10 agosto 2022

jack gilbert / um tipo de coragem

 
 
A pastora da quinta além foi
tirada da escola agora que tem doze anos, e a sua vida acabou.
Arranjei um trabalho de Verão nos moinhos ao meu brilhante irmão
e ele lá ficou toda a vida. Vivi quatro anos com uma
mulher que mais tarde enlouqueceu, fugiu do hospital.,
atravessou a América à boleia, aterrorizada e na neve,
sem casaco. Foi violada pela maioria dos homens que lhe deram
boleia. Dou um pouco à manivela do coração e ele revira-se.
Paira alto no sol sobre continentes e erupções
de mortalidade, entre ventos e imensidões de chuva
que cai por quilómetros. Até que todo o mundo seja superado
pelo que sobe e em nós sobe, contudo, cantando e
dançando e lançando flores lá para baixo.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020



09 agosto 2022

paul bowles / noites

 
 
Tempos houve, aqui ou além,
em que o murmúrio das palavras não era suficiente.
 
Em alguma estante da memória jaz um Verão perdido,
um que não guardámos para saborearmos um dia.
certamente acabou depressa, com inesperados nevoeiros,
com o vento a deslizar pela incomensurável escuridão.
 
Nenhuma voz podia ser suficiente, aqui ou além,
e as horas caindo velozmente.
 
                                                            1977
 
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 



08 agosto 2022

josé alberto mar / um rosto uma ilha

 
 
Um rosto, uma ilha de aparências
separada pelas águas
onde é breve a mão antiga
do sono
vivo por dentro
lembrando a amarga inocência
dos olhos na distância.
 
 
Dez./87
 
 
 
josé alberto mar
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989



 

07 agosto 2022

fernando luís / desviou o rosto

 
 
Desviou o rosto. Sabia
como ninguém suster
a conduta dos instintos.
Estonteante, sob as águas,
fechou-se à tempestade.
 
O céu esfolava os corpos
e as palavras
reacendiam a trovoada de junho.
 
Caminhava, em todos os seus
movimentos era invisível
o estilhaço do prazer
e das afeições.
 
Um inábil vigor tornara-o
esquivo, encarcerado entre
extremos de suspeita, o nublado
mundo das suas mãos.
 
Não pedia senão silêncio,
flores fechadas.
 
 
 
fernando luís
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989




06 agosto 2022

eduardo pitta / no enredo dos caminhos

 
 
1.
 
Os cães eram mudos e deu com eles por
acaso, farejando relógios de areia.
Naquela terra árdua havia ainda o enigma
dos homens e do seu alfabeto traído.
 
Podia pensar-se num simulacro. Era apenas
método. A obstinada construção de uma vontade
sem objecto.
Teria voltado fosse como fosse.
 
2.
 
Antes de nós outros tentaram.
Muitos não sabem que viagem alguma
se repetirá. Toda a demanda é vã.
Aquele muro não está ali
 
por acidente. Sequer a gosto de qualquer
feitor com inclinações pré-rafaelitas.
A manhã tinha ficado parecida com um pedaço
de vidro e era nítida a evidência de desastre.
 
 
3.
 
As coisas são como são.
Sempre haverá uma mão senhora de exemplar
desprendimento, atenta ao sufoco
e à deslocação da alma.
 
Assim foi, por socalcos de tabaco,
o enredo dos caminhos, ardente
magia. Pouco importa saber
que toda a paisagem mente.
 
 
4.
 
Gente propensa a ver a luz por um funil
a vê-la assim em corredores,
esplendidamente ignorante das forças vitais,
de qualquer alegoria. Esse sentido
 
mediúnico, três vezes milenário, de fabular
a perversa mudez dos animais.
Contudo eles estão onde os encontramos.
E estão simplesmente calados.
 
 
 
eduardo pitta
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989




 

05 agosto 2022

emanuel jorge botelho / viagem, (estudos)

 
 
1.
 
que golfinho cortou a pele da água,
o mapa embuçado
nas esquinas do medo?
 
quem sarou a morte do sal?
 
 
2.
 
há uma âncora de fogo
no porão dos anjos
 
na fuligem dos trevos, a sorte da viagem
 
 
3.
 
levavas no bolso um limão de oiro
 
o tigre e o fruto
do pomar dos remos
 
 
(versões, talvez provisórias, para
o livro LADAILHAS)
 
 
 
emanuel jorge botelho
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989





 

04 agosto 2022

al berto / regressa do túmulo dos mares do sul

 
 
regressa do túmulo dos mares do sul
enterra os dedos na penumbra que separa o dia
da noite das cidades recorda o restolhar das serpentes
a seiva lívida do loureiro estremecendo ao sentir
o rosto da criança que foste contra o tronco
 
na tua memória já não existem paisagens de ossos
nem pássaros nem punhais de luz dentro da insónia
a criança que em ti morreu crescendo
usou sapatos com atacadores e gravata
pela primeira vez foi ao cinema sozinha
com olhar turvo de melancolia anda por aí
à procura de quem a queira
 
 
 
al berto
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989
 



03 agosto 2022

antónio pedro / distância



 

XXI
 
Sei lá das coisas perdidas!
Sei lá das coisas ganhadas!
– Sei das sombras esmaiadas,
Sempre em mim anoitecidas.
 
– Sei dos sonhos que me embalam,
E que me fazem chorar,
Sei dos mortos que me falam,
Sei das imagens do ar.
 
– Não sei de mim, nem me importa,
Nunca soube de ninguém!
Sei do luar à minha porta,
Sei d´Ela que me quer bem!
 
… O resto pouco me importa,
Que o descubra quem n’o tem
 
 
 
antónio pedro
distância 1928
poesia (1926-1929)
edições cosmorama
2016

 


 

02 agosto 2022

yvette k. centeno / o café

 
 
 
Sentadas nas mesas do café
as pessoas olhavam sem ver bem
e nos olhos de cada uma iam passando a sério
os ódios pequeninos quotidianos
como um enterro de terceira classe lento
e grave
seguido por dois cães de luto
e um chapéu funerário sem cabeça
 
 
 
yvette k. centeno
opus 1
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019




 

01 agosto 2022

josé maria valverde / o céu envenenado

 
 
Meus filhos, as chuvas deste outono
vão ser, outra vez, doces e amáveis.
Mas não vos molheis muito, ninguém sabe
o que se passa com os seus átomos feridos.
Pelos vistos, a palavra do futuro
num mundo feliz e livre, obriga
agora a este veneno nas vossas medulas.
Perdoem-nos, a mim e à vossa mãe,
que nos quiséssemos quando começavam já
a ocorrer estas coisas sobre a terra.
 
 
josé maria valverde
iluminação do eu
antologia de poesia hispano-americana
tradução de daniel ferreira
contracapa
2021
 

31 julho 2022

daniel faria / do inesgotável

 
 
Abriu-se em ferida a cerca do teu corpo
E deixas vindimar-me quem quer
Que passe
 
Até o muro é sombra que não floresce
Enquanto me repetem a pergunta
 
Tu me cultivaste
Tu deixaste a geada sobrevir
 
 
 
daniel faria
poesia
do inesgotável
quasi
2003




30 julho 2022

rui lage / a demora do carteiro

 
 
Pela aurora a miríade canora
Amotina ausência geométrica,
Alfaiates sobre água inodora
Decifram-me saudade aritmética.
 
Partiu-se-me a manhã num envelope,
Extravio porventura da vigília
Do sonho anterior, parente da morte,
Afastada mas da mesma família.
 
Ir à varanda é estar só chegada
Uma carta endereçada ao peito
E quem sabe se neste perdoada.
 
Demorada a caneta na madrugada,
Com dedos ágeis e desassossegados,
Ontem, descoberto, deus jogou os dados.
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002
 


29 julho 2022

marta navarro; paola d´agostino / medo, eu?

 
 
 
Medo, eu?
Sim, tive uma vez
 
 
Acabara de bater a meia-noite
eu voltava para casa
pela Rua do Jardim do Tabaco
e num dos armazéns uma sombra
a sombra alta e fléxil de um homem
tira a luva direita
e oferece-me a palma da mão
há pautas no lugar de linhas
 
 
que não seja um conto de fadas
que não seja um conto de fadas
que não seja um conto de fadas
 
 
reconheço a música
já a dancei antes
mas não quero enganar-me outra vez
 
 
 
marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014