28 maio 2023

pedro homem de mello / o rapaz da camisola verde

 
 
É com histórias que se conta a vida
E a minha história é breve de contar.
Mas a palavra bela e proibida
Tem da noite os silêncios e o luar…
 
Podia eu vir, a meio do caminho,
Juntar-me à Cruz, cantando para erguê-la.
Mas o segredo, amigos, é meu vinho
E minha estrela.
 
Podia, com os braços, destruir
A trajectória deste coração.
Mas sou de Alcácer Quibir
De El-Rei Dom Sebastião.
 
E assim, como em manhã de nevoeiro
– Manhã de Outono quando não de Abril –
Aqui vos deixo, oculto mas inteiro,
O meu perfil…
 
 
pedro homem de mello
o rapaz da camisola verde (1954)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




27 maio 2023

rui lage / brasserie

 



 

Remexia cerveja, recordava vinho
E lâminas de claridade retinta
Feriam-me nesta inércia de linho
Quando ela entrou, drapeando a cinta
 
A flamenga… tudo o mais era moldura:
Um baixo-relevo de óleo estático
E a luz da lamparina cozedura
De sombra, de ar, de lume dramático.
 
Eu só aplaudia o seu desfile rosado
Como um papel-de-parede ruidoso
(E nos seus cabelos sentia-me usado)
 
Como se lágrimas, palavras jorrando
Na suspensão de ela ser me sentasse
E já desde o fim do olhar me olhasse.
 
                                     
                                               Bruxelas
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002
 



26 maio 2023

vasco graça moura / mão

 



 

como a palma da mão
aberta e livre
com cinco dedos lisos     escorridos
é tépida e saudável
 
na sombra dum recanto se desenha
incólume diurna
ou franca e disponível
avança e auxilia
 
com pequenas nervuras     leves sulcos
levemente tensa     levemente côncava
moldada para molde
 
é tímida e segura
mesmo pobre
 
 
 
vasco graça moura
modo mudando
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007
 


25 maio 2023

manuel antónio pina / calo-me

 



 

Calo-me quando escrevo
e assim as palavras falam mais alto e mais baixo
Nada no poema é impossível e tudo é possível
Mas não arranjo maneira de entrar no poema
e de sair de mim e por isso a minha voz é profunda e rouca
e por isso me calo (e como me calarei?)
No entanto ninguém é tão falador como eu
Nem há palavras que não cheguem para não dizer nada
 
E vós também: não me faleis de nada, ou falai-me.
Porque não sabeis o que dizeis.
 
 
 
manuel antónio pina
ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde (1969)
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992
 



24 maio 2023

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 



 

V

Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





23 maio 2023

federico garcia lorca / encruzilhada

 




 
Vento do Leste,
uma lanterna
e o punhal
no coração.
A rua
tem um tremor
de corda
em tensão,
um tremor
de enorme moscardo.
Por toda a parte
eu
vejo o punhal
no coração.
 
 
 
federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013
 



22 maio 2023

walt whitman / canto de mim mesmo

 




I
 
Celebro-me e canto-me,
E aquilo que assumo tu deves assumir,
Pois cada átomo que a mim pertence a ti pertence também.
 
Vagueio e convido a minha alma,
À vontade vagueio e inclino-me a observar a erva do Verão.
A minha língua, cada átomo do meu sangue, composto deste solo, deste ar,
Aqui nascido de pais aqui nascido de outros pais aqui nascidos, e dos seus
           pais também,
Eu, aos trinta e sete anos, de perfeita saúde começo,
Esperando que só a morte me faça parar.
 
Suspensos os credos e as escolas,
Retiro-me por certo tempo, deles saturado mas não esquecido,
Sou o porto do bem e do mal, e seja como for falo,
Natureza sem obstáculos com a sua energia original.
 
 
 
walt whitman
canto de mim mesmo
trad. de José agostinho baptista
assírio & alvim
1999



21 maio 2023

samuel beckett / sânie II

 
 
Havia uma terra de felicidade
o American Bar
na Rue Muffetard
havia lá ovos vermelhos
tenho um sujo quero dizer hemorróidas
regressando do banho
o vapor o deleite o refresco de sumo de frutas
a pena do velho corpo
magrizela, indolente feliz
à larga no meu velho fato
navegando indolente até Puvis a dupla fileira
                                                 [de tulipas
açoitem-me açoitem-me com tulipas amarelas
baixarei as minhas velhas calças
o meu amor coseu as algibeiras vivas vivas olé
                  [pois fê-lo dizendo que era melhor
e então imaculado deslizando dentro dos
                                       [farrapos castanhos
fresco e livre subindo o fiorde de ovos pintados
                                                        [e sinos
desapareço não sabias na taberna
as cavalas jogam bilhar gritam os pontos
a Barfrau produz grande impressão com o seu
                                            [enorme traseiro
estão lá Dante e a bem-aventurada Beatriz
antes da Vita Nuova
as bolas espadanam pouca sorte camarada
estão lá Gracieuse Belle-Belle pia abaixo
Percinet de botas com a sua queixada de
                                                        [cobalto
beijocam-se à lufa-lufa
sugar não é sugar que altere
lo Alighieri retira-se ao revoir a isso tudo
não consigo reprimir um risinho de despeito
escuta
silêncio terrível no salão
um frémito convulsiona Madame de la Motte
percorre sonoro as suas carnes
o grande traseiro silencia-se em espuma
depressa depressa as bengalas de cipó de
              [cavalete para o desconexo palavrório
vivas puellas mortui incurrrrrsant boves
oh súbito súbito antes que ela se recomponha
               [a golilha de bambu para a bastonada
uma fessade à la mode de lua amarga
oh Becky poupa-me não te fiz nenhum mal
                                          [poupa-me maldita
poupa-me boa Becky
manda às tuas víboras que parem Becky que
                          [eu te darei larga recompensa
Senhor tem misericórdia de
Cristo tem misericórdia de nós
 
Senhor tem misericórdia de nós
 
 
 
samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970

20 maio 2023

pablo neruda / acolhe-me no tear da tarde

 
 
Acolhe-me no tear da tarde,
quando o anoitecer vai urdindo
o seu vestuário e palpita no céu
uma estrela cheia de vento.
 
Traze-me a tua ausência até ao fundo,
pesadamente, com os olhos tapados,
atravessa-me a tua existência, admitindo
que este meu coração está destruído.
 
 
 
pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971




19 maio 2023

emanuel jorge botelho / poética iii

 



 
e há os poemas que ainda não escrevi,
os que são antes do papel,
os que estão prontos antes das palavras.
desses só há uma sombra
a dizê-los no silêncio,
uma espécie de rumor
que os põe dentro do tempo.
 
 
quando chegam,
já são de linho.
 
 
 
emanuel jorge botelho
nervo/18 maio / agosto 2023
colectivo de poesia
2023
 




18 maio 2023

saint-john perse / os sinos

 



 

 

     Velho homem de mãos nuas,
     reposto entre os homens, Crusoé!
     choravas, imagino, quando as torres da Abadia, como um
fluxo, derramavam o lamento dos sinos sobre a Cidade…
     Ó Despojado!
     Choravas ao pensares nos recifes sob a lua; nos silvos das praias mais distantes; nas músicas estranhas que nascem e sufocam a asa fechada da noite,
     semelhantes aos círculos encadeados que são as ondas de uma concha, à amplificação dos clamores sob o mar…
 
 
 
 
saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016
 



17 maio 2023

albano martins / desta varanda, o mar



 
A saudade do cais não é de pedra,
é de água. Que o digam os olhos
dos que partem, dos que ficam…
 
*
 
La saudade del muelle no es de piedra:
es de agua. Que lo digan los ojos
de los que parten, de los que quedan.
 
 
 
albano martins
desta varanda, o mar
tradução para castelhano de
alfredo pérez alencart
edições simplesmente
2014
 



 

16 maio 2023

antónio josé forte / declaração

 


 

Eu de barba branca a tiracolo
rodeado de fumo por todos os lados vadios
menos pelo lado do mar
com um incêndio à ilharga
e dois artelhos clandestinos
eu salvo miraculosamente para te amar e curar
e esperar o teu regresso glacial e escarlate
que escrevo poemas desde que um rato
me entrou prós pulmões e só por causa disso
eu que disse: há um cancro no mapa universal
e engenheiros, geógrafos, doutores se apressaram a negá-lo
eu da cintura pra cima de alcatrão e terror
e do umbigo para baixo de quiosque chinês
eu não espero piedade obrigado
 
 
 
antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m . pereira
2003