu inimigo?

  
 
O que tem fome e te rouba
O último pedaço de pão chama-lo teu inimigo
Mas não saltas ao pescoço
Do teu ladrão que nunca teve fome.
 
 
 
bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976





26 junho 2025

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral

 
 
 
VII
 
Este vapor em trânsito no tejo
é como branca gôndola descendo
as colinas de um rio;
de rosto ao vento, sou como o gondoleiro
na laguna serena a procurar o mar.
fez.me a vida este corpo de rã seca
a debitar no charco um som de flauta;
já nada nem ninguém me traz a sede
quando a chuva não cessa de crescer
e a neve cobre as pontes mais recentes.
Um negro louco nos dirige as tropas,
distribuindo ervas doces de chipre
pelos atarefados passageiros; e assim
eu, que ao sol cantei em minhas horas
esperando que o mundo me não leve a mal
embarco, quase noite, na praia ocidental.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 



25 junho 2025

antónio dacosta / ó dia de sol e morte

 


 
3.
 
Ó dia de sol e morte
 
As flores eram venenosas
As moscas eram negras
O azul tenebroso
 
Tanta luz impiedosa
Sobre o luto da terra
 
 
 
antónio dacosta
saudade
a cal dos muros
assírio & alvim
1994



24 junho 2025

eduardo pitta / meia dúzia de linhas

 
 
 
Meia dúzia de linhas
para me dizeres que tudo mudou.
Agora é outro mar
outra terra, outra gente.
 
Eu continuo por aqui.
Somos como pássaros que o horizonte recusasse.
Perdemos o azul
e perdemo-nos.
 
 
 
eduardo pitta
sílaba a sílaba
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011
 



23 junho 2025

joão miguel fernandes jorge / palavras dos remadores

 
 
Como se não restasse
nem sequer a ilha
desci à fundura do lago. Não vi
o barco nem os remadores.
Na distância, um ténue amarelo de enxofre.
Mesmo esse brilho
extinguiu-se.
Por um instante de desejo e medo
ouvi as suas vozes nítidas sobre
as águas paradas.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004




22 junho 2025

joão habitualmente / a roda dos anos

 
 
 
Primeiro, tudo são carícias
e há grandes varandas arvoradas na noite
de lua morta
onde nos instalamos como reis
 
Ribeiros e fontes
e todos os sítios abrem para a tua porta
 
 
Depois abre-se o tempo em abismo
e erra-nos as contas
 
As noites, compridas e iguais,
São agora de cornos e pontas
 
 
 
joão habitualmente
um dia tudo isto será meu
(uma antologia)
porto editora
2019




21 junho 2025

joão gesta / vende-se isco



 

 

Faz muito frio, como convém nestas crónicas.
Trémulo, desembacio o vidro da janela.
As crianças esfaqueiam-se alegremente no parque e fazem
Ronaldos na neve, enfeitando-lhes os olhos com varejeiras da
Petúlia, as melhores.
Apenas um pouco para a esquerda, vestidas de lilás, três caudas
de piano lêem Pessoa, estiraçadas na relva domingueira. Dois
telefones beijam-se na boca e discam números às escondidas
dos pais.
Lá mais ao longe, no meu firmamento adivinhado, o Douro
faz amor com a Ribeira, mas a pensar noutra coisa.
Nas margens, os pescadores mijam mais do que o habitual.
O TGV, impante, atravessa o rio sem barbatanas,
“Pena os sáveis não usarem collants”, pensei, arreliado.
 
 
 
joão gesta
uma falha nos dentes
porto editora
2019



 

20 junho 2025

carlos de oliveira / estátua

 
 
 
a Jane L.
 
 
Nos umbrais desta página recebo o poema que chegou de longe, duma memória escura, voluntária, atravessando lama, sono, olvido. Desvendo-lhe as feições, sílaba a sílaba. Quando grito por fim «eis uma cara nova», penso logo «afinal, eras tu». Reconheci apenas outro rosto esquecido na aridez do mundo, recolhi-o da sombra donde veio, e aqui lho deixo, adoradora de estátuas muito antigas, petrificado no papel.
 
 
 
carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982



19 junho 2025

yvette k. centeno / a hora

 



 

 

Acordo
dia a dia mais cedo.
Tenho o relógio ao lado
procuro ver a hora
mas não vejo.
Fecho os olhos
verei daqui a bocado,
não há pressa
a hora não fugirá
está ali dentro presa
 
29 de Setembro, 2021
 
 
 
yvette k. centeno
existir
eufeme
2022
 



18 junho 2025

rui diniz / notas de viana e arredores

 
 
 
Li pouco, este Verão. O «Retrato em Movimento», Ruy
Belo, puros esboços de leitura entre as
longas e extenuantes deliberações poéticas em
papel que comprara em Tuy numa papelaria.
Escrevi, pois. E de regresso de Lisboa, viveria,
viveria, desintegraria em mim todas as
objecções cósmicas e regressaria de mãos
vazias a mim mesmo. Falta-me
uma qualidade: a paciência. Sou acima
de tudo um ser inquieto perante a
ideia da morte. Estou incapaz de criar.
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




17 junho 2025

armando silva carvalho / sempre passei a vida entre o poema

 
 
 
SEMPRE passei a vida entre o poema
e a vida entre o amor
e a fábula.
E sempre que colhia
esses espaços de luz precipitada
eu via a voz de deus
alevantada
entre mim e o nada que sorria.
 
 
 
armando silva carvalho
canis dei (1995)
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007






 

16 junho 2025

daniel faria / explicação do alpendre

 


 
 
Porque em seu peito nunca tive aberta
A veia exacta para lhe ser sangue
 
 
 
daniel faria
poesia
últimas explicações
quasi
2003