15 março 2023

joan brossa / o sangue de papel

 
 
Às vezes
gosto de seguir o lancil
do passeio e caminhar a grandes
passadas como se contasse as pedras.
 
Aqui abandono o caça-borboletas
e tiro a barba postiça.
 
O caminho
tem de um lado
a planície e do outro
um matagal espesso com
um bosque de pinheiros seculares
ao fundo.
 
 
 
joan brossa
transversões
poemas reescritos em português
por zetho cunha gonçalves
contracapa
2021
 




14 março 2023

robert desnos / cruzamento

 
 
 
Há neste cruzamento uma atmosfera de
recordações, de reencontros, de factos
estranhos absurdos e importantíssimos
O laranja e o verde florescem nas vitrinas do
                                              farmacêutico
As inscrições em esmalte lêem-se nos vidros
                                                      do café
A canção do transeunte é a mesma em todo
                                                        o lado
O candeeiro é o mesmo
As casas são parecidas com tantas outras
A mesma calçada
Os mesmos passeios
O mesmo céu
E no entanto muitos param neste lugar
Muitos parecem encontrar nele o odor do seu
                                              próprio corpo
E o perfume de amores volvidos
Irremediavelmente mergulhados num
                                esquecimento tortuoso.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022
 




13 março 2023

rui diniz / explicação

 
 
Sem dizer que outrora entre lâmpadas
de seda o som cítio traçou um olhar
de incêndio. Sem dizer que o que sentimos
se transformou no que dissemos, e o
céu alagou-nos os olhos de uma véspera
de lágrimas. Então que nos fica por dizer?
 
Em bruxelas à noite as ruas e os bairros
humedecidos, encontrados, desencontrados.
A razão para escrever. Os sempre longos
losangos de chuva. A ínfima degolação
da mágoa como o apagar-se de um nome
na memória esgotada de azul e febrecitude.
 
Invento de um engenho que apesar dos
anos nos mantenha despertos para buscar.
Apenas os lábios de dessedentam com tais
palavras. Tal como os sobre a mesa pousados
escritos. Recordo-me de apenas uma mágoa.
De um cântaro deverão quebrado num
alpendre, depois do bulício e do sonho em
que o vi.
 
Sem descrever com amor os séculos e
as rodas das azenhas. Sem com as mãos
já muito doentes folhear o céu, na vã
vontade de o ler. Que poderei eu nestes
lugares procurar e encontrar, além de
rubro desânimo?
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




12 março 2023

álvaro de campos / esta velha angústia,

 
 
Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
 
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
 
Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos
Estou assim...
 
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
 
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
 
Estala, coração de vidro pintado!
 
16-6-1934
 
 
 
fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1944



11 março 2023

alberto caeiro / nem sempre sou igual no que digo e escrevo.

 
 
XXIX
 
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
 
 
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os meus pés —
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma...
 
s.d.
 
 
alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946




10 março 2023

lia bettencourt gesta / medição

 
 
As lágrimas
cobriram o fundo da taça de vidro
que pintaste à mão.
 
Formou-se uma ligeira onda
e como uma criança,
rodei a taça de modo que também as paredes
ficassem mergulhadas
no teu abandono.
 
Nunca medi lágrimas
mas acho que me tiravam a sede
numa noite quente de Havana.
 
 
 
lia bettencourt gesta
110 anos, 110 poetas
antologia comemorativa dos
cento e dez anos da universidade do porto
u.porto press
2021
 
 


09 março 2023

sandra costa / manual da vida breve

 
 
1.
 
Não sei o que é o tempo, o amor,
as decisões adiadas a esconderem-se
da última imagem que morre.
 
Quando se me acaba um poema
 
só procuro guardar a infância,
bocados de solidão, as magnólias
caindo a despedirem-se da
Primavera que chega.
 
 
 
sandra costa
manual da vida breve
poesia reunida 2003-2021
officium lectionis edições
2021
 



08 março 2023

antonio gamoneda / meu rosto ferve nas mãos do escultor cego



 

 
Meu rosto ferve nas mãos do escultor cego.
 
 
Na pureza dos pátios imóveis ele pensa docemente nos
suicidas; está a criar a velhice:
 
 
ontem e hoje são já o mesmo dia no meu coração.
 
 
 
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999
 


 


07 março 2023

armando silva carvalho / armas brancas



2.
 
Hoje podes despir a camisa ao sol incendiário.
Perguntar ao Sollers se a China
fica ao lado, ao virar da página
(matutada e matutina).
Abrir todas as válvulas e esperar a mistura
ambiciosa de esperma e de borracha
de pedintes e políticos ainda natalícios.
Podes também apregoar está inteiro
e partires depois nostálgico dos tempos áureos
do papel-moeda e das derribes da palavra escrita.
Hoje nada há, aqui, que a ti te baste.
Praxemas, culturemas, gate-keepers,
sábios, artistas, grandes cozinheiros,
traficantes, humildes perfumistas,
ruídos indecisos de Xenakis
ananphalangestereophonias
lúcidas memórias de Jorge Sena
bússulas antigas usadas pelo Pessoa.
 
 
 
armando silva carvalho
armas brancas 1977
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007


 



06 março 2023

a. m. pires cabral / águas novas



 

Além de fornalhas, a noite também pode
ser um cadeirão onde repouso,
revolvendo na boca os caroços do tempo
como rebuçados de mentol,
 
sentado de perfil contra a luz fria
que vem pela janela, comparável
a um peixe que, sequestrado num charco,
espera libertar-se assim que venham
águas novas de Novembro.
 
 
a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015
 



 

05 março 2023

amadeu baptista / carta de atenas

 



6
 
Nessas noites ouvia-se o rio respirar, a mãe
dizia secretas orações, os lobos uivavam
no centro da cidade. Enquanto dormiam os irmãos,
eu apertava uma velha caixa de sapatos contra o peito,
     um coelho
corria no escuro, murmúrios ancestrais circulavam no interior
     das salas. Dizia-se
que os deuses nos temiam, gente
completamente impotente perante a nossa escuridão, um
     tempo
surdo, maligno,
em que recrudescia a vontade de chorar.
 
 
 
amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999




04 março 2023

albano martins / preciso de arrumar a casa

 
 
Preciso de arrumar a casa, rever o sistema, brunir
os móveis e o tacto.
Preciso de opor o tempo ao tempo.
O espaço ao espaço.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
os remos escaldantes (1983)
glaciar
2021




03 março 2023

al berto / doze moradas de silêncio

 


3
 
estamos quase no tempo do vinho maduro
soube-o pelo aroma que se desprende do teu sexo
intenso mel transportado pelas fulvas abelhas
oferenda de verão árduo… cal secreta
onde garatujámos corações a canivete
 
noite dentro
embriago-me com vinho macio… sentado na desolação
duma esplanada mal iluminada debaixo dos pinheiros
o orvalho humedece o caderno em cima da mesa o lápis
a caneta um refrigerante intragável… tua ausência
pressentida na fresca seda dos caracóis
 
e mais além um valado de soturnas açucenas
uma árvore seca pássaros e canaviais… caminho
por onde nunca me aventurei
 
 
al berto
doze moradas de silêncio 1978/1979
o medo
assírio & alvim
1997