23 abril 2022

manuel alegre / raiz

 
 
Canto a raiz do espaço na raiz
do tempo. E os passos por andar nos passos
caminhados. Começa o canto onde começo
caminho onde caminhas passo a passo.
E braço a braço meço o espaço dos teus braços:
oitenta e nove mil quilómetros quadrados.
E um país por achar neste país.
 
 
 
manuel alegre
o canto e as armas
centelha
1974
 



22 abril 2022

jorge luís borges / ein traum

 
 
Sabiam os três.
Ela era a companheira de Kafka.
Kafka tinha-a sonhado.
Sabiam os três.
Ele ara amigo de Kafka.
Kafka tinha-o sonhado.
Sabiam os três.
A mulher disse ao amigo:
«Quero que esta noite me desejes.»
Sabiam os três.
O homem respondeu-lhe: «Se pecamos,
Kafka deixa de nos sonhar.»
Um deles soube.
Na terra não havia ninguém mais.
Kafka disse:
«Agora que partiram ambos, fiquei só.
Deixarei de me sonhar.»
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a moeda de ferro (1976)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




21 abril 2022

fátima maldonado / os presságios

 
 
Aquela tarde no jardim da Graça
ao desviarmos os olhos da cidade
uma lava já morta apodrece no monte
e o vento magoa a nave da igreja.
Os presságios me seguem
como o guarda descansa
na sombra de uma porta
e espera ordem de partir
sentindo estremecer no envelope
recado impaciente.
 
Os presságios me surgem
o mensageiro na cal se recorta
e vem de encontro à pedra
depositar a carta
sabendo de antemão
que tudo lhe negaram
e só lhe facilitam
este mediano conhecer.
É feroz a recusa
do oculto bilhete.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
os encontros
averno
2021




 

20 abril 2022

josé gomes ferreira / enchi de pedras e de cardos

 
 
VI
Enchi de pedras e de cardos
os caminhos da vida para mim…
 
E aqui estou eu agora neste trono de solidão,
braços vazios sem mundo,
a mostrar com orgulho a minha dor
– tão pequena afinal
para justificar as estrelas.
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972



19 abril 2022

jehan bseiso / depois de alepo

 



 
Aprendi a ler cedo.
Mas a verdade é: por vezes gostava que as letras per-
manecessem desenhos por mais tempo, antes da tirania
das palavras aparecer sem convite, e
antes que outras ínguas encontrassem na minha
                                     grande boca uma casa.
 
Não o digo literalmente.
 
Um dia, vamos voltar a Alepo, disseste tu.
 
Não o dizes literalmente.
 
Habibi, há quatro anos gritávamos por mudança,
                e agora somos cidadãos de fronteiras.
Vamos da Turquia para o Líbano, para o Egipto,
                         mas sem encontrarmos Alepo.
Temos cupões de alimentação, e, critérios de
             assistência, e, empatia intermitente.
 
Já não escrevo mais poesia.
 
O barco está a afundar,
literalmente,
mas eu não quero sair deste quarto.
Cheira a jasmim e tu sabes a liberdade.
 
 

 

jehan bseiso
um árabe é um árabe/é um árabe, um árabe
breve antologia de poesia árabe
versões e traduções joana santos e andré simões
contracapa
2022




 


18 abril 2022

samuel beckett / onde iria, se pudesse ir…

 
 
 
Onde iria, se pudesse ir, que seria, se pudesse ser, que diria, se tivesse uma voz, quem é que fala assim, dizendo que sou eu? Respondam simplesmente, haja alguém que responda simplesmente. É o mesmo desconhecido de sempre, o único para quem existo, nas profundezas da minha inexistência, da sua inexistência, da nossa, ora aí está uma resposta simples. Não é pensando que me encontrará, mas que pode ele fazer, vivo e perplexo, sim, vivo, diga o que disser. Esquecer-me, ignorar-me, sim, seria o mais sensato, é perito nisso. Porquê esta súbita amabilidade após tanto abandono, é fácil de compreender, é o que ele diz, mas não compreende. Não estou na sua cabeça, não estou em parte nenhuma do seu velho corpo, e, no entanto, estou aqui, para ele estou aqui, com ele, donde tanta confusão. Deveria contentar-se em ter-me reencontrado ausente, mas não, quer-me aqui, com uma forma e um mundo, como ele, sem querer, eu que sou tudo, como ele que não é nada. e quando me sente sem existência, é da sua que ele me quer privado, e vice-versa, louco, louco, é louco. Na realidade anda à minha procura para me matar, para eu estar morto como ele, morto como os vivos. Sabe que é assim, mas não serve de nada saber, eu não sei, não sei nada. Evita raciocinar, mas só raciocina, falso, como se isso pudesse ajudar. Julga balbuciar, claro que balbucia. Conta a sua história de cinco em cinco minutos, dizendo que não é sua, vejam lá a esperteza. Gostaria que fosse eu a impedi-lo de ter uma história, claro que ele não tem história, mas será razão para querer impingir-me uma? É assim que ele raciocina, passando ao lado, sim, sim, mas, o que tem de se ver é passando ao lado de quê. Faz-me falar dizendo que não sou eu, vejam só o exagero, obriga-me a dizer que não sou eu, a mim que não digo nada. é grosseria a mais.
 
(…)
 
 
 
samuel beckett
novelas e textos para nada
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2006




17 abril 2022

eugénio de andrade / mar sobre a boca

 
 
 
1.
O corpo sabe.
O corpo não esqueceu ainda
a direcção do sol:
fará a casa perto do mar,
fiel ao quase adolescente
coração da água.
As mãos acesas – altas, altas.
 
2.
O mar – sempre que toco
um corpo é o mar que sinto
onda a onda
contra a palma da mão.
Vésper está agora
tão próxima que já não posso
perder-me naquela infatigável
ondulação.
 
3.
Vinha do mar.
A sua boca ardia.
Só casualmente passou por aqui.
Como o tordo branco. E a cotovia.
 
4.
Vem das ilhas ou dum verso de Homero.
Como dormir, depois de ter ouvido
o mar o mar o mar na sua boca?
 
 
 
eugénio de andrade
hífen 1 out. 87/ mar. 88
cadernos semestrais de poesia
1987



 
 

16 abril 2022

manuel antónio pina / alguém atrás de ti

 
 
Como no sonho dum sonho, arde
na mão fechada de Deus o que passou.
É cada vez mais tarde
onde o que eu fui sou.
 
Que coisa morreu
na minha infância
e está lá a ser eu?
a lâmpada do quarto? A criança?
 
Em quem tudo isto
a si próprio se sente?
Também aquele que escreve
é escrito para sempre.
 
 
 
manuel antónio pina
nenhum sítio
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992
 



15 abril 2022

roger wolfe / dias sem pão

 
 
Sexta-feira, e chamam-lhe Santa.
As ruas estão desertas. Paz.
Acabou-se o pão e está tudo fechado.
Levantei-me às sete da matina
para me atirar ao trabalho.
São dez e meia e brilha o sol
sobre um céu muito azul
lacerado pelos gritos das gaivotas.
Segundo a rádio, Espanha
já começou a arder.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020



 

14 abril 2022

yvette k. centeno / querer e poder


 
 
Julgamos fazer o que queremos
mas só fazemos o que podemos
 
Vivemos entre os espaços dados
mas morremos em buracos
 
as pequenas feridas
que o tempo vai alargando
 
umas são de mais longe
outras ao nosso lado
 
 
 
yvette k. centeno
existir
eufeme
2022



 

13 abril 2022

louise glück / prisma

 
 
13
 
Chuva de Primavera, depois uma noite de Verão.
Uma voz de homem, depois uma voz de mulher.
 
Crescias, eras fulminada por um raio.
Quando abrias os olhos, estavas ligada para sempre ao teu verdadeiro
          amor.
 
Só acontecia uma vez. Depois tratavam de ti,
a tua história acabava.
 
Acontecia uma vez. Ser fulminada era como ser vacinada,
ficavas imune para o resto da vida,
ficavas ao abrigo de tudo.
 
A menos que o choque não fosse suficientemente profundo.
Então não ficavas vacinada, mas viciada.
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020




12 abril 2022

emanuel jorge botelho / versos do desconsolo

  
 
                  para Stig Dagerman
 
 
 
fiquei com pouco tempo
para dar à claridade,
e as abelhas já não vêm
pôr mel dentro das rosas.
 
às vezes, a minha sombra
é um pedaço de risco,
qualquer coisa desavinda
a que o Sol quer dar sustento.
 
quem disse que a memória
é sempre muito antiga?
 
quem falou de uma aranha
para tecer a eternidade?
 
                         Outubro de 2013
 
 
 
emanuel jorge botelho
telhados de vidro n.º 19 . maio . 2014
averno
2014





 
 
 
 

11 abril 2022

sonnet mondal / vivendo memórias

 
 
O comprimento desta noite
parece mais longo do que a minha vida.
 
Ninguém sabe o que está dentro
e ninguém anseia por isso.
 
Todas as minhas experiências estão presas
 
Os seus nascimentos
foram carimbados pela dependência
como as trepadeiras
agarrando-se a uma antiga árvore despenteada
que alugou as suas folhas
aos incansáveis chilreares da experiência.
 
Eu sinto-me tão calmo, mapeio coisas para esquecer
Mas os pássaros do meu passado estão inquietos.
 
O sono está em toda a parte, excepto nas minhas memórias.
 
 
 
sonnet mondal
nervo/1
colectivo de poesia
janeiro/abril 2018
trad. de sérgio ninguém