Para dizer a verdade,
pareceu-me um gesto de presunção,
muito dele,
a urgência com que nos pediu
que o atássemos ao mastro
para escapar ao canto das sereias.
As sereias cantavam, é certo,
mas não exactamente para o seduzir.
Porque não a qualquer um de nós?
Porque teriam de pretender seduzir alguém?
Quem pode assegurar que não cantavam simplesmente?
Ou que estavam em silêncio e cada um de nós ouvia
dentro de si o seu próprio canto das sereias?
Era ele que lutava contra a sua vocação de perdediço.
Era ele que acreditava que as sereias o amavam.
Era ele que, com qualquer pretexto, nos punha às suas ordens.
Era ele que não sabia mais o que inventar
para adiar o nosso regresso a Ítaca.
Eu queria voltar à minha pátria, abraçar a minha mulher,
cuidar dos meus pais já velhos,
ver crescer os meus filhos.
Deu-nos a ordem e atámo-lo.
Por mim tê-lo-íamos deixado no mar alto,
tivéssemos rumado a Ítaca e ali teria ficado,
atado ao mastro, só, de novo à deriva.
E teria morrido assim, amarrado ao seu delírio,
enquanto as sereias continuavam, continuarão,
a cantar para ninguém, como sempre.
juan vicente piqueras
instruções para atravessar o
deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019