26 junho 2024

anna akhmatova / quando morre um homem

 
 
 
Quando morre um homem
Todos os seus retratos mudam.
Os olhos observam-nos de forma diferente,
Os lábios sorriem com outro sorriso.
Dei por isto ao regressar
Do funeral de um poeta.
Constatei-o depois inúmeras vezes
E a minha suposição confirmou-se.
 
 
 
anna akhmatova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022
 



25 junho 2024

rené char / os primeiros instantes

 
 
 
Víamos correr diante de nós a água que aumentava. Apagava de repente a montanha, expelindo-se dos seus flancos maternais. Não era uma torrente que se oferecia ao seu destino, mas um animal inefável, em cuja palavra e substância nos tornávamos. Retinha-nos apaixonados sob o arco todo-poderoso da sua imaginação. Que intervenção teria podido constranger-nos? Já não se fazia sentir a exiguidade quotidiana, o sangue derramado fora restituído ao seu calor. Adoptados pelo espaço aberto, desbastados até ao invisível, éramos uma vitória que jamais teria fim.
 
 
 
         
rené char
a fonte narrativa (1947)
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




24 junho 2024

konstantinos kaváfis / longe

 
 
 
Quisera evocar esta lembrança…
Mas já se esvaiu… como se nada restasse –
porque jaz longe, nos primeiros anos de juventude.
 
Uma pele como que feita de jasmim…
Essa noite de Agosto – seria Agosto? – essa noite…
Apenas lembro por fim os olhos; eram, creio, azuis…
Ah, sim, azuis! – um perfeito profundo azul.
 
1914
 
 
 
konstantinos kaváfis
konstantino kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017



23 junho 2024

ibn muqânâ / ó homem de alcabideche

 
 
 
ó homem de Alcabideche
que não te faltem sementes.
que o labor do teu moinho,
cuja vela o vento mexe,
possa ter o remoinho
que dispensa as correntes.
em ano bom só terás
não mais que vinte medidas
pois que as restantes verás
pelos javalis comidas.
é terra de pouca valia,
como eu próprio, agora surdo.
deixei corte luzidia,
mais o seu luxo absurdo.
em Alcabideche estou
no campo silvas cortando
com a podoa trabalhando.
se alguém te perguntar
se do teu trabalho gostas
tu responde-lhe que sim:
quem ama ser livre assim
de bom carácter dá mostras.
basta-me só o amor
e dádivas que recolhi.
deixei tudo sem rancor
e em tempo de primavera
a este chão me acolhi.
 
 
 
ibn muqânâ
o meu coração é árabe
adalberto alves
assírio & alvim
1999
 
 


22 junho 2024

adília lopes / arte poética

 



 

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
os nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo d enão chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
 
 
 
adilia lopes
um jogo bastante perigoso (1985)
caras  baratas
antologia
relógio d´água
2004



21 junho 2024

adam zagajewski / na beleza criada pelos outros

 
 
Só na beleza criada pelos outros
existe consolação, na música
e nos poemas dos outros
Só os outros nos podem salvar,
mesmo que a solidão tenha o sabor
do ópio. Não são o inferno, os outros,
se os espreitarmos de manhã, quando
têm a testa limpa, lavada pelos sonhos.
Por isso cismo muito sobre a palavra
que hei-de usar, «ele» ou «tu». Cada «ele»
é uma traição a qualquer «tu», mas,
em troca, um poema de alguém fielmente
oferece uma fresca, moderada conversa.
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017



20 junho 2024

jean cocteau / situação de mallarmé

 



 
Uma juventude presa do maravilhoso e do cinismo prefere não importa que médium de feira, não importa que escroque, a este modelo de homem honesto, de burguês íntegro, de aristocrata consumado, de operário fervoroso, de joalheiro: Mallarmé. Humano, demasiado humano. Confesso, pela minha parte, desaparecida a sombra que o nimbava, não ver nele senão o modern-style da joalharia.
 
Se Mallarnmé lapida pedras preciosas, são, em vez de diamante, uma ametista, uma opala, uma gema da tiara de Herodíades no Museu Gustave Moreau.
 
Rimbaud roubou os seus adiamantes: mas onde? É esse o enigma.
 
Mallarmé, o sábio, fatiga-nos. Merece a dedicatória suspeita das Fleurs du Mal, que Gautier não merece. Rimbaud conserva o prestígio da receptação, do sangue; nele, o diamante é talhado em vista de uma efracção, com o único fim de cortar um vidro, uma montra.
 
Os verdadeiros mestres da juventude entre 1912 e 1930 foram Rimbaud, Ducasse, Nerval, Sade.
 
Mallarmé influencia mais o estilo do jornalismo.
 
Baudelaire vai ganhando rugas, mas conserva uma juventude surpreendente.
 
Cada um dos versos de Mallarmé foi, desde o nascimento, uma bela ruga fina, estudiosa, nobre, profunda. Esse ar mais de velhice que de eternidade impede a sua obra de envelhecer aqui ou ali e confere-lhe uma aparência de conjunto enrugada, análoga à das linhas das mãos, linhas que fossem, porém, decorativas, em vez de proféticas.
 
 
 
jean cocteau
ópio
trad. miguel serras pereira
difel
1984





19 junho 2024

steve klepetar / futuro

 



 
A minha mãe lia
o futuro enquanto limpava,
 
vendo as nossas vidas
todas desenrolar-se
 
reflectidas em poças de água
escorregadias no chão da cozinha.
 
 
 
steve klepetar
o filho da bebedora de café
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




18 junho 2024

roland barthes / incidentes

 
 
 
 
 
Velho cego, mendigo de «djellaba» e de barba branca: imponente, impassível, antigo, sofocleano, odeonesco, enquanto o adolescente que mendiga para ele projecta no rosto toda a carga expressiva que uma situação assim justifica: a expressão torturada, repuxada por um esgar descendente, ostenta a dor, a miséria, a injustiça, a fatalidade: Vejam! Vejam!, diz a cara da criança, vejam aquele que já não pode ver.
 
 
 
roland barthes
incidentes
trad. tereza coelho e alexandre melo
quetzal
1987
 


17 junho 2024

roger wolfe / a avaria

 
 
Dar amor, já sei.
Mas não funciona.
 
Mostrar piedade, já sei.
Mas não funciona.
 
Eliminar o Eu, já sei.
Mas não funciona.
 
Acabar com a cobiça,
já sei.
Mas não funciona.
 
Dar
a outra face,
já sei.
Mas não funciona.
 
Viver o presente (e não o futuro
nem o passado), já sei.
Mas não funciona.
 
Que fazer, então?
Não sei.
E não funciona.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020




 


16 junho 2024

jacques prévert / tantas florestas

 
 
 
Tantas florestas arrancadas à terra
e massacradas
devastadas
devoradas pelas rotativas
Tantas florestas sacrificadas com vista ao fabrico de
                                                     pasta de papel
de milhares de jornais que chamam anualmente a
                                           atenção dos leitores
para os perigos da desflorestação dos bosques e das florestas
 
 
 
jacques prévert
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021





15 junho 2024

hans-ulrich treichel / estação abandonada

 
 
O caminho pedregoso,
onde os autocarros azuis
moem os eixos, desde que o comboio
já não passa.
 
O braço negro de uma bomba
que deita uma sombra de forca.
 
Cardos de um cinza prateado
crescem como flores mágicas entre os
carris; o depósito de água
engole pó.
 
Que despedidas
poderia haver aqui,
que abraços.
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994
 



14 junho 2024

antónio franco alexandre / duende

 
 
5.
Lambe-te o fogo cada ruga e pêlo,
e a água onde mergulhas logo encerra
em fresca e fina luva o corpo inteiro
e sem pudor algum te abraça e beija.
Mesmo o vulgar sabão, no tanque absorto,
pela nudez da carne se insinua
e entre as coxas flutua, como um peixe
mais branco, que outra sombra continua.
Mas eu, quando me cubro do teu rosto
e sou somente de água e fogo feito,
melhor ainda te conheço e quero,
e nada no teu corpo me é alheio:
em cada grão de pele te desejo,
em cada ruga leio o meu destino.
 
 
 
antónio franco alexandre
duende
assírio & alvim
2002