26 agosto 2024

antónio franco alexandre / é no meu corpo que morreste

 



 
é no meu corpo que morreste. agora
temos o tempo todo
ao nosso lado, como
um lodo onde dormitam as
 
conhecidas maneiras.
algumas nuvens se aproximam, e depois
se afastam, numa duvidosa
manifestação de imperícia;
 
os animais falantes
atravessam corredores iluminados,
embarcam na
 
sossegada lembrança dos sonetos,
o leve sono que pesou no dia.
é no meu corpo que morreste, agora.
 
 
 
antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983
 



25 agosto 2024

leonor castro nunes e marcos foz / a bifurcação dos ossos

 
 
 
6.
 
Um poema é uma coisa muito pouca
quando o termo de comparação é uma bicicleta, um chão de terra batida
e umas pernas que esqueceram a preguiça há duas ruas atrás.
 
Já é sabido o problema dos triângulos no que toca à antropologia.
O dois é o número dos mínimos agradáveis
condescendente com a exploração das pérolas e das flores nocturnas
que se vão encontrando por engano no peito dos pais
e nas mãos dos matemáticos.
 
Um poema é uma coisa muito pouca
para quem anda indeciso entre os números e a hermética,
os sonhos e os tremores, as palavras e o suicídio,
uma criança triste e a felicidade de uma espécie inteira.
 
 
 
leonor castro nunes
e  marcos foz
a bifurcação dos ossos
do lado esquerdo
2016
 



24 agosto 2024

albano martins / desta varanda, o mar

 
 
 
Quando os peixes se revoltam,
o mar solta as marés vivas
e fica na praia a ver.
 
*
 
Cuando los peces se sublevam
El mar suelta las mareas vivas
Y queda viendo en la playa.
 
 
 
albano martins
desta varanda, o mar
tradução para castelhano de
alfredo pérez alencart
edições simplesmente
2014





23 agosto 2024

antónio amaral tavares / geometrias



(Paul Strand. Wall Street. 1915)
 
 
 
Cinge com a geometria
da ferida das ruas
os seus habitantes
 
as cidades arrebatam
as distâncias e as vontades
 
são escuros os passos
no dia que começa
certos da igualdade dos dias
 
a morte é uma sombra
que amarra cada jornada
 
para a cidade são apenas vultos
que procuram onde passam
o calor de uma luz
 
trazem de casa todo o espaço que podem.
 
 
 
antónio amaral tavares
retratos de nova iorque
do lado esquerdo
2018
 



 

22 agosto 2024

alberto pimenta / jardim zoológico



 
 
dum lado da jaula
os que vêem
do outro
os que são vistos
 
 
e vice-versa
 
 
 
 
 
(No dia 31 de Julho de 1977, Alberto Pimenta, cidadão nacional n.º 0727697, esteve exposto entre as 16 e as 18 horas numa jaula do Palácio dos Chimpazés do Jardim Zoológico de Lisboa.
Em Abril de 1981, o Rádio-teatro de Estocolmo emitiu uma adaptação readiofónica do acto, da autoria de Margareta Ablberg. Na sequência disso, Per-Eric Gustavsson repetiu o acto no Zoo de Estocolmo, e o actor espanhol Alberto Vilar encenou-o em vários Jardins Zoológicos.)
 
 
 
alberto pimenta
IV de ouros
fenda
1992
 





 

21 agosto 2024

antonin artaud / eu, artaud

 
 
Eu, Artaud,
esforçado,
a livrar-me do mal,
 
mas por não saber quando isto terminará.
 
Não posso saber o farei amanhã,
não o quero saber,
mas quero saber que o mal terminará de imediato.
Não, também nunca terminará.
Então.
Sou o senhor dos elementos
e dos acontecimentos.
Já não quero ser tocado,
                   invadido
como sou invadido pelos outros,
já não quero ser adormecido por outros,
o sono é uma ilusão em que se continua a viver.
 
Não quero mais estas angústias mortais.
 
Não quero mais dormir.
 
Não quero morrer.
 
Não quero mais sonhar.
 
 
 
antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019



 

20 agosto 2024

charles bukowski / uma para o caminho

 
 
 
não é triste pensar em Sócrates
a tomar cicuta;
naqueles dias era uma escolha simples:
dentro ou fora.
nos nossos tempos, dentro desta superestrutura
confusa,
imagino-o como qualquer outro
velho bêbado sentado no bar
num sábado à tarde,
muito mais interessante que a maioria
claro
mas igualmente desamparado
ao confrontar-se com a sabedoria
acumulada dos
séculos.
provavelmente iria sair e tentar
comer alguém
e como todos nós
tentaria sobreviver à
noite
seguinte.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018
 



19 agosto 2024

ovídio / metamorfoses

 
 
 
“Porque me proibis a água? O uso da água é comum a todos.
Nem a natureza produziu um sol privado, nem o próprio ar,
nem a fluida água. É um bem público aquilo a que venho.
Porém, rogo-vos, suplicante, que ma deixeis beber. Eu não
me aprestava a lavar aqui os membros ou o corpo exausto,
mas a aliviar a sede. Ao falar-vos, a minha boca está seca,
a garganta ressequida, e por ela a custo a voz consegue sair.
Um golo de água será para mim néctar, e para sempre direi
que recebi com ele a vida: na água ter-me-eis dado a vida.
E condoei-vos também destes, que do nosso colo estendem
os bracinhos’ (e, por acaso, as crianças estendiam os braços).
Quem não se comoveria com as doces palavras da deusa?
Eles, porém, teimam em proibi-la, mesmo com as súplicas,
e juntam ameaças se não partir e, ainda por cima, injúrias.
E isto não lhes bastou. Agitaram o lago com os pés e as mãos,
e, saltando de um lado para o outro por maldade,
desataram a remexer o lodo mole do fundo do lago.
A cólera dela adiou a sua sede. De facto, já a filha de Ceo
não suplica mais àqueles seres indignos, nem suporta falar
abaixo da condição de deusa. Erguendo as mãos aos astros,
‘Que vivais neste lago para todo o sempre!’, exclamou.
 
 
 
ovídio
metamorfoses
livro VI
tradução paulo farmhouse alberto
livros cotovia
2018
 



18 agosto 2024

daniel francoy / meninos em férias

 
 
As pipas que planam livres e serenas.
Montá-las exige a perícia de Dédalo
e mantê-las no ar, a audácia de Ícaro.
Mas as crianças ignoram os deuses
e pouco importa que as ruas da cidade
sejam o labirinto onde vive o minotauro.
O que os meninos desejam é o céu
e, se uma pipa adeja sem dono e vadia,
uma multidão de pequenos a persegue
ainda que ela se misture ao sol:
pouco importa a queda de Ícaro
se a infância é o mais duradouro mito.
 
 
 
daniel francoy
identidade
editora urutau
2016
 



17 agosto 2024

joão rebocho / anjos caídos



 

 
anjos caídos com olhos de seda
a família morta no livro do Capote,
serpente no frasco de álcool
jornal aberto no balcão
as más notícias e
o hino de San Sebastian;
 
não notícias, hoje,
não anjos caídos janelas fora,
nem a sorte de ter asas;
hoje, a família ressuscitada
a serpente ébria,
e o jornal, resguardado o chão
clareado o chão,
antes ecoarem asas
 
 
 
joão rebocho
altas temperaturas
fernando dos santos
2024
 




 

16 agosto 2024

e e cummings / xix poemas




 

[xiii]
 
platão disse-
 
-lhe: ele não podia
acreditar(jesus
 
disse-lhe;ele
não queria acreditar
nisso)lao
 
tsé
certamente disse-
-lhe,e o general
(sim
 
senhora)
sherman;
e até
(acredite
ou
 
não)você
lhe disse:eu disse-
-lhe;nós dissemos-lhe
(ele não acreditou, não
 
senhor)foi preciso
um pedaço niponizado do
antigo viaduto da
 
6.ª
avenida;no cimo da cabeça:para dizer-
 
-lhe
 
 
 
e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998
 




 

15 agosto 2024

gil t. sousa / tempo

 
 
tudo se repete
de maneira desigual
e lenta
 
cavalos como nuvens
sobre a areia lisa
 
invisíveis e negros
senhores dos meus olhos
e dos meus sonhos
 
deserto e silêncio
como se a solidão
quisesse ficar
e quisesse partir



gil t.sousa





 

14 agosto 2024

roberto juarroz / nem sequer temos um reino

 
 
Nem sequer temos um reino.
E o pouco que temos
não é deste mundo.
Mas tão-pouco é do outro.
 
Órfãos de ambos os mundos,
com o pouco que temos
resta-nos apenas
fazer outro mundo.
 
 
 
roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018