16 junho 2023

josé emílio-nelson / a dimensão do céu

 



 
Entre as imagens do céu, as de maior beatitude e profundeza, são as que se proíbem à criança: a descida da noite ou a iluminação atroante do dia.
 
Desdobra-se a luz finíssima e as nuvens apagadas dão um novo rosto aos céus. O que se perdeu daquele tecto de estrelas é o calcanhar vagaroso e encoberto que passeia. Disse-me, é a Lua. A criança estava deitada a vê-la mover-se depressa, e a mostrar aquele aspecto de cavalo manso à bicharada da neblina. E vê um louco a atar o cabelo de um gigante na crina, o homem a acordar arrastado pela convulsão do vento e a fragilidade de uma figura, anão talvez, que se sente perseguido. Outros embatem nesse corpo impetuoso de Deus. Um olho único, luzidio, indescritível, empalidece com a monstruosidade do Príncipe das Trevas.
 
Abre-se o azul naquele espaço vasto e algo soberano faz girar o cone de um Universo que assustava a criança. Na verdade, a dimensão do céu é a alma da criança.
 
 
 
josé emílio-nelson
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991
 




15 junho 2023

jorge luís borges / o sono

 



 

Se o sono fosse (como dizem) uma
Pura trégua ou repouso para a mente,
Porque é que, se te acordam bruscamente,
Sentes que te roubaram a fortuna?
Porque é tão triste madrugar? A hora
Despoja-nos de um dom inconcebível,
Tão íntimo que só é traduzível
Numa modorra que a vigília doira
Com sonhos, que bem podem ser parciais
Reflexos dos tesouros que há na sombra
De um orbe intemporal que não tem nome
E que o dia deforma em seus cristais.
Quem serás esta noite no obscuro
Sono, do outro lado do seu muro?
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998
 



14 junho 2023

maria gabriela llansol / o começo de um livro é precioso



 

276
 
As setas indicavam a saída (porque não se via) a quem
Descesse, a quem subisse, a quem se perdesse. Há amigos,
Dizia-me, que deixara de visitar, porque o trajecto exigia
A solução de puzzles complicados ou a angústia de labirintos
Lineares. As setas indicavam o caminho, quer dizer, não
Se ia esquecer de enviar ao arquitecto um ramo de flores
Com pétalas e raízes explosivas.
 
 
 
maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003
 


 

13 junho 2023

irene lisboa / há muito quem gabe o gosto de partir

 
 
HÁ muito quem gabe o gosto de partir e eu mesma já o tenho invejado. Aqui há não sei quantos anos a minha vontade era partir, ter saudades, deixar isto, não assentar o pé, ir voando. Já se sabe que era a fantasia que me levava. O mundo era pequeno e pouco para mim…
 
Hoje penso que partir é muito custoso. Partir é deixar um bem ou um mal, real e conhecido, pelo vago sem delimitação. Vai.se vivendo e tudo se nos vai restringindo… Aquilo que se não conhece, como será? Teremos defesa, resistência, não haverá surpresas, lutas, incapacidade de acomodação?
 
E aquele ante-partir, aqueles dias de desarreigar, de pensar no cá e no lá?...
 
 
 
irene lisboa
queixa
solidão II
portugália editora
1966
 



12 junho 2023

jorge melícias / nisto de procissões pouco conta o santo

 



 
Nisto de procissões pouco conta o santo,
vale a qualidade do processionário.
Ao mais diligente caudatário
que importa a chavasquice do manto?
 
Para bom prelado serviçal e meio,
o resto só maledicência, pasto para pábulo.
A cada asinino o que lhe convém por estábulo
e a cada escrúpulo o seu próprio tenteio.
 
Antes do pombo a rola e depois ainda há o torcaz,
(ah, a columbófila loquacidade dos ângulos…)
vê bem por onde engordar até primaz!
 
Acautela, pois, da consciência os longos preâmbulos,
que a pródiga rapina ficou lá para trás
e este é verdadeiramente o recreio dos fâmulos.
 
 
 
jorge melícias
eu morrerei deste século às mãos de quem? (2018)
a oratória dos mansos
porto editora
2020
 



11 junho 2023

josé luís peixoto / quantas vezes

 



 
quantas vezes apostaste a tua vida?
apostei a minha vida mil vezes.
perdeste tudo?
sim, perdi sempre tudo.
 
 
 
josé luís peixoto
a criança em ruínas
quasi
2002




10 junho 2023

al berto / truque do veneno

 
 
ofereço-te uma laranja
tenho sempre laranjas escondidas no fundo das algibeiras
berlindes como olhos assustados de pantera, cordéis encerados
bons para estrangular
lâminas doces para abrir sinais de vida sobre a pele
e uma faca quebrada que me ajuda a recordar alguns nomes de cidade
 
o pior é que nos jogos de laranjas, mesmo nos mais difíceis
quem PERDE GABHA
sabemos que o veneno age sempre dos pés para a cabeça
estonteia
espero, atento à última convulsão
 
mais tarde, desato o cordel
retiro a faca profundamente enterrada, recuo um pouco
contemplo o sangue e a obra, esvazio as algibeiras
substituo os objectos, descalço as luvas
apago as impressões digitais, falsifico as fotografias
lavo demoradamente o sangue e o esperma da boca
saio para a rua, clandestino
procuro outro puto tardio pela cidade
seduzo-o com a imagem deslavada duma laranja, recomeço
o inocente jogo
 
 
 
al berto
alguns truques de ilusionismo 1979/80
o medo
assírio & alvim
1997




 

09 junho 2023

josé miguel silva / seis

 



 
As lágrimas trazem um cão para dentro de casa.
Numa casa compassiva dá-se valor ao choro,
aceita-se o repto de mais uma boca
para morder. Assim a criança já não vai sozinha
à mercearia. Se quiser bater na professora,
bate no cão, o cão foge
para debaixo de um táxi, a criança
deixa crescer as unhas, arranha
com paciente fúria a magreza dos seus braços e chora,
chora a sua infância morta.
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003




08 junho 2023

vicente gallego / setembro, 22

 
 
 
                                                           setembro, 22
 
 
Dizes-me que tudo isto é absurdo,
que não tem sentido a vida se a pensares.
Não é, porém, um fim o que eu procuro,
qualquer explicação ou uma promessa,
mas sim estar aqui e à deriva,
uma garrafa que na praia
aguarda a maré, nenhum caminho ou ansiedade,
o completo abandono sobre a água,
no mar, sendo parte das ondas
unicamente, a absoluta plenitude no oceano,
não a venda que a vossa meta põe nos meus olhos
pois esse fim pressupõe uma renúncia.
Nada parece alheio se respira,
mas não te enganes, o absurdo só existe
a partir da aceitação de um paraíso imaginado.
 
 
 
vicente gallego
poesia espanhola de agora II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 

07 junho 2023

pier paolo pasolini / sem ti regressava

 
 
Sem ti regressava, qual bêbado,
incapaz de estar só à noite
quando as cansadas nuvens se dissipam
na escuridão incerta.
 
Estive milhares de vezes só
Desde que estou vivo, e em milhares de noites
                                                           iguais
foram-me escurecidos aos olhos a relva, os
                                                        montes,
os campos, as nuvens.
 
A sós de dia, e depois adentro o silêncio
da noite fatal. E ora, bêbado,
regresso sem ti, e ao meu lado
só há sombra.
 
E de mim longe estarás milhares de vezes,
e depois para sempre. Não sei travar
esta angústia que galopa dentro do peito;
estar só.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




06 junho 2023

maurice blanchot / embora com a vista apenas diminuída

 
 
Embora com a vista apenas diminuída, andava pelas ruas como um caranguejo, agarrando-me firmemente às paredes e, assim que as largava, uma vertigem cercava os meus passos. Frequentemente via o mesmo cartaz nas paredes – um simples cartaz com letras enormes: Tu também o desejas. Claro que o desejava. E a cada vez que esbarrava nestas palavras, eu desejava-o.
 
 
maurice blanchot
a loucura do dia
trad. ricardo ribeiro
sr teste edições
2021




05 junho 2023

benjamin péret / melancólica sala da caldeira

 



 
Sonho com todas as estrelas
e elas fazem o mesmo
Não há tempo a perder
tudo isto vai rebentar
Estamos perdidos
estamos perclusos
Suspirar ou olhar
nem nem já não sonho e vou-me embora
Não estamos perdidos
 
 
 
benjamin péret
sol de bolso
uma antologia de poemas
trad. regina guimarães
contracapa
2023




04 junho 2023

robert desnos / conto de fadas

 
 
Era uma vez muitas vezes
Um homem que amava uma mulher
Era uma vez muitas vezes
Uma mulher que amava um homem
Era uma vez muitas vezes
Uma mulher e um homem
Que não amavam aquele e aquela que os
                                                                  amavam
Era uma vez
Talvez uma vez apenas
Uma mulher e um homem que se amavam
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022