14 agosto 2023

ruy belo / efeitos secundários

 
 
É bom estarmos atentos ao rodar do tempo
O outono por exemplo tem recantos entre
dia e noite ao pé de certos troncos indecisos
cercados um por um de sombras envolventes
 
Rente às árvores vamos, húmidos humildes
Dizem que é outono. Mas que época do ano
toca nestas paredes que roçamos
como gente que vai à sua vida
e não avista o mar, afinal símbolo de quanto quer,
ó Deus, ó mais redonda boca para os nomes das coisas
para o nome do homem ou o homem do homem?
 
Banho lustral de ausência é este tempo
de pés postos na terra em puro esquecimento
E vamo-nos perdendo de nós mesmos, vamos
dispersos em bocados, vítimas do vento
ficando aqui, ali, nalgum lugar que amamos
Nada mais do que terra há quem ao corpo nos prometa
Quem somos? Que dizemos?
        Reúna-nos um dia o toque da trombeta
 
 
ruy belo
todos os poemas I
sete coisas verdadeiras
assírio & alvim
2004




13 agosto 2023

qassim haddad / esta pessoa que eu não conheço

 
 
Esta pessoa que eu não conheço
e que não me conhece,
porque é que demora tanto
e me deixa
na solidão desta calçada.
 
 
 
qassim haddad
um árabe é um árabe/é um árabe, um árabe
breve antologia de poesia árabe
versões e traduções joana santos e andré simões
contracapa
2022





12 agosto 2023

giórgios seféris / negação

 
 
Na praia do mar, bem guardada,
branca pomba, ao mei’dia,
a sede que a gente sentia
– e a água salgada!
 
Escrevemos o nome dela
na loura areia lisa,
mas ao de leve sopra a brisa
e a escrita já se vela.
 
Com que alma e força desmedida
com que chama e paixão,
levámos nossa vida, em vão!
E mudámos de vida!
 
 
                  De Strofi, 1931
 
 
 
giórgios seféris
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. de manuel resende
língua morta
2021
 

11 agosto 2023

margaret atwood / sombra

 
 
Alguém deseja o teu corpo.
 
Qual é o negócio?
Implorar, pedir emprestado, comprar ou roubar?
Sarjeta ou pedestal?
É sempre assi com os corpos
que alguém quer.
 
O que vale isso para ti?
Uma rosa, um diamante,
um fantástico milhão, uma piada, uma bebida?
A história de que este gosta de ti?
 
Poderias concede-lo, este corpo,
como criatura generosa que és,
ou desligar e tê-lo arrebatado
e nunca saberias.
 
Despede-te dele, do corpo
que já foi teu.
Está a correr bem,
está enrolado em peles, está a dançar
ou a esvair-se além num prado.
 
Também já não precisavas dele,
atraía demasiada atenção.
Ficas melhor só com uma sombra.
 
Alguém deseja a tua sombra.
 
 
 
margaret atwood
afectuosamente
trad. joão luis barreto guimarães
bertrand editora
2021



10 agosto 2023

paul celan / no poço do tempo

 
 
NO POÇO DO TEMPO,
decifrando o mundo:
 
a gaivota entra e fica,
a greda ganha forma,
 
do gelo em frente
acena aquele que é para mim
e para o mundo o mais perigoso
dos nomes.
 
 
 
paul celan
a morte é uma flor
trad. de joão barrento
relógio d´água
2022




09 agosto 2023

charles bukowski / advertência

 
 
os cisnes afogam-se em água de esgoto,
retirem os avisos,
testem os venenos,
arredem a vaca do touro,
a peónia do sol,
arranquem da minha noite os beijos de alfazema,
mandem as sinfonias para o meio da rua
como pedintes,
afiem as unhas,
flagelem as costas dos santos,
atordoem sapos e ratos para o gato,
queimem quadros deslumbrantes,
mijem na madrugada,
o meu amor
está morto.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018
 



08 agosto 2023

pedro de queirós tavares / se tens fósforos

 



 

Moço eu fui criado entre pencas e canetilhas
umas eram-me comparsas outras baionetas
enquanto o cilindro miraculava o quente na água
o cão varria a cauda do gato coçado para debaixo do sofá
descascava-se o feijão e a peneira fazia cara de prisão
cara de apicultor e vez de harpa
o poço chorava gravilha
lágrimas armadilhadas à cata de joelhos
o vizinho da muleta trazia (de certeza) cabeças de gado no saco
malhava-se dos portões pagavam-se fogueteiros
corava-se a roupa na eira remedavam-se feridas
abafavam-se carraças com éter davam-se eclipses
trepavam-se escadotes que eram marmeleiros
porque tinham sido mesmo marmeleiros eu vira
o serrote lambê-los moço
 
 
 
pedro de queirós tavares
se tens fósforos
fresca / poetria
2023
 
 
 

 

 


07 agosto 2023

antónio gancho / o arco-da-velha

 




 
O Arco-da-Velha possui as cores da bandeira portuguesa
e isso é porque tu tens a certeza? e isso é porque tu tens a certeza?
mas no entanto já toda a gente sabe que também o Arco-da-Velha
contém as cores da bandeira portuguesa
vermelho por baixo e o verde por cima.
No entanto se enquanto quanto
mais prima mais se lhe arrima
é porque qual a razão do Arco-da-Velha falta então
a loucura de todo o Céu feito diabrura.
É ou não é meus amigos
e prossigo-vos que
sem os trigos da seara nada se faz que mara mais de o ver
antes este Arco-da-Velha depois
se depois então deste nascer o Arco-Íris depois de nascer.
 
 
 
antónio gancho
o ar da manhã
gaio do espírito (dez. 85 / Fev. 86 )
assírio & alvim
1995




06 agosto 2023

herberto helder / teoria sentada

 
 
IV
 
Quando já não sei pensar no alto de irrespiráveis irrespiráveis
montes, e ouço muitas vozes por dentro,
e as estrelas se desdobram à volta, então.
E já não sei como posso imaginar por baixo
das traves da cabeça por baixo
das traves rijas do céu, quando então.
Não sei como não posso fechar em duas conchas
essa pérola, essa dureza
preciosa e feroz
envolta
pelo frio, quando já não sei pensar.
Irrespiravelmente como então.
Quando já nada sei menos ser o mais puro
dos cantores que pararam diante dos montes direitos
abrasados. Dos que se calaram. Dos
cantores.
O mais puro dos cantores fulminados.
Quando já não sei falar, e acabo.
Quando então irrespiravelmente puro
por este lado, por aquele, por outro mais novo
lado. Quando digo: não sei.
E os montes compridos então para cima e eu
em baixo irrespiravelmente digo: não sei como:
pensar, respirar, dizer, saber.
Então irrespiravelmente quando puro e não
sei. E acabo.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
teoria sentada
assírio & alvim
1996





05 agosto 2023

antónio osório / o betão armado

 
 
A tristeza das pessoas.
A tentação da infelicidade.
A crueza, os arremessos,
a leonina inventiva.
Como sabem desfazer.
O horror que sentem.
A falta de escrúpulos.
De consentida fragilidade:
dar, num verso, a outra face.
 
 
 
antónio osório
casa das sementes, poesia escolhida
décima aurora (1982)
assírio & alvim
2006




04 agosto 2023

cesare pavese / passarei pela praça de espanha

 
 
O céu estará límpido.
As ruas abrir-se-ão
sobre as colinas de pinheiros e pedra.
O tumulto das ruas
não modificará esse ar imóvel.
As flores salpicadas
de cores, que há nas fontes,
piscarão os olhos como mulheres
divertidas. As escadas
os terraços e as andorinhas
cantarão ao sol.
Abrir-se-á aquela rua,
as pedras cantarão,
o coração baterá em sobressalto
como a água nas fontes –
será esta a voz
que subirá as tuas escadas.
As janelas saberão
o valor da pedra e do ar
matinal. Abrir-se-á uma porta.
O tumulto das ruas
será o tumulto do coração
na luz perdida.
 
Serás tu – imóvel e clara.
 
 
                   28 de Março de 1950
 
 
 
cesare pavese
virá a morte e terá os teus olhos (11 Março-11 Abril, 1950)
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021
 



03 agosto 2023

edmundo de bettencourt / nebulosa



 

Certo passado audaz sempre revive,
apenas, sob um céu menos escuro.
Quem vive para o futuro,
já o vive!
 
Futuro!
Quando te posso ver, por ti, plena aurora,
condena-te a presença:
és este agora
que possuo
como a abelha suga a rosa…
e sem que o resto me importe.
 
Mas ante sou depois, ver-te ou pensar-te
é ver uma nebulosa
– é como pensar na morte.
 
 
 
edmundo bettencourt
o momento e a legenda (1917-1930)
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999
 



 

02 agosto 2023

a. dasilva o. / nossa senhora do abs

 



 
Nossa senhora do absinto
e seus virgos marujos
abismossínios processados em poemas
 
Barcos de poesia
transportam
refugiados
engarrafados
 
Vejo um cadáver ao longe
 
A bela
vela do Restelo
 
Não pesco almas
Nem sou obra dum espírito superior
Nem sobre as águas caminho
Não passo dum saco de lixo
dentro da moby dik
 
 
 
a. dasilva o.
eufeme
magazine de poesia n.º 4
julho/setembro 2017
eufeme
2017