25 agosto 2022

rui nunes / podava a macieira

 
 
podava a macieira. Entre folhas, a tesoura
cortava o ar: e o ar caía, arrastando os troncos.
As horas mediam uma recordação imprecisa:
ao campo de neve o sangue coalhara e a manhã
prolongava a morte até à rigidez
de um gesto interrompido:
a mão só alcançara o branco
e no branco adquirira
o sarcasmo de um molde
 
 
 
rui nunes
ofício de vésperas
relógio d’ água
2007




24 agosto 2022

víctor botas / falam da natureza

 
 
Falam da natureza, e que é bela
– dizem sem mais razões –; eu prefiro
falar de um caos, aziago e feroz,
sem ordem nem plano nem outra coisa
além deste cego acaso que nos acossa
a golpes de cachaço. Quero deixar
muito claro nesta página: não espero
do temporal em turbilhão que graciosa-
mente prodigue paz. Serão seus golpes
mais duros se, julgando estar muito bem,
só esperar lisonjas: dura nora
move o ritual do tempo, golpe a golpe.
Há, contudo, instantes, sinais, coisas
que misteriosamente, são belas.
 
 
 
víctor botas
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




23 agosto 2022

jorge de sousa braga / memória de luís vaz de camões

 
 
Na autoestrada do norte, de jeans coçadas e óculos escuros, uma longa trança sobre os ombros, rumo às florestas de abetos, a mochila cheia de coisas esquisitas, pássaros mortos, malmequeres de plástico.
 
Na autoestrada do norte, a camisa ainda molhada do naufrágio, a pequena empregada da boutique desaparecendo para sempre nas águas do Índico.
 
Na autoestrada do norte completamente pedrado.
 
 
 
jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991




22 agosto 2022

josé miguel silva / dois

 
 
Aos sete anos temos sorte, conhecemos a morte
no enterro do vizinho. Cresce o sentido
das responsabilidades. Assim se prepara
a primeira comunhão.
 
Temos agora que cuidar não apenas
dos cadernos e dos lápis mas também
da alma, essa remissa ostra
onde se aloja uma pequena culpa.
 
Torna-se mais longo o caminho para casa
(mas também, confessemos, mais estimulante).
Já não corremos tão depressa com a pesada pasta:
um tropeço qualquer, e lá vem a consciência.
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003




21 agosto 2022

josé carlos barros / como trazer sementes

 
 
Como trazer sementes nos bolsos, olhar
da janela os pássaros nos freixos, adormecer
à tarde. Recordas o corredor quase
escuro, as tábuas da sala, o escano,
o comércio do porto dos desenhos do armário.
No verão, a meio do verão caiavas
a casa. Tantas vezes a memória te preparava ciladas,
escondias as fotografias antigas, deitavas-te
tão cedo. E acordavas cedo, a luz no peitoril,
no quadrado de cal da parede velha.
 
 
 
josé carlos barros
o uso dos venenos
língua morta
2018
 



20 agosto 2022

victor oliveira mateus / le grand silence

 
 
 
a cadência da tesoura
no pano cru
o gotejar da torneira
num lavatório zincado
 
o zunir do vento
através das frinchas
no bater do portal
no ramalhar das árvores
ao longe
 
tudo à tua volta insiste
fala
enquanto tu
desinteressado
te vais desprendendo
máscara após máscara
 
e
no outro lado das coisas
procuras
o que não deixa de sussurrar
no teu grande silêncio
 
 
 
victor oliveira mateus
uma casa no outro lado do mundo
labirinto
2021




19 agosto 2022

joão miguel fernandes jorge / e falamos assim

 
 
E falamos assim falamos
de outra voz de outro tempo
de outra folha
 
do traço parecido
e carregado
do Verão.
 
De longe olhámos o inverno.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019




18 agosto 2022

diogo vaz pinto / dois anos já

 
 
Dois anos já que espero me arrefeça o café
frente a lentíssimas cenas de caça
a rotina dos astros sobre umas poucas vidas
o laranjal incendiado e toda essa dança corrosiva
um fio de pesca nas mãos para que esquecido peixe?
e a frase com ela no meio indo à fonte
encher-se até cima
trabalhada como por um sonho
 
por ser doloroso o seu nome
vi-o espalhado, séculos antes lia-se em cântaros
neste vi-o marcado nas árvores
ali estava como um vestido a florir na corda
e o sol cheio de vagar a compor os ossos debaixo
tigres atravessando o selvagem estampado
a frágil fúria colorida num suave impasse
enquanto eu amestrava todos os tiques a solidão
e a escrita como uma forma de modéstia
o sentido estrito das aventuras
os mais ínfimos relatos e de costas
a antiguidade abanando a cabeça
 
a vida mal nos toca no meio dos bocejadores
desluzida mão-de-obra em transe
com as insistentes dívidas aos gatos
pássaros, cinzas assim
cansados uniformes adormecidos nos telhados
aquele mar moribundo atrás da casa
para quem gosta de afogar-se escutando os remadores
toda essa água ajuda-os lá com as coisas deles
uma última intimidade com o mundo
uma cobardia, uma fábula
algum outro assunto
 
mas ainda há um caroço poisado
sobre o muro, sobre o pior dos cansaços
há quem sopre a poeira dos colibris de biblioteca
quem exume corpos entre o veneno das gavetas
quem atravesse a manhã peneirando a neblina
e com passos iguais outros
tiram as medidas ao inferno
 
então perdoa-me, velho, se te deixo
se me falta o pudor e antes prefiro
o carnívoro talento mais sem vergonha
sorrindo sujo da mão ao cotovelo
entre as mais baixas das partes, quentes
eu a inspiro, esteja fresca ou podre
carne com um cheiro a tangerinas ao fundo
da língua faço um teatro romano
entrego o pescoço, deixo rolar a cabeça
por um enredo escabroso, do céu às fossas
que sangre e chame a si os elementos
 
e se das maiores inanidades esperei muito
dobrado hoje sinto-o nas costas
como se uma estrela pudesse esculpir ombros brutais
a pupila dilatada de assombro à sua luz
atiro a pedra arfante
e cruzo a vida breve das paisagens
o som de um coração trepando um susto
até à morte, o frescor silencioso que está lá
no início de todas as histórias
 
 
 
diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020



17 agosto 2022

rui diniz / solilóquio

 
 
«Devagar, italiano, devagar com essa barca,
estes canais devem ser vistos devagar, assim
disseram por toda a parte os que de
veneza se lembravam. O Doge recuou com
as suas tropas face a esta dura revolução.
Não, amigo, não está nos meus hábitos
ser sóbrio, seja no que for. Falo muito,
mais do que me aconselharam os que
de veneza se lembravam. Devagar, pois,
devagar sob esta ponte onde Desdémona
sofreu a crina fria dos seus desgostos,
e afogou esse focinho ardente e irrequieto
do puro sangue árabe. Nela, tudo confluía
num duro rio de loucura, um frio
rio no qual vogava já a pétala de
de um vestido. Isso, italiano, faz deslizar o
esguio corpo da gôndola sobre o cume
das águas, assim mesmo, nem profundas
nem temerosas, as águas, apenas para o
amor propícias quanto mortais, exactamente
assim, como mo disseram os que
por toda a parte de veneza se ausentavam.
Devagar, italiano, mais devagar, que por toda
a parte se acendem já as luzes de Veneza.»
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




16 agosto 2022

fernando pinto do amaral / regressando a casa

 
 
Ninguém quis festejar o dia dos meus anos.
Já estou habituado, é bem melhor
render-me ao sabor quente da penumbra
nesta sala onde cada objecto respira
como se aqui estivesses. As cortinas
continuam corridas e lá fora
julho é um mês vazio, sem destino
para quaisquer palavras – só me fica
um absurda inveja de ser como eles,
jogar os mesmos jogos, rir das mesmas coisas,
mas não há ciência que adiante nada.
 
Pois é, não há ciência capaz de entender
o som do piano que me desenhaste
ali, numa parede, em trompe-l´oeil,
mas não em trompe-l´âme, como tudo
ou quase tudo o que me intoxicou
nestes últimos dias. sofri
outros lugares, outras pessoas; pude
fingir que as almas se substituem
e, no entanto, por alguns momentos
esteve entre as minhas mãos o mundo! Apetecia-me
ter jogado com ele um jogo de bilhar,
enfiá-lo num buraco onde ninguém o visse
e deixá-lo em silêncio, assim como
deixámos esta casa e este bairro
tão degradado, cheio de minorias.
 
A minha minoria sou só eu,
agora que morreste ou ainda pior,
agora que ao meu lado as sombras recomeçam
a abraçar-me às escura, desenhando
na solidão do tecto animais ou plantas,
pequenos barcos pra me conduzirem
a mais um sonho, desses onde a vida
parece ficar presa até ao fim.
 
Ah, como odeio telefones! Só queria
enroscar-me a um canto e dormir,
esquecer-me de quem sou e acordar
no meio de um jardim ou mesmo de um
poema
que ao menos uma vez não falasse da morte.
 
 
 
fernando pinto do amaral
seis projecções e uma despedida
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000




15 agosto 2022

fernando alves dos santos / à beira da estrada

 
 
Os dois à beira da estrada
junto ao poste dum destino de Hermes
seiva das novas sílabas
da palavra virtude.
São impossíveis as ruínas do amor
porque apertamos contra o corpo os lençóis
cumprindo o relógio do mar
enquanto um bando de gaivotas esvoaça
à beira da estrada inacabada
com o outono aos nossos pés.
Repousámos os nossos lábios no silêncio
e logo partimos,
as mãos na intimidade sobrevivente da luta,
húmidas as palavras
cheirando ao ninho azul do céu,
de punhos cerrados e brancos,
brancos como as flores junto ao poste
à beira da estrada.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005





 

14 agosto 2022

joaquim manuel magalhães / dos meus versos

 
DOIS
 
Comprei-lhe requeijão durante vários dias.
No último enganou-se nos dinheiros
fez o embrulho num papel errado.
Ri-lhe o primeiro convite. Riu-se em trocos.
Continuei por entre os corredores
do resto do supermercado achando
a cada espaço vazio de caixotes
seu olhar a seguir as minhas compras.
Quando estava prestes a curvar-se
para pesar um frango, uma morcela,
coelhos bravos, queijos ou fiambre
sorria-lhe de novo. Erguia logo
o corpo alertado turvavam-se-lhe as mãos
hesitava pelo ar refrigerado do balcão
até estender os seus produtos
à primeira mulher e às que se seguiam.
Com a cesta de metal quase já cheia
deve ter visto o adeus dado nas coisas
de comer durante muito tempo
veio depois duma qualquer desculpa
fingir que levava fardos para dentro.
Fui atrás por alguns segundos
soube que eram horas de sair
vim esperar depois de tudo pago à porta.
Os carros iam de regresso às casas,
o ar toldado de novembro avermelhava-se
a um sol que vem antes da chuva,
nos autocarros iam por detrás dos vidros
rostos que doía ver passar.
Chegou metendo um pente à algibeira,
a sacola que fora matinal ao ombro,
atravessou comigo o quadrado
da praça quando o trânsito parou.
À última luz do dia via-lhe o cabelo
com o pó do dia de trabalho.
Por agora dizia-me o seu nome
entre dentes rasgados pelas cáries
mas sorrindo tanto sob a pele escura
que eu fechava os olhos para perdurar
até tirar-lhe a camisola, as meias
trocar o meu hálito de dentífricos
pelo seu cansado de erva doutras formas
dir contra os horários as coisas do dinheiro
os outros a dizer-lhe o que devia ser.
De mim havia de ir para uma paragem
à espera do bus de que sairia
num dos caixotes de arrabalde,
o corpo satisfeito mas fendido
do prazer combinado para outro dia
que podia voltar ou não voltar a haver.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
antónio palolo
a regra do jogo
1978




13 agosto 2022

fernando lemos / o meu peito é um tecto

 
 
O meu peito é um tecto
Quando os olhos se me fecham
pouso as mãos ao acaso do meu túmulo
Mapa dos meus sentidos
 
Do amor tenho tudo
a dor e o ódio
Há um sossego em saber-me
com uma morte guardada no bolso
 
Do passado fica-me um golpe
que não é mortal mas derrama
todo o seu sangue nos forros da roupa
Estou apertado
 
Estou apertado e suspenso
O meu peito é um tecto
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019