1.
Em Eudóxia, que se estende para cima e para baixo, com becos tortuosos, escadinhas, vielas e pardieiros, conserva-se um tapete em que se pode contemplar a verdadeira forma da cidade. À primeira vista nada se parece menos com Eudóxia do que o desenho do tapete, ordenado em figuras simétricas que repetem os seus motivos ao longo de linhas rectas e circulares, tecido de linhas de cores resplandecentes, em que se pode seguir ao longo de todo o bordado o alternar das suas tramas. Mas se nos detivermos a observá-lo com atenção, persuadimo-nos de cada lugar do tapete corresponde um lugar da cidade e que todas as coisas contidas na cidade estão compreendidas no desenho, dispostas de acordo com as suas verdadeiras relações, que escapam ao nosso olhar distraído pelo vaivém pelo bulício pelo tropel da multidão. Toda a confusão de Eudóxia, o zurrar das mulas, as manchas negras de fumo, o cheiro a peixe, é tudo o que aparece na perspectiva parcial que captamos; mas o tapete prova que há um ponto a partir do qual a cidade mostra as suas verdadeiras proporções, o esquema geométrico implícito em cada um dos seus ínfimos pormenores.
Perder-se em Eudóxia é fácil: mas quando nos concentramos a fixar o tapete reconhecemos a rua que procurávamos num fio creme ou anilado ou amaranto que através de uma longa volta nos faz entrar num recinto cor de púrpura que é o nosso verdadeiro ponto de chegada. Cada um dos habitantes de Eudóxia compara com a ordem imutável do tapete uma sua imagem da cidade, uma sua angústia, e cada um pode encontrar escondida no meio dos arabescos uma resposta, o relato da sua vida, as voltas do destino.
Sobre a relação misteriosa de dois objectos tão diferentes como o tapete e a cidade foi interrogado um oráculo. Um dos dois objectos – foi o responso, – tem a forma que os deuses deram ao céu estrelado e às órbitas em que giram os mundos; ou outro é um reflexo aproximado, como todas as obras humanas.
Os áugures já há muito tempo tinham a certeza de que o harmonioso desenho do tapete era de feitura divina; neste sentido foi interpretado o oráculo, sem deixar margem para controvérsias. Mas do mesmo modo se pode tirar a conclusão oposta: que o verdadeiro mapa do universo é a cidade de Eudóxia tal como é, uma mancha que alastra sem forma, com ruas todas em ziguezague, casas que se desmoronam uma sem cima das outras nos tufões, incêndios, gritos nas trevas.
italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999
Em Eudóxia, que se estende para cima e para baixo, com becos tortuosos, escadinhas, vielas e pardieiros, conserva-se um tapete em que se pode contemplar a verdadeira forma da cidade. À primeira vista nada se parece menos com Eudóxia do que o desenho do tapete, ordenado em figuras simétricas que repetem os seus motivos ao longo de linhas rectas e circulares, tecido de linhas de cores resplandecentes, em que se pode seguir ao longo de todo o bordado o alternar das suas tramas. Mas se nos detivermos a observá-lo com atenção, persuadimo-nos de cada lugar do tapete corresponde um lugar da cidade e que todas as coisas contidas na cidade estão compreendidas no desenho, dispostas de acordo com as suas verdadeiras relações, que escapam ao nosso olhar distraído pelo vaivém pelo bulício pelo tropel da multidão. Toda a confusão de Eudóxia, o zurrar das mulas, as manchas negras de fumo, o cheiro a peixe, é tudo o que aparece na perspectiva parcial que captamos; mas o tapete prova que há um ponto a partir do qual a cidade mostra as suas verdadeiras proporções, o esquema geométrico implícito em cada um dos seus ínfimos pormenores.
Perder-se em Eudóxia é fácil: mas quando nos concentramos a fixar o tapete reconhecemos a rua que procurávamos num fio creme ou anilado ou amaranto que através de uma longa volta nos faz entrar num recinto cor de púrpura que é o nosso verdadeiro ponto de chegada. Cada um dos habitantes de Eudóxia compara com a ordem imutável do tapete uma sua imagem da cidade, uma sua angústia, e cada um pode encontrar escondida no meio dos arabescos uma resposta, o relato da sua vida, as voltas do destino.
Sobre a relação misteriosa de dois objectos tão diferentes como o tapete e a cidade foi interrogado um oráculo. Um dos dois objectos – foi o responso, – tem a forma que os deuses deram ao céu estrelado e às órbitas em que giram os mundos; ou outro é um reflexo aproximado, como todas as obras humanas.
Os áugures já há muito tempo tinham a certeza de que o harmonioso desenho do tapete era de feitura divina; neste sentido foi interpretado o oráculo, sem deixar margem para controvérsias. Mas do mesmo modo se pode tirar a conclusão oposta: que o verdadeiro mapa do universo é a cidade de Eudóxia tal como é, uma mancha que alastra sem forma, com ruas todas em ziguezague, casas que se desmoronam uma sem cima das outras nos tufões, incêndios, gritos nas trevas.
italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999