05 outubro 2022

konstandinos kavafis / no porto

 


 

Por um barco de Tenos, jovem, há vinte e oito anos nascido,
Émès a este porto sírio foi trazido
com o intuito de aprender a ser de essências vendedor.
Porém adoeceu na viagem de mar. E logo ao pôr
os pés em terra, morreu. O enterro pobre até mais não poder ser
teve lugar aqui. Algo, poucas horas antes de morrer,
«casa», «pais muito velhos», num murmúrio dizia.
Mas quem eram estes ninguém sabia,
nem qual no grande mundo heleno a dele terá sido.
Melhor. Pois enquanto assim
jaz neste porto falecido,
hão-de esperá-lo vivo seus pais até ao fim.
 
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
II (1916-1918)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005




04 outubro 2022

manuel neto dos santos / terra firme, mar de anil

 



4
 
Deserto febril, esta imensa avareza de vos gritar que existo.
Sou pescador de estrelas e o meu sangue ora tem sinais de
tinta outras vezes látegos de fogo para que persista, famin-
to de sombras, a definição de todos os anjos ainda por criar.
Deserto febril, recanto onde os deuses pagãos arrefecem as
mãos escaldantes nesse crepúsculo da alegria… a que cha-
mamos Saudade.
Eis a terra firme mar de Annir pois que a lembrança é a
Mãe de tudo e a infância tudo alaga, inunda e invade.
 
 
 
manuel neto dos santos
terra firme, mar de anil
editora urutau
2021





03 outubro 2022

maurice blanchot / não sou sábio…

 


 

 
Não sou sábio, nem ignorante. Tive alegrias. Isto será dizer pouco: vivo e esta vida concede-me o maior prazer. Então e a morte? Quando morrer (o que poderá acontecer a qualquer instante), sentirei um enorme prazer. Não falo da antevisão da morte, que é insípida e frequentemente desagradável. O sofrimento entorpece os sentidos. mas esta é a incrível verdade e dela estou certo: sinto um ilimitado prazer em viver e terei uma ilimitada satisfação ao morrer.
 
 
 
maurice blanchot
a loucura do dia
trad. ricardo ribeiro
sr teste edições
2021





02 outubro 2022

virgínia woolf / o oculista disse-me esta tarde

 
 
(1929)
Sexta-feira, 31 de Maio
 
 
 
O oculista disse-me esta tarde: “Talvez a senhora já não seja tão jovem como era”. Esta é a primeira vez que me dizem isto; pareceu-me uma afirmação espantosa. Significa que agora pareço a um estranho não uma mulher, mas uma senhora idosa. Porém, mesmo assim, embora me sentisse enrugada e envelhecida durante uma hora, e adoptasse uma atitude de grande sabedoria e tolerância, ao comprar um casaco, mesmo assim, depressa me esqueci; e volto a ser uma “mulher”.
 
Votámos em Rodmell. Vi uma senhora de luvas brancas a ajudar um velho casal de lavradores a descer do Daimler dela. comprámos uma máquina de cortar relva a motor. Tudo parece um pouco estranho e simbólico quando regresso. Estava com uma disposição estranha, achando-me muito velha: mas agora volto a ser uma mulher – como sou sempre quando escrevo. Dispersa-me e acalora-me este viajar de automóvel de um lado para o outro.
 
 
 
virgínia woolf
diários
trad. jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018
 




01 outubro 2022

sophia de mello breyner andresen / l’ âge d´airain

 (Rodin)
 
 
 
Devagar, devagar, em frente à luz
Carregado de sombras e de peso
Arrancando o seu corpo da raiz
 
No extremo dos seus dedos nasce um voo
No vértice do vento e da manhã
Uma asa vai – perdida dos seus dedos.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
obra poética I
caminho
1999




30 setembro 2022

joão narciso / estes ventos negros

 



2.
 
Querias que eles te visitassem.
Acreditas que te visitaram; claro que te visitaram.
Não consegues decidir em que ponto do tempo
deves alfinetar essa tarde de que te lembras.
Aconteceu o que aconteceu.
 
Na tua memória existe um rio de nuvens
que leva à tua margem as verdades murchas
e caídas na correnteza.
 
Fizeram as malas.
Embrulharam em papel-pardo as saudades,
o bolo finto, uma saca de laranjas
das árvores antigas do pomar,
o teu relógio de pulso desafinado,
a correia que agora já fecha,
fotografias dos meninos a sorrir
durante as semanas de ausência.
Queriam que visses quanto os miúdos cresceram.
Atrás deles, em procissão cortês, seguiu chuva miúda,
trovoada de Verão, um rombo nos teus hábitos.
 
Pediste que te visitassem mal houvesse autorização.
Os teus costados aguentariam uns quantos passeios pelos
corredores da casa, depois poderiam sentar-se no terraço
do primeiro piso, que é tão pequeno, bem o sabes,
mas tem bonitas cadeiras de metal, glicínias, roseiras,
cameleiras, dois sinos para os meninos se divertirem a
imaginar o repique e a urgência da cidade após o aviso
badalado.
 
Faz-se uma roda de gente,
dá-se fogo ao lume,
ateamos o presente,
atiçamos a vontade,
sugeriste.
 
Foram quando puderam.
 
Tinham medo de carregar nas mãos, nas solas, na voz
a coisa ruim que vos obrigou à separação necessária
ditada pela ausência:
 
telefonemas ao fim do dia quando a vida o permite,
chamadas por vídeo a cada duas ou três semanas, os teus
cotovelos apoiados sobre as coxas, regaço enxuto, olhos
postos nos objectos, nas máquinas, nos auxiliares e nos
enfermeiros que aparecem diante de ti e exibem rostos
sem boca, mãos de látex, pânico nos gestos,
 
olhos postos nessa realidade súbita de tudo o que é imóvel
e invisível, o espaço vazio que se senta no teu colo
todos os dias, a cada segundo.
 
Estão tão grandes, os meninos.
Os teus meninos.
 
Disseram que tinham medo de te expor,
de te ver arrastado nas enxurradas do contágio.
 
Tu, aos oitenta e oito anos de súbito plantado no topo
da batalha, sentado na tua cadeira de vime, num relance
atirado para a linha da frente:
 
um velho de cabelo raso, cal pura, com roupa puída,
dedos de cortiça, hálito de raposa, rumores nos lábios,
memória à flor da pele, coração de velho,
vácuo crescente nos ossos,
com pés descalços e calosos
a amassar a lama enegrecida
de um horizonte desfeito em fumo
e esboçado a silvos de bala.
 
Se pudesses olhar para ti agora,
se pudesses ver-te da perspectiva de quem não és,
reconhecerias, ali depositados, a tua experiência
e o teu saber; vê-los-ias cada vez mais mínimos,
cada vez mais ausentes, deixados ao abandono:
 
és o cavalo do esquecimento
a galope na fronteira da batalha,
 
sedimento frágil,
 
és o velho sentado a escrever um livro de instruções para
o pequenino que está para nascer, com os óculos de ver ao
perto a enfeitar-te a ponta fina do nariz e o gume estreito
da idade, ignorando a sarabanda, os gritos de ordem,
 
o avanço do inimigo invisível que vos cinzela a todos um
novo corpo a partir do avesso da pele, que vos inunda os
pulmões e os rins de líquido, de pus, que espalha pequenos
menires de sangue seco pelo sistema circulatório, pelas
vias do coração, que vos deixa rarefeitos por dentro,
 
tu, de casaco de malha pelos ombros
e sem máscara que te tapasse o sorriso,
 
tu, com o olhar desocupado, a boca desocupada,
o nariz desocupado,
 
tu, antigo e oblíquo, sentado na cadeira de vime,
mergulhado na noite à espera da alvorada,
à espera do baque, mas ignorando o baque,
a jogar à sorte numa batalha de xadrez
armado com pólvora seca
e não mais do que o bico da lapiseira
e a frente esburacada da memória,
 
tu, o velho
e eles, os jovens,
tu, o soldado raso,
e eles, o veneno.
 
Mas como?
 
 
 
joão narciso
estes ventos negros
edições caixa alta
2021
 

 

 

 


29 setembro 2022

ana hatherly / os pardais



 

Era de manhã e os pardais estavam de roupão
um roupão proletário de flanela
apertado de qualquer maneira abaixo da cintura.
Todos os pardais são fêmeas
senhoras 1900
com a cintura artificialmente vincada
e as nádegas em zeppelin.
Grandes olhos dolorosos
acusam a dureza das barbas de baleia
de resto órgãos de trituração
mesmo na baleia.
Uma vez vi um desenho mostrando como, graças ao espartilho,
os órgãos internos ficavam deformados e era curioso verificar
como os rins pareciam duas apetitosas salsichas
o que transformava o busto num confortável balcão de snack-bar
onde os viris machos iam dando displicentes dentadas enquanto
Freud observava que nem só os machos têm o amor húmido.
Mas eles não sabiam
e continuavam a sua digressão topográfica.
 
Era de manhã
e os pardais agitavam a cauda
como quem tem um tic nervoso.
Na capa dum livro um poeta de perfil estava meio zangado meio
atónito olhando para longe, para a eternidade, suponho, e por
isso o seu olho já tinha perdido pálpebra e pestanas. Na verdade
o cabelo tornara-se obsoleto e agora era apenas a simples passagem
do lápis do desenhador sobre a brancura do papel, o qual se tornara
entretanto roxo, talvez de sufocação, como quando se tem um
frasco de perfume tempo de mais debaixo do nariz.
Deve ser assim a sufocação da eternidade.
Talvez seja uma sufocação boa, contudo, como ler
qualquer coisa que se torna subitamente importante na nossa vida
sem sabermos porquê.
E de repente todo o resto se torna intolerável.
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980


 


28 setembro 2022

maria teresa horta / devagar

 





 
Passeávamos devagar
pelos jardins
coleccionando nos olhos as estátuas
as árvores – o bronze
e o calor que existia no voo
de cada pássaro
 
Agarrada à tua mão
ao teu casaco
sentia um medo solto de criança
sabendo naquilo que te dava
os outros viam
só caprichos brancos
 
e assim andávamos calados
rasgando cada dúvida
aos bocados
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
candelabro
dom quixote
2009
 




27 setembro 2022

Isabel de sá / a cinza de luz é tanta

 



 
A cinza de luz é tanta que não posso abandonar-me.
 
Lento sofrimento este
sem tocar dedos de sombra, queimadura ou luva.
Ou respirar de outro ser tão fluido, desolado e frio.
 
Chegou a hora de minha alma não ser ela.
Chegou o tempo de meu corpo não ter corpo
e em silêncio ser de luz, poeira.
 
 
 
isabel de sá
semente em solo adverso (poesia reunida)
restos de infantas 1979-1980
officium lectionis edições
2022

 




26 setembro 2022

ana paula inácio & sandra costa / menos uma hora nos açores

 



7.
 
Dobras a vida pelos vincos,
ajustas a dor ao buraco da agulha,
sabes de cor quantos ibuprofenos
são precisos para que te sintas
um hóspede na tua casa,
espelhos foscos em ruínas novas,
para tudo há uma solução:
 
o erro é só a forma mais bela
de dizer que nenhum deus escreve
por ti em linhas tortas.
 
 
 
ana paula inácio & sandra costa
menos uma hora nos açores
volta d´mar
2022





25 setembro 2022

herberto helder / teoria sentada

 




II

Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca uma pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me para as mãos ocupadas, as bocas,
as línguas que devoram pela atenção dentro.
Eu queria saber como se acrescenta assim
a fábula das noites. Como o silêncio
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo
uma canção para ser inteligente dos frutos
na língua, por canais subtis, até
uma emoção escura.
 
Porque o amor também recolhe as cascas
e o mover dos dedos
e a suspensão da boca sobre o gosto
confuso. Também o amor se coloca às portas
das noites ferozes
e procura entender como elas imaginam seu
poder estrangeiro.
Aniquilar os frutos para saber, contra
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua
solidão — é como amar,
esgotar a amada, para ver como o amor
trabalha na sua loucura.
 
Uma canção de agora dirá que as noites
esmagam
o coração. Dirá que o amor aproxima
a eternidade, ou que o gosto
revela os ritmos diuturnos, os segredos
da escuridão.
Porque é com nomes que se sabe
onde estar um corpo
por uma ideia, onde um pensamento
faz a vez da língua.
— É com as vozes que o silêncio ganha.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
teoria sentada
assírio & alvim
1996






24 setembro 2022

joão rebocho / no largo da catedral de santiago

 



 

no largo da catedral de Santiago
num dos cantos
com uma máquina de música:
à margem do senso comum
Francisco António
adotado pela dark web,
vive de fazer algemas,
alguma serve-me
e eu:
qual a imperfeita?
a eterna?
 
 
 
joão rebocho
munições infinitas
heteronimus
2022

 





23 setembro 2022

diana v. almeida / aos vinte anos

 




 

Aos vinte anos
Dylan Thomas
surge-me em sonhos
cigarro aceso
olhar aberto
             onde está o caminho?
diz
de onde
vem a palavra
 
lavrada
pelos corredores da noite
ao alto dia
cruzando luas
 
desde as
paredes do mar
água vivente
ao crescente mapa do amor
de pólo a pólo
 
da terra tumefacta
ao alto sol
cruzando luas
 
a palavra cantante
o verbo ardente
muro vivo do poema
corpo sílaba
sangue
 
doce sono
túrgida torrente.
 
 
 
diana v. almeida
cosmos e casas
editora urutau
2021