09 abril 2024

isabel meyreles / o livro do tigre

 
 
 
                       XXIV
 
Só existo
durante alguns segundos por mês
quando o meu senhor tigre
encontra tempo para pensar em mim
(o meu senhor tigre é tão distraído!)
o resto do tempo
sou uma espécie de máquina
enfrascada em drogas,
mal lubrificada,
um pouco enferrujada,
bastante rabujenta,
demasiado resmungona,
que finge existir
de olhos vazios e alma ausente
por detrás da máscara bronzeada
de alguém que vai frequentemente à praia,
uma máscara que tem um ar tão verdadeiro
que toda a gente se engana,
uma máquina que vai às compras
todas as manhãs
(quanto custa o quilo de mágoas?)
que conduz o carro
sem atropelar cães e gatos,
que apanha uma mão cheia de ar
em forma de telefone
e fala horas esquecidas,
que escreve cartas de água
com um estilete de carne
e que espera, espera, espera,
meus deus por quanto tempo ainda?
 
 
 
isabel meyreles
poesia
o livro do tigre 1976
tradução de isabel meyreles
quasi
2004
 


08 abril 2024

maria gabriela llansol / inquérito às quatro confidências

 



 

24 de Novembro de 1994
 
Foi a minha vez de fazer anos Tenho, de novo. Necessidade de me pôr em movimento, talvez mudar fisicamente de lugar, desfazer-me de móveis, de objectos, de roupas – aligeirar o sólido em proveito dos sinais e das imagens que o texto me trouxer. Afinal, o único lugar do corpo que verdadeiramente se move. Quando eu nasci, tudo estava relacionado com o espaço e o tempo.
A meio da vida, Vergílio falava do equilíbrio interior que exigia o absoluto do eu e a pergunta que continua sem resposta____saber se havia uma ponte do tempo sobre o espaço.
– Gabriela estará alguém à minha espera?
Não sei
«Se a pergunta é de saber», é o que hoje me respondo. – Vou nessa ponte sobre um burro carregado, o horizonte é vasto, o mar é interior e a vida, paradoxalmente, não sei se tem duração, ou não. Mas se a pergunta for de querer, de pujança então digo que paro o burro, deito os objectos às margens, ao fundo que os guarde, debruço-me na ponte, com o meu burro livre a meu lado,
Debruço-me sobre os meus membros e patas e vejo as imagens flutuando, a minha também, finalmente a desaguar no mar.
 
 
 
maria gabriela llansol
inquérito às quatro confidências
relógio d´água
1996
 


07 abril 2024

maria teresa horta / futuro

 
 
Contemplamos os anos
as coisas
e os homens
 
como nas noites o aço
ou a maneira mais simples
de dormir
 
Da consciente doença
das palavras
contemplamos daqui
 
o lento futuro que há-de vir
incompleto e breve
nas palavras
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
jardim de inverno
dom quixote
2009
 




06 abril 2024

maria do rosário pedreira / sentaram-se na areia

 
 
 
Sentaram-se na areia e descalçaram os sapatos.
Puseram-se a contar pelos dedos os barcos
que faltariam para chegar o verão.
 
Nenhum deles falava. Tinham passado juntos
algumas noites, num quarto sem vista. E, embora
julgassem o contrário, não conheciam um do outro
muito mais do que isso.
 
Estavam ali sentados para ver se acontecia alguma coisa.
 
No verão
alguém viria forçosamente buscá-los.
 
 
 
maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002




05 abril 2024

aleksandr blok / que difícil é andar entre a gente

 
 
Que difícil é andar entre a gente
A fingir que não se morre,
E neste jogo de trágicas paixões
Confessar que não se viveu ainda.
 
E, perscrutando o pesadelo nocturno, encontrar
Ordem no remoinho confuso dos sentimentos
Para que, no inexpressivo resplendor da are,
Se descubra o mortal incêndio da vida.
 
 
 
aleksandr blok
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022
 



04 abril 2024

paul bowles / tudo o que se lamenta

 
 
 
Quando as raiadas serpentes rastejarem sobre nós
E os nervosos gritos dos pássaros
Calarem todas as fontes e os pomares e quando estes
Prenderem todas as asas
Que esvoaçam no céu
Então uma e outra vez
Arrancarei sorrisos aos passeios do jardim
Transformando as carpas em falcões
As tarântulas e as abelhas
Então uma e outra vez
Destruirei tudo o que se lamenta.
 
 
                                          1929


paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008



 

03 abril 2024

carlos de oliveira / descida aos infernos

 
 
11
 
Mas um dia
a uma hora de crepúsculo qualquer,
quando mais sós nos encontrámos,
raiou de súbito nas praias
um fulgor de fogo.
 
E debruçados sobre os mares
dissemos
que foram feitos
                        não para o abandono
mas para neles florir
a grande e turva flor
desse fogo ainda por abrir.
 
 
 
carlos de oliveira
descida aos infernos
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982





02 abril 2024

louise glück / teoria da memória

 
 
 
Há muito, muito tempo, antes de ser artista com tormentos, afligindo-me o desejo, mas incapaz de formar apegos duradouros, muito antes disto, eu era um glorioso governante que unia todo um país dividido – foi o que me disse uma adivinha que me leu a sina. Há grandes coisas, disse ela, à tua frente, ou talvez atrás de ti: é difícil ter a certeza. E todavia, acrescentou, que diferença faz? Neste preciso instante és uma criança de mão dada com uma adivinha que lê a sina. Tudo o resto é hipótese e sonho.
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021




01 abril 2024

wislawa szymborska / poça de água

 



 
Recordo bem este medo da infância.
Evitava as poças,
sobretudo as novas, após a chuva.
Afinal, uma delas poderia não ter fundo,
ainda que parecesse igual às outras.
 
Ponho o pé e, de súbito, afundar-me-ei,
voando para baixo,
cada vez mais baixo,
rumo às nuvens reflectidas
ou talvez mais além.
 
Depois a poça secar-se-á,
fechar-se-á por cima de mim,
e eu para sempre trancada – onde –
ficarei com um grito não repercutido à superfície.
 
Só mais tarde compreendi que
nem todas as más aventuras
cabem nas regras do mundo
e mesmo que o quisessem,
não poderiam acontecer.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006
 




31 março 2024

josé tolentino mendonça / do que me lembro

 
 
Lembro-me da música dos lugares a oeste
dos planos para este reino amado
que pretendemos tanto tomar de assalto
antes dos brados do fogo
 
Mas as minhas mãos traziam já
uma sina mais escura, nem a noite
 
Qualquer penumbra serviu
ao meu coração oculto
a miséria do inverno
o treino dos falcões nas escarpas
a glória iludida
em que se consumiu o tempo
 
 
 
josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997
 



30 março 2024

daniel faria / explicação das casas

 



 
 
Mesmo no interior do quarto
És o lado de fora da casa
Os inúmeros degraus da casa. A mais antiga
Criança subindo-os um a um
 
 
 
daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998
 



29 março 2024

joaquín o. gianuzzi / por alguma razão

 



 

 
Comprei café, cigarros, fósforos.
Fumei, bebi
e fiel à minha retórica pessoal
estendi os pés sobre a mesa.
Cinquenta anos e uma convicção de condenado.
Fracassei como quase toda a gente de mansinho;
num bocejo, ao cair da noite, murmurei as minhas decepções,
antes de ir para a cama cuspo na minha sombra.
Esta foi a única resposta que pude oferecer a um mundo
que esperava de mim um estilo que provavelmente não me
correspondia.
Ou talvez fosse outro o motivo. É possível
que tivessem para mim um projecto diferente
em alguma provável lotaria
e o meu número não tenha saído.
É possível que ninguém encontre um destino meramente
                                                                                         privado.
É possível que a vaga da história o encontre por um e por todos.
Resta-me isto.
Um pedaço de vida que me cansou de antemão,
um poema deixado a meio do caminho
em direcção a uma conclusão desconhecida;
um resto de café na chávena
que por alguma razão
nunca me atrevi a investigar a fundo.
 
 
 
joaquín o. gianuzzi
por alguma razão
antologia de poesia argentina
selecção e tradução de hugo miguel santos
contracapa
2024





28 março 2024

josé gomes ferreira / heróicas

 
 
XIX
 
Ouve, primavera: não te atrevas
a sair das rosas para o mundo.
 
Não venhas arrepender de beleza fácil
este meu instinto
– tão contra mim –
de morrer nas barricadas dos outros
pela beleza impossível do futuro.
 
 
 
josé gomes ferreira
heroicas (1936-1937-1938)
poesia I
portugália
1972