12 outubro 2024

klaus merz / a minha aposta

 
 
não coloco as minhas esperanças
no vermelho luminoso
do zarcão.
os pintores
são para mim demasiado buliçosos,
as suas cores demasiado escandalosas.
 
eu confio
nos valores eternos,
ponho as minhas esperanças na ferrugem
que actua subterraneamente,
no seu vermelho terroso e quente,
na sua substância granulada
que certamente
nos sobreviverá.
 
 
 
klaus merz
descida brusca de temperatura
alguma poesia suíça
tradução de luís filipe parrado
contracapa
2021
 
 


11 outubro 2024

louise glück / campainhas-de-inverno

  
 
Sabes o que eu era, como vivia? Conheces
o desespero; então
o Inverno há-de fazer-te sentido.
 
Nunca esperei sobreviver
com a terra a sufocar-me. Não esperei nunca
tornar a acordar, sentir
na terra húmida o meu corpo
capaz de reagir de novo, de se lembrar
depois de tanto tempo como abrir-se
de novo à luz fria
da mais primeira Primavera –
 
com medo, sim, mas de novo entre vós
chorando sim arriscando a alegria
 
ao vento agreste e nu do mundo novo.
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020





10 outubro 2024

eunice de souza / encontro numa festa em londres

 
 
 
Durante um minuto permanecemos desconcertadamente juntos.
Perguntas a ti mesmo em que língua hás-de falar-me,
ofereces, antes, uma cebola avinagrada num palito.
És jovem e talvez te esqueças
de que o Império vive
apenas nos sons puros das vogais que te ofereço
acima do ruído.
 
 
 
eunice de souza
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. cecília rego pinheiro
assírio & alvim
2001





 

09 outubro 2024

antonia pozzi / náufragos

 
 
 
Náufragos sobre os escolhos,
cada um conta
a si mesmo – a história de uma doce casa
perdida,
a si mesmo ouve
falar alto
sobre o deserto pranto
do mar –
 
Triste jardim abandonado, a alma
rodeia-se de selvagens sebes
de amores:
morrer é este
cobrir-se de silvas
nascidas em nós.
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 
 



08 outubro 2024

pier paolo pasolini / fim da tempestade

  
 
Tomba a árvore ao vento,
as casas voltaram
aos seus lugares, após longa
viagem, e sonham de olhos abertos.
Mesta a alma se encaminha
para os sonhos; vago fica
o quarto: estou longe.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




07 outubro 2024

lawrence ferlinghetti / doce e variegada a cotovia-arbótrea

 
 
 
13
 
               doce e variegada a cotovia-arbórea
                              cantando ao portão que não se pode comprar
          e todavia quantas
                                     feras bravas
                                                   quanta criatura insana
               nas matas civilizadas
 
                                                  Hölderlin
                                                                      na sua torre de pedra
ou na casinha do amável carpinteiro
                                                     em Tübingen
               ou então Rimbaud
                                         com o seu «pesadelo e lógica»
          um sofisma da loucura
     Mas também nós temos exemplos mais recentes
                                      que também pressupuseram fatalmente
existir de facto
                  uma certa ligação directa entre
     linguagem e realidade
                                      palavra e mundo
          o que é hilariante
                                 caso me perguntem
     Também eu já bebi e vi
                                       a aranha
 
 
 
lawrence ferlinghetti
poemas de pictures of the gone world (1955)
uma coney Island da mente
tradução margarida vale de gato
antígona
2024

06 outubro 2024

leopoldo maría panero / diário do manicômio de mondragón

 



 

 

20 de abril
 
Entro no bar dos enfermos. Ele está repleto de folhas secas e amarelas que lembram pessoas velhas. Caminhando na direção do balcão, piso em algumas delas, que se parecem com álbuns ou lembrancinhas. O garçon apoia os cotovelos no balcão do bar, próximo à sua cabeça há uma Coca-Cola. Ele me conta de um crime que cometeu há muito, muito tempo. Então esfrega um pano de prato em sua testa e sussurra: oh, minha cabeça, minha pobre cabeça!
 
 
 
leopoldo maría panero
poemas do manicômio de mondragón
trad. ayrton a. badriah, pedro spigolon e tiago rendelli
editora urutau
2024
 
 



05 outubro 2024

miguel bonneville / livro do daniel

 



 
LXX.
 
é certo que há uma tristeza latente.
é certo que os corpos se despediram da paixão
e ali ficam –
suspensos.
 
pode não ser nada.
 
pode ser também que seja só o inverno.
 
 
 
miguel bonneville
livro do daniel e outros textos
editora urutau
2024



04 outubro 2024

poesia / 20 anos de blogue!








 

billy collins / depois de ouvir que foras embora

 
 
Sentei-me um bocado num banco no parque.
Estava a chover levemente mas não se tratava de um filme
embora um casal passasse apressado,
a rapariga com o casaco dele pela cabeça,
e os jogadores de xadrez estivessem a reunir as peças
e a dispersar-se pelas ruas.
 
Não, era uma coisa diferente.
Podia ter jurado que os carvalhos grandes
tinham aparecido ali de um dia para o outro.
E que aquele pombo parecia
ter sido em tempos uma carta de jogar
que um ilusionista transformara com o movimento de um lenço.
 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco José craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023




03 outubro 2024

herberto helder / filhos não te são nada

 



 

 
filhos não te são nada, carne da tua carne são os poemas
que escreveste contra tudo, pais e filhos,
lugar e tempo,
filha é aquela que despes dos pés à cabeça,
perdendo os dedos nos nós que tem pelo cabelo abaixo,
e só pelo desejo que te traz de viver ou morrer dela,
desejo de ser o mesmo punho de cinza
deitado à espuma nos extremos da terra,
filha é a palavra carregada que arrancas aos dicionários
                                                       quando dormem,
essa palavra escolheu-te e tu escolheste as roucas linhas
onde hás-de ter o trabalho artesanal da morte:
o que de tudo reste pode ser testemunho distraído e mais
                                                                           nada,
tu sim vais tecendo e vendo tecer-se a tua dita atrás,
e essa atenção ilumina-te os nós dos dedos
e o cabelo todo aos nós por ela baixo
– a morte faz do teu corpo um nó que bruxuleia e se
                                                                  apaga,
e tu olhas entre as coisas pequenas
e para onde olhas é essa parte alumiada toda
 
 
 
herberto helder
a morte sem mestre
porto editora
2014




02 outubro 2024

sophia de mello breyner andresen / manhã de outono num palácio de sintra

 
 
 
 
Um brilho de azulejo e de folhagem
Povoa o palácio que um jovem rei trocou
Pela morte frontal no descampado
 
Ele não quis ouvir o alaúde dos dias
Seu ombro sacudiu a frescura das salas
Sua mão rejeitou o sussurro das águas
 
Mas o pequeno palácio é nítido – sem nenhum fantasma –
Sua sombra é clara como a sombra de um palmar
No seu pátio canta um alvoroço de início
Em suas águas brilha a juventude do tempo
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004
 



01 outubro 2024

eugénio de andrade / ainda esta poeira sobre o coração

 



 

 
Ainda esta poeira sobre o coração
queria que chovesse sobre os ulmeiros
sair limpo desses olhos
da luz que se demora a polir os seixos
 
A corrosiva música das vogais que te devora
o silêncio do muro
às vezes quase azul
o verão afinal onde o ar é mais duro
 
 
 
eugénio de andrade
limiar dos pássaros
limiar
1976