23 julho 2024

paul auster / desenterrar

 



 

XV
 
Frágil amanhecer: a fronteira
da tua obscurecida lâmpada: ar
sem palavra: uma pendente
corola de cinza, arredondada em rosa.
Pões água na fervura
do mais pequeno
dos teus sóis: casca
de luz assoreada: a verdadeira semente
no pousio da tua palma, aprofundando-se
em torpor. Para lá desta hora, o olhar
ensinar-te-á. O olhar aprenderá
a desejar.
 
 
 
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
 





22 julho 2024

cesare pavese / não sabes das colinas

 
 
Não sabes das colinas
onde se verteu o sangue.
Todos nós fugimos
todos nós abandonámos
a arma e a honra. Uma mulher
olhava-nos enquanto fugíamos.
Só um de entre nós
estacou, de punho cerrado,
olhou para o céu vazio,
inclinou a cabeça e morreu
contra o muro, em silêncio.
É agora um farrapo de sangue
e um nome. Uma mulher
espera por nós nas colinas.
 
                 9 de Novembro de 1945
 
 
 
cesare pavese
a terra e a morte
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021
 




21 julho 2024

camilo pessanha / branco e vermelho

 



 

 

A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.
 
Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delícia sem fim!
 
Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distância reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)
 
Na areia imensa e plana
Ao longe, a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte,
Da enorme dor humana,
Da insigne dor humana...
A inútil dor humana!
Marcha, curvada a fronte.
 
Até o chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Os seus magros perfis;
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis.
 
A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
E as pálpebras me tremem
Quando o açoite vibra.
Estala! e apenas gemem,
Pavidamente gemem,
A cada golpe gemem,
Que os desequilibra.
 
Sob o açoite caem,
A cada golpe caem,
Erguem-se logo. Caem,
Soergue-os o terror...
Até que enfim desmaiem,
Por uma vez desmaiem!
Ei-los que enfim se esvaem,
Vencida, enfim, a dor...
 
E ali fiquem serenos,
De costas e serenos…
Beije-os a luz, serenos,
Nas amplas frontes calmas,
Ó céus claros e amenos,
Doces jardins amenos,
Onde se sofre menos,
Onde dormem as almas!
 
A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento.
 
Ó Morte, vem depressa,
Acorda, vem depressa,
Acode-me depressa,
Vem-me enxugar o suor,
Que o estertor começa.
É cumprir a promessa.
Já o sonho começa...
Tudo vermelho em flor...
 
               Clepsidra (1920)
 
 
 
camilo pessanha
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da
poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985




20 julho 2024

jaime rocha / zona de caça

 



 

36.
 
É o tempo das cinzas. O tempo em que os pagens
procuram o rasto nos espelhos. O tempo do choro.
O corpo da mulher regressa para a luz e eles
caminham nessa direcção, indiferentes aos gestos
e à música. Os seus pés são feitos de chumbo, secam
junto aos muros para que as plantas cresçam e a
mulher se possa deitar enquanto a lua percorre
o seu ciclo de nudez. O cavaleiro contempla a morte,
uma árvore quieta entre dois cabeços, um pombo
com uma asa ferida, comendo a própria cria. Tudo
se resume a pedras deixadas por um deus anterior
e entre elas uma zona de uvas, um átrio, uma
morada onde ela poisa os cabelos sem se magoar.
 
 
 
jaime rocha
zona de caça
relógio d´água
2002
 



19 julho 2024

paul éluard / ainda escuto a voz

 



 

 

Ainda escuto a voz
 
Ama ama
Igual ao castanheiro te sentirás ficar
 
Floresta será a tua sombra
Na tua fronte poisam os pássaros e as estrelas
 
Só poderás dormir um sono todo outro
E outros olhos sem sono vigiarão nos teus
 
Ficarás como louco ao pensares na ventura
E tomarás nos braços as ramagens do sol
 
 
 
paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971



18 julho 2024

jack gilbert / além do prazer

 
 
 
Gradualmente percebemos que o que se sente não é tão importante
(por muito encantador ou cruel) como o que o sentimento contém.
Não o que nos acontece na infância, mas o que estava
dentro do que aconteceu. Ken Kesey sentado nos bosques,
atrás da sua cerca de motas esbranquiçadas, disse que quando
escrevia em ácidos, não estava a escrever sobre isso.
Usava o que escrevia como clarões para encontrar o caminho de volta
ao que conhecia então. A poesia regista
sentimentos, prazeres e paixão, mas a melhor procura
o que está além do prazer, fora do processo.
Não tanto a paixão quanto aquilo para que pode o fervor
ser um caminho. A poesia pesca-nos para encontrar um mundo
peça por peça, como a fotografia interrompe o fluxo
para nos dar tempo de ver cada coisa separada e suficiente.
O poema escolhe parte do nosso inesgotável fluir em diante
para conhecer o seu mérito com atenção.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020




17 julho 2024

rui diniz / notas de vigo

 
 
 
Em Vigo preocupei-me sobretudo com o calor excessivo.
Entrei num café claro para beber cerveja. Escrevi um
poema que não sei onde pára. No meio de tudo
o que me acontece e que por vezes desejei
que acontecesse, sou eu que me procuro. Uma pro-
cura relativa, comedida, bem entendido. Porque
a certa altura toma-me o cansaço.
E quase me destruo, ao pensar que cheguei a um
vazio oposto a tudo quanto procurava. A respeito
de mim em Vigo, quase nada. queria comprar
livros. Escolhi dois livros que depois verifiquei não
serem de grande utilidade. Mas ainda não os li.
Ah, gosto de cemitérios. Agradeço ao Nuno, isso. Mas
em Vigo os mortos deambulavam estranhamente
pelas próprias ruas e a galiza continuava deste
modo a ser-me insuportável.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022



16 julho 2024

carlos de oliveira / descida aos infernos

 
 
12
 
Foi por isso que vim,
descendo aos infernos que ardem
no olhar futuro
dos animais fogosos
que estás criando
em teu ventre secreto.
 
Foi por isso que vim,
morrendo lentamente
as mortes embuçadas no trajecto.
 
 
 
carlos de oliveira
descida aos infernos
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982




15 julho 2024

miguel serras pereira / de alguns rostos perdidos

 
 
 
De alguns rostos perdidos do rosto fica ou solta-se
anónimo esse brilho ao acaso deixado
esparso entre os lugares por onde um dia passaram
tão súbito de novo que assim talvez devêssemos
morrer como quem nele enfim de si se fosse
 
e deixasse ir-se a vida esquecida no seu rasto
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
véspera
barricada de livros
2022




 

14 julho 2024

pedro homem de mello / sopro

 
 
 
Passas como passa
O riso do vento
Mas na tua graça
Não há pensamento.
 
Porém, sem teu riso,
Que seria a graça
Do meu pensamento?
 
 
 
pedro homem de mello
jardins suspensos (1937)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983





13 julho 2024

nuno guimarães / seguro então a vida em pleno

 
 
Seguro então a vida em pleno
solo. Aí me deito
com os sinais perpétuos: árvores,
bosque, sombra, a permanência
de objectos olhados ou suspensos.
Agora, a outra lei – extractos
De sol sobre a retina – cede. Ao fácil
 
vento, à comoção do ar
pensado, onde se vive. Deste lugar os
elementos se afastam. Estão mortos,
inactivos no foco. Ou pela sombra
gravados, suspensos de algum livro.
Criaram-se da luz! São objectos
perecíveis: na imprecisão
da imagem, no seu repouso
exterior – entre a ciência e a vista.
 
 
 
nuno guimarães
extractos
entre sílabas e lavas
poesia completa
assírio & alvim
2024
 



12 julho 2024

luís quintais / derrota

 
 
És o derrotado.
Por uma impressão, um domínio
de imagens onde os grandes trevos
desenham as suas sombras,
 
por um meio-dia sem esperança
ou virtude, uma floresta
de bichos atónitos no fulgor
desbrido de uma clareira.
 
Os nomes tinham coisas no início.
Depois perderam-se os nomes
na sua relação (sanguínea, densa)
com as coisas. As peças de que se compunha
a natureza deslocaram-se para parte incerta.
 
Escreves atestando a derrota.
 
 
 
luís quintais
nocturama
assírio & alvim
2024




11 julho 2024

josé miguel silva / o atalante – jean vigo (1934)



 

 
No dia em que fomos ver O Atalante
eu levava, por coincidência, um cubo de gelo
no bolso do casaco. Lembro-me de tremer
um pouco. Até aí, tudo bem. Pior,
foi quando te ouvi pronunciar, distintamente:
quem procura o seu amor debaixo de água,
acaba constipado.
Na altura, ri-me: pensei que galavas do filme.
Sou tão estúpido.
 
 
 
josé miguel silva
movimentos no escuro
relógio d’água
2005