27 maio 2022

dick davis / ibn battuta

 
 
Perto do princípio da sua primeira viagem
O grande viajante (que havia de sofrer
Naufrágio, a perda de todos os bens, dos escravos
– De quem tanto gostava – e do filho; que havia
De enfrentar piratas, salteadores, ser gasalhado
Por príncipes como um igual e ser alvo de escárnio
Como um pedinte; que havia de ver o conhecido
Mundo e suas maravilhas) perto do princípio
Da sua primeira viagem diz-nos ele como,
Companheiro duma caravana de viandantes,
Chegou a uma cidade e como a multidão
De gentes amigas e de parentes saiu dela
A dar-lhes as boas vindas, cada homem saudado
Por um rosto que conhecia, à excepção dele,
Ibn Battuta, a ele ninguém o saudava
Visto que lá ele era um estrangeiro, e como
Chorou.
           Quando se fecha o livro este retrato
De um homem com cerca de vinte anos a chorar
– E não os príncipes, os escravos e os naufrágios –
É o que fica comigo
                            quase que sentes
Através dos séculos a compressão dos
Teus dedos de encontro ao seu braço e escutas
A tua voz erguer-se para saudá-lo.
 
 
 
dick davis
trinta e dois poemas
trad. joaquim manuel magalhães
as escadas não têm degraus – 2
livros cotovia
1990




26 maio 2022

francis picabia / felicidade nova

  

Amarmo-nos uns aos outros
é um sentimento longínquo,
longínquo como a pátria
vencida ou vitoriosa;
Sinto o dever de tornar-me
um tipo contrário –
contrário a tudo.
Os homens estão mal informados
sou o contrário dum exame,
o contrário duma análise,
o contrário duma crença;
trabalho para radicar aquele que há-de vir,
ritmo e rima,
como os livres anarquistas.
Os homens têm sempre a ideia
fixa de antemão,
intercalada conforme o fim,
idêntico fim,
canção popular e seus sons familiares.
A ascensão faz-se pesada de mais
as curvas e os desvios
tal como a propriedade
favorecem as zonas temperadas.
A moral é o contrário da felicidade
desde que eu existo.
 
 
 
francis picabia
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




25 maio 2022

antónio domingues / primeira imperial

 

  

Na Cervejaria
um senhor de óculos sem culpa
cabeleira densa e culpada de ir
até às sobrancelhas ligadas
e principais culpadas
da sua estúpida presença
 
Cara de carnes caídas
a fazerem-no menos novo
do que um queixo entre enérgico e ovo
denuncia
 
Na Cervejaria
dizia
um senhor e sua mulher de azul e mise exactamente
no momento em que leve
ágil
animal
pisa o chão duro e frio do salão
um valente Rodolfo Valentino conhecido
do casal
 
Alarga-se o sorriso de gambas róseas
na boca do senhor
um adeusar de sua mão papuda
em louvor
do amigo Rodolfo
 
Ela de faces em rosácea e alva dentadura
logo revelada
fica enlevada
mas honesta na Cervejaria pensa:
– Meu marido dá-me todo o conforto do lar
dá-me gambas ao jantar
e mais logo dá-me quatro horas de Bem-Hur na plateia
onde a moda nova oferece as minhas pernas
às vistas desarmadas
dá-me futuro
recheio no seguro e o Rodolfo
só me daria aquilo com que sonhei durante
tanto tempo
 
amor, amor, amor apenas
 
 
 
antónio domingues
surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada
por mário cesariny de vasconcelos
edições salamandra
1992



 

 

 


24 maio 2022

margaret atwood / traição

 
 
Quando tropeças no teu amante e na tua amiga
nus por dentro ou sobre a tua cama
há coisas que podem ser ditas.
 
Adeus não é uma delas.
Nunca irás fechar essa porta aberta desajeitadamente,
eles ficarão presos naquele quarto para sempre.
 
Mas tinham mesmo de estar assim tão nus?
Tão sem graça?
Atolando-se às voltas como se num charco primaveril?
 
As pernas muito finas, a cintura muito grossa,
gelatina aqui e ali,
os tufos de cabelo…
 
Sim, foi uma traição,
mas não de ti.
Apenas de certa ideia que tinhas
 
deles, alumiada e mística,
com flocos de neve a cair
e um sol-pôr malva em Dezembro –
 
não esta imagem acanhada,
esta carne encurvada
presa no brilho fixo do teu olhar.
 
 
 
margaret atwood
afectuosamente
trad. joão luis barreto guimarães
bertrand editora
2021




23 maio 2022

maria victoria atencia / amanhece

 
 
 
     O tráfego do cais
sob uma luz acorda.
Já os barcos de pesca
regressam de seus cercos
e os rebocadores
atentamente escoltam
um cargueiro avermelhado
de aço e maquinaria.
 
     Às seis e meia em ponto:
minha noite já não conta.
 
 
 
maria victoria atencia
antologia poética
el coleccionista
tradução josé bento
assírio & alvim
2000




22 maio 2022

ruy cinatti / paisagem

 
 
Um tranquilo lago entre pinheiros
e um jardim selvagem em primeiro plano
e ó cavalgadas pela noite fora…
A minha vida dava por um momento
de trote ou passo ou galope lento
buscando uma estrela na alvorada.
 
13/11/76
 
 
 
ruy cinatti
56 poemas
de paisagens
relógio d´agua
1981




21 maio 2022

joão rui de sousa / eram estas as flores…

  

Eram estas as flores que eu abraçava
e que entrevia em zonas de mais luz
ou em simples requebros onde a voz,
pousada e quase trémula,
seguia na inflexão de ser inúmero
o vulto das ameixas, o voluptuoso
ondeio de fenos e searas,
e o parco mover do sobro
e das palmeiras.
 
Eram também os olhos sempre atentos
ao frémito dos ombros, ao roçagar
de lábios e cabelos,
ao sagaz alvoroço dos teus dedos
e à rajada final (intrépida, desmedida)
de um pássaro febril, indominável.
 
 
 
joão rui de sousa
relâmpago nº. 13 / 10.2003
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2003




20 maio 2022

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
I
Só as tuas mãos trazem os frutos.
Só elas despem a mágoa
destes olhos, e dos choupos,
carregados de sombra e rasos de água.
 
Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos.
– Ó mãos da minha alma,
Flores abertas dos meus segredos.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000



19 maio 2022

al berto / doze moradas de silêncio

 
1
 
penso na morte
mas sei que continuarei vivo no epicentro das flores
no abdómen ensanguentado doutros-corpos-meus
na concha húmida de tua boca em cima dos números mágicos
anunciando o ciclo das águas e o estado do tempo
 
a memória dos dias resiste no olhar dum retrato
continuo só
e sinto o peso do sorriso que não me cabe no rosto
improviso um voo de alma sem rumo mas nada me consola
 
é imprevista a meteorologia das paixões
pássaros minerais afastam-se suspensos
vislumbro um coro de chuva cintilando na areia
 
até que tudo se perde na sombra da noite… além
junto à salgada pele de longínquos ventos



al berto
doze moradas de silêncio 1978/1979
o medo
assírio & alvim
1997




 

18 maio 2022

ibn darraâj al-qastallî / diz à primavera

 
 
diz à Primavera:
estende as nuvens do teu manto
e abre os teus véus
sobre os lugares onde brinquei
na minha infância
 
não me desiludas, Primavera
as minhas lágrimas vão no teu encalço
em longas vagas.
mistura ao perfume da minha saudade
a humidade das nuvens
para aspergires aqueles a quem amo.
debruça-te sobre Córdova e estreita-a
como eu a estreitaria contra o peito
depois,
sobre os vales e colinas que são seus
espalha flores
que anunciarão através de ti
que lhe mando a mensagem.
 
 
 
ibn darraâj al-qastallî
o meu coração é árabe
adalberto alves
assírio & alvim
1999
 


 

17 maio 2022

hans-ulrich treichel / conversa debaixo das árvores

 
 
O haver ainda árvores
andorinhas
poderia ser um consolo
ainda que elas já não saibam
o que é florescer, voar
e que nós continuemos
na sombra imóvel
a encostar palavras a palavras
como se nada nos faltasse
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




 

16 maio 2022

eugéne guillevic / montanhas




 

Teremos mesmo de deixar
no seu lugar
entregues à sua sorte,
Estas montanhas de terra,
Que no entanto têm formas de seios
E respiram
 
Teremos de deixar que formem
essa frente azul
Diante da qual passamos
 
Nós com a nossa fúria
E demasiada carne
 
 
 
guillevic
nervo/14 colectivo de poesia
maio/agosto 2022
tradução de yvette k. Centeno
 
 


15 maio 2022

luís vaz de camões / odes

 
 
[VI]
 
Pode um desejo imenso
arder no peito tanto
que à branda e à viva alma o fogo intenso
lhe gaste as nódoas do terreno manto,
e purifique em tanta alteza o esprito
com olhos imortais
que faz que leia mais do que vê escrito.
 
Que a flama que se acende
alto tanto alumia
que, se o nobre desejo ao bem se estende
que nunca viu, a sente claro dia;
e lá vê do que busca o natural,
a graça, a viva cor,
noutra espécie milhor que a corporal.
 
Pois vós, ó ciaro exemplo
de viva fermosura,
que de tão longe cá noto e contemplo
n'alma, que este desejo sobe e apura:
não creais que não vejo aquela imagem
que as gentes nunca vêm,
se de humanos não têm muita ventagem.
 
Que, se os olhos ausentes
não vêm a compassada
proporção, que das cores excelentes
de pureza e vergonha é variada;
da quai a Poesia, que cantou
até 'qui só pinturas,
com mortais fermosuras igualou;
 
se não vêm os cabelos
que o vulgo chama de ouro,
e se não vêm os claros olhos belos,
de quem cantam que são do Sol tesouro,
e se não vêm do rosto as excelências,
a quem dirão que deve
rosa, cristal e neve as aparências;
 
vêm logo a graça pura,
a luz alta e severa,
que é raio da divina fermosura
que n'alma imprime e fora reverbera,
assi como cristal do Sol ferido,
que por fora derrama
a recebida flama, esclarecido.
 
E vêm a gravidade
com a viva alegria,
que misturada tem, de qualidade
que ua da outra nunca se desvia;
nem deixa ua de ser arreceada
por leda e por suave,
nem outra, por ser grave, muito amada.
 
E vêm do honesto siso
os altos resplandores,
temperados co doce e ledo riso,
a cujo abrir abrem no campo as flores;
as palavras discretas e suaves,
das quais o movimento
fará deter o vento e as altas aves;
 
dos olhos o virar,
que torna tudo raso,
do quai não sabe o engenho divisar
se foi por artificio, ou feito acaso;
da presença os meneios e a postura,
o andar e o mover-se,
donde pode aprender-se fermosura.
Aquele não sei quê,
que aspira não sei como,
que, invisível saindo, a vista o vê,
mas para o compreender não acha tomo;
o qual toda a Toscana poesia,
que mais Febo restaura,
em Beatriz nem em Laura nunca via;
 
em vós a nossa idade,
Senhora, o pode ver,
se engenho e ciência e habilidade
igual à fermosura vossa der,
como eu vi no meu longo apartamento,
qual em ausência a vejo.
Tais asas dá o desejo ao pensamento!
 
Pois se o desejo afina
ua alma acesa tanto
que por vós use as partes da divina,
por vós levantarei não visto canto
que o Bétis me ouça, e o Tibre me levante;
que o nosso claro Tejo
envolto um pouco vejo e dissonante.
 
O campo não o esmaltam
flores, mas só abrolhos
o fazem feio; e cuido que lhe faltam
ouvidos para mim, para vós olhos.
Mas faça o que quiser o vil costume;
que o sol, que em vós está,
na escuridão dará mais claro lume.
 
 
 
luís de camões
poesia lírica
ulisseia
1988