25 março 2023

antónio osório / um sentido

 




 
Porque há um sentido
no lírio, incensar-se;
e no choupo, erguer-se;
e na urze arborescente,
ampliar-se;
e no cobre, primeira cura,
que dou à vinha,
procriar-se.
 
E outro, pressago,
sentido há na memória,
explodir-se.
E outro, imensurável,
no amor, entregar-se.
E outro, definitivo,
na morte, render-se.
 
 
 
antónio osório
casa das sementes, poesia escolhida
felicidade da pintura
assírio & alvim
2006
 




24 março 2023

charles bukowski / lifedance

 



 

a linha que divide o cérebro e a alma
é afectada de diversas formas através da
experiência –
alguns perdem completamente a mente e tornam-se
                                                        apenas alma:
lunáticos.
alguns perdem toda a alma e tornam-se apenas mente:
intelectuais.
alguns perdem ambas e tornam-se:
aceites.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018
 
 


23 março 2023

karl vennberg / epílogo

 
 
Finalmente assim é o amor:
uma ferida incurável
que cada vez menos aguenta que a cocem;
mas também um espelhismo
de que o olhar só se desprende ao fim de tudo
antes que voltemos o rosto
para a parede vazia.
Talvez nos chegue, acrescenta a irónica esperança,
Uma palavra numa carta um dia depois da nossa morte.
 
I väntan pa pendeltaget, 1990



karl vennberg
o destino da árvore é
transformar-se em papel
antologia de poesia sueca
poemas vertidos para português por
amadeu baptista
contracapa
2021




22 março 2023

luís filipe castro mendes / o bibliotecário de alexandria


 

 

Quem julgará o que acordou, sobressaltado,
para salvar os espólios? Ele viu claramente o lume vivo,
as chamas que ninguém poderia apagar;
mas concluiu que tudo não era mais que um sonho
e sonhou sabê-lo.
 
 
 
luís filipe castro mendes
relâmpago
revista de poesia
nr. 16/4 2005
luís miguel nava
fundação luís miguel nava
2005



 

21 março 2023

georg maurer / os românticos e os decadentes

 
 
O céu tinha sido varrido
e as Madonnas sentadas pelos prados
mostravam os seios brancos de neve e amamentavam os meninos.
Entraram na cena os poetas e procuraram as suas amadas,
cada um a sua Madonna. E as raparigas assustadas
viram-se postas em nuvens onde não conseguiam estar sentadas
até as mais angélicas, etéreas, caíam
pelos revérberos da névoa. Melancólicos,
os poetas mudaram, puseram-se a cantar virgens mortas,
fizeram do frio túmulo, da branca mortalha
o seu céu e celebraram aí as suas festas
com grandiloquentes hinos à noite –
até que um, estremecendo, levantou na cripta
a tampa do caixão: e viu horrorizado os vermes
disputarem os melhores petiscos
do corpo da amada. – Agora, todos os poetas
ficaram esclarecidos, apressaram-se a sentar
as moças sobre os joelhos e a aceitar as drogas do patrão.
Mas, com o absinto no sangue, saíam perturbados
para o ar da manhã e convertiam-se a chorar
à Madonna lá em cima, a cuja cabeceira infinita
há muito se tinham instalado os físicos com frios instrumentos.
 
 
 
georg maurer
trad. joão barrento
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990
 



20 março 2023

sylvia plath / canção da manhã

 




 

O amor acertou o teu passo como um pesado relógio de ouro.
A parteira deu-te duas palmadas nos pés e o teu grito nu
Tomou o seu lugar entre os elementos.
 
As nossas vozes em eco engrandecem a tua chegada. Estátua
     nova.
Na corrente de ar de um museu, a tua nudez
Encobre a nossa segurança. Rodeamos-te inexpressivos como
     paredes.
 
Sou tanto tua mãe como
A nuvem que em espelho se destila e nele vai reflectir o seu
     lento
Apagamento às mãos do vento.
 
Toda a noite a tua respiração de borboleta
Paira entre o cor-de-rosa murcho das roas. Acordo e oiço:
Move-se no meu ouvido um mar distante,
 
Um choro e saio da cama aos tropeções, vaca gorda e florida
Na minha camisa de noite vitoriana.
A tua boca abre-se limpa como a de um gato. O quadrado da
     janela
 
Empalidece e engole as estrelas sombrias. E tu agora ensaias
     a tua
Mão cheia de notas;
Claríssimas vogais elevando-se como balões.
 
 
 
sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




19 março 2023

ricardo reis / quatro vezes mudou a estação falsa

 
 
 
Quatro vezes mudou a estação falsa
No falso ano, no imutável curso
        Do tempo consequente;
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde;
E não sabe ninguém qual é o primeiro,
        Nem o último, e acabam.
 
s.d.



poemas de ricardo reis
fernando pessoa
imprensa nacional - casa da moeda
1994





18 março 2023

luís vaz de camões / julga-me a gente toda por perdido

 
 
 
Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado
E dos tratos humanos esquecido.
 
Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quase que sobre ele ando dobrado,
Tenho por baixo, rústico, enganado
Quem não é com meu mal engrandecido.
 
Vá revolvendo a terra, o mar e o vento,
Busque riquezas, honras a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma;
 
Que eu só em humilde estado me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso fermoso gesto dentro n’alma.
 
 
 
luís vaz de camões
sonetos




17 março 2023

günter grass / sustento de profetas

 



 
Quando os gafanhotos invadiram a nossa cidade
deixou de haver leite em casa, o jornal faliu.
Abriram-se as prisões e libertaram-se os profetas.
3800 profetas percorreram então as ruas.
Podiam falar impunemente.
 
Quem poderia esperar outra coisa?
Pouco depois o leite voltou a ser distribuído, o jornal reapareceu.
Os profetas enchiam novamente as prisões.
 
 
 
günter grass
trad. egito gonçalves
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990
 




16 março 2023

maria andresen de sousa / quando tudo ardeu

 
 
Quando tudo ardeu olhaste a árvore de cinza,
o gelo, o seu recorte de Inverno: e disseste: basta;
 
ficas nessa posição, nela hibernas
porque tu amas a paragem no que basta
 
um dia ébrio, um tanto, na sua luz
de frio; a sentença, tão breve e precisa
 
 
 
maria andresen de sousa
relâmpago
revista de poesia
nr. 16/4 2005
luís miguel nava
fundação luís miguel nava
2005
 



15 março 2023

joan brossa / o sangue de papel

 
 
Às vezes
gosto de seguir o lancil
do passeio e caminhar a grandes
passadas como se contasse as pedras.
 
Aqui abandono o caça-borboletas
e tiro a barba postiça.
 
O caminho
tem de um lado
a planície e do outro
um matagal espesso com
um bosque de pinheiros seculares
ao fundo.
 
 
 
joan brossa
transversões
poemas reescritos em português
por zetho cunha gonçalves
contracapa
2021
 




14 março 2023

robert desnos / cruzamento

 
 
 
Há neste cruzamento uma atmosfera de
recordações, de reencontros, de factos
estranhos absurdos e importantíssimos
O laranja e o verde florescem nas vitrinas do
                                              farmacêutico
As inscrições em esmalte lêem-se nos vidros
                                                      do café
A canção do transeunte é a mesma em todo
                                                        o lado
O candeeiro é o mesmo
As casas são parecidas com tantas outras
A mesma calçada
Os mesmos passeios
O mesmo céu
E no entanto muitos param neste lugar
Muitos parecem encontrar nele o odor do seu
                                              próprio corpo
E o perfume de amores volvidos
Irremediavelmente mergulhados num
                                esquecimento tortuoso.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022
 




13 março 2023

rui diniz / explicação

 
 
Sem dizer que outrora entre lâmpadas
de seda o som cítio traçou um olhar
de incêndio. Sem dizer que o que sentimos
se transformou no que dissemos, e o
céu alagou-nos os olhos de uma véspera
de lágrimas. Então que nos fica por dizer?
 
Em bruxelas à noite as ruas e os bairros
humedecidos, encontrados, desencontrados.
A razão para escrever. Os sempre longos
losangos de chuva. A ínfima degolação
da mágoa como o apagar-se de um nome
na memória esgotada de azul e febrecitude.
 
Invento de um engenho que apesar dos
anos nos mantenha despertos para buscar.
Apenas os lábios de dessedentam com tais
palavras. Tal como os sobre a mesa pousados
escritos. Recordo-me de apenas uma mágoa.
De um cântaro deverão quebrado num
alpendre, depois do bulício e do sonho em
que o vi.
 
Sem descrever com amor os séculos e
as rodas das azenhas. Sem com as mãos
já muito doentes folhear o céu, na vã
vontade de o ler. Que poderei eu nestes
lugares procurar e encontrar, além de
rubro desânimo?
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022