20 março 2022

antonio gamoneda / não tenho medo nem esperança

 
 
Não tenho medo nem esperança. De um hotel fora do
destino, vejo uma praia negra e, longínquas, as gran-
des pálpebras de uma cidade cuja dor não me afecta.
 
Venho do metileno e do amor; tive frio debaixo dos
tubos da morte.
 
Agora contemplo o mar. não tenho medo nem espe-
rança.
 
 
 
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999



 

19 março 2022

ángél gonzález / crise

 
 
O ideal, nestes casos,
seria morrer de morte natural,
fazer um gesto amargo,
deitar-me
definitivamente,
e partir com cuidado
para que ninguém possa
dar-se por ofendido.
Mas isso não é possível,
descontando Deus nosso Pai
– e os outros.
Por isso
– frio na rua, tédio
em quantos passam –
não saio do sítio, e vivo
– coração assediado pelo pranto –
a minha hora terrível:
a que ainda não soou.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018




18 março 2022

rui diniz / (love poem)






 
O tempo é a flor da marijuana e as tardes tristes.
Toda a tarde um morto na principal praça. À
distância, o fumo azul de uma exumação no cemitério.
E neste café leio o amor de Jaime e de Gisèle.
Nas ruas da Baixa a cidade inventa pessoas vivas,
mas os anos são vasos de tédio e copos de gin num bar.
Sigo com o olhar o vento: é leve e azulado.
Uma flor salta-lhe da boca, uma boca excêntrica e
floral. Uma a uma as pétalas e as páginas vão sendo
espalhadas pelos jardins e cais. É o crepúsculo no mar,
por fim. Acendem-se as luzes, amarelas e ninfómanas.
Ouço num búzio a espuma imóvel. Respiro o tempo.
E os meus olhos em silêncio recordam Sapho numa
ilha.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




 

17 março 2022

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
72
 
Era uma vez uma ausência que andava em missão de viagem. Quando chegava a uma encruzilhada dava três voltas sobre si própria para perder por completo a noção do caminho por onde viera atingindo assim com regularidade as regiões efémeras do esquecimento. Depois regressava a casa.



ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006




 

16 março 2022

a. c. swinburne / rosamunda

 
 
O medo é uma almofada sob os pés do amor,
Com cores que são para ele tranquilas;
Vermelho suave e branco tingido de sangue, azul
De flores, verde que se une ao estio,
Doce púrpura prometido ao mar e um negro calcinado.
Todas as formas coloridas do medo, presságio e mudança,
Uma triste profecia seguida de incertos rumores,
Premonições, astrologias e perigosas
Inscrições, o que a memória nos recorda,
Tudo fica encoberto pelo manto do amor,
E, quando ele o sacode, tudo será derrubado,
Agitado e levado no rosto poeirento do ar.
 
 
 
a. c. swinburne
poemas
tradução de maria Lourdes Guimarães
relógio d’ água
2006
 



15 março 2022

lawrence ferlinghetti / oh, tu que recolhes

 
 
Oh, tu que recolhes
          a fina cinza da poesia
                    cinza da chama demasiado branca da poesia
Pensa nos que arderam
          antes de ti
                              no fogo tão branco
Crisol de Keats e Campana
          Bruno e Safo
                    Rimbaud e Poe e Corso
E Shelley a arder na praia em Viareggio
 
E agora no meio da noite
          da conflagração geral
                    a luz branca
                              ainda a consumir-nos
                    pequenos palhaços
                         com as nossas velinhas
                              erguidas em direcção à chama!
 
 
 
lawrence ferlinghetti
a poesia como arte insurgente
tradução de inês dias
relógio d´água
2016




 

14 março 2022

dmitry prigov / imaginem isto: um gigante poderoso…

 



 
Imaginem isto: um gigante poderoso adormece
E de súbito o seu pé move-se para Norte
Então toda a gente no Norte foge para o Sul
Ou no Sul ele agita talvez uma mão
E toda a gente regressa outra vez ao Norte!
Mas digamos que de súbito acordam em simultâneo
A razão, a honra, a perspicácia e a consciência
O que acontecerá aqui! E em que direcção
                                 deveremos correr?!
 
 
 
dmitry prigov
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte e um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022



13 março 2022

teixeira de pascoaes / feita de sol é a carne que nos veste

 
 
Feita de sol é a carne que nos veste
Os ossos, que são feitos de luar.
E a nossa alma é sombra
A sonhar e a pensar, conforme é dia
Ou noite, pois em nosso pensamento
Esplende o sol.
Mas, ao luar, é que se expande
O nosso dom fantástico, esse voo
Sem fim do nosso ser
Que ultrapassa as estrelas,
E alcança, além do tempo, a eternidade,
E o infinito, além do espaço,
E Deus, além dos deuses.
 
S. João de Gatão, Março de 1950
 
 
 
teixeira de pascoaes
cadernos de poesia
III série, fascículo 14
Lisboa 1953




12 março 2022

josé mário silva / isto de cantar

 
 
1.
pergunto
mais uma vez:
o que é isso
de cantar?
 
2.
e talvez tudo
se resuma
a gestos
simples
 
abrir muito os pulmões
ao ar frio da madrugada,
 
fazer da voz uma corda
a que outros se agarrem,
 
desencostar o corpo afeito
às superfícies habituais
 
3.
ou então
encontrar o ímpeto,
o momentum,
o momento,
o mau vento,
o isqueiro,
o dialecto,
o rastilho,
o esqueleto,
o vago lume
do intelecto,
o desejo que desejas,
de flores em coroa
e cerejas, espuma
branca das cervejas,
ganas esganadas,
vendaval aberto,
visceral acerto,
um módico
de ironia ácida
na óbvia motivação
tácita, mais
as feridas
abertas há
séculos entre nós
e a Taprobana,
uma mesma, comum,
taquicardia, a tornar dura
a mole humana
 
4.
Tudo à primeira, sem esforço
 
(querias, não querias?)
 
pois nada disso
 
é sempre à enésima,
e só escorço
 
5.
por cima do verso o risco
que o rasga como aos vermes
da terra a lâmina da enxada
 
eis o vinco de tinta sobre tinta,
a incisão oblíqua, o reverso, golpe
mortal no que ficou aquém de terso
 
6.
Sempre
tudo por dizer?
E então?
Passemos
a palavra
como quem
trafica, sim,
como quem trafica
ouro roubado
(ouro marado)
 
 
 
josé mário silva
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015




 
 

11 março 2022

josé saramago / primeiro e segundo poemas dos mortos

 
 
1.
Os homens são mortais mas não se pode ter a certeza de que todos
     o sejam só aqueles que são vistos morrer diante dos nossos olhos
 
Quem vai saber se dentro do caixão fechado o corpo está ainda ou
     pelo contrário se ausentou deixando apenas o peso
 
Os homens são talvez mortais porque em verdade são muitos os que
     não voltamos a ver e a morte em tais casos será convenhamos
     uma razoável probabilidade
 
Mas muitos outros a maioria são provavelmente imortais porque vêm
     já vivos quando os vemos pela primeira vez
 
E assim continuarão noutros lugares se neste não habitam mais
 
Aliás nem seria concebível outro modo de conseguirem estar os homens
     em toda a parte com as flores numa planície que em uma só manhã
     se abrem
 
Ou um bando de aves migradouras repartindo o céu sobre o mundo ou
     um rápido e rebrilhante cardume de peixes que remexe o oceano
     benevolente
 
Os homens serão imortais um dia mas a prova não se fará antes de a
     Terra se acabar e mesmo assim
 
Porque poderão os homens ter-se ausentado dela sem mais deixando
     somente a memória como o peso num caixão vazio
 
 
2.
Hoje a terra tremeu porque os mortos se voltaram sobre o lado direito
     para aliviarem o coração
 
É um abalo diferente dos outros que mais se julgaria o suspiro de um
     corpo adormecido que rola um pouco e facilmente esquece
 
E é também um movimento tão igual ao da vida que nos sismógrafos o
     registo muda de cor e o traço é como um fio de sangue
 
Porém os vivos fogem medrosos para a rua e não entendem as mudanças
     e pensam que todo o abalo é terramoto e cataclismo
 
Os mortos enterrados a menos de dois metros de superfície desafogam
     o coração enquanto escutam o arfar do núcleo ígneo da Terra
 
Sorrindo sábios conforme se afasta o rumor dos pés que fogem porque
     sempre voltam à palavra interrompida
 
 
 
josé saramago
experiência de liberdade
antologia de textos publicados no
suplemento artes e letras
do diário de notícias de
maio a novembro d e1975
diabril
1976







10 março 2022

samih al-qasim / assim

 
 
como se planta uma palmeira no deserto
como minha mãe dispõe, sobre a minha cara dura, um beijo
como meu pai tira a capa beduína
e soletra as letras ao meu irmão
como arrasta os cascos de guerra um pelotão
como a haste de trigo se levanta na terra estéril
como uma estrela sorri ao namorado
como seca uma brisa o rosto fatigado do trabalhador
como entre nuvens espessas se levanta uma soberba fábrica
como um grupo de amigos começa a cantar
como um estranho para outro sorri afectuosamente
como uma ave volta ao ninho do amado
como um rapaz leva a sua sacola
como o deserto adverte da fertilidade
assim pulsa em minh ‘alma a arabidade.
 
 
 
samih al-qasim
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de adalberto alves
assírio & alvim
2001




 
 
 
 
 

09 março 2022

david teles pereira / rua adamczewski

 
 
Na distante memória, a estreita rua Adamczewski
contorna o olhar até se abrir em direcção ao cemitério
que fica no cimo da colina, onde as crianças brincam
aos castelos numa árvore sem pássaros.
 
Aqui a sombra da morte é tão presente quanto a do fim da tarde;
felizmente ainda mal passámos do meio-dia e os velhos
bebem aguardente de ervas no café à espera de quase tudo,
menos do grito de uma flor que aguarda um destino.
 
Mas eis que ele soa e o nosso tempo altera-se,
como se de ouvido encostado ao chão pudéssemos
associar o triunfo das formigas ao dos nossos antepassados
a caminhar lado a lado pela Rua Adamczewski acima
em direcção ao cemitério, de braços dados, enquanto cantam
Se não são os mortos que nos guardam,
porque é que os deitamos aqui em cima?
 
 
 
david teles pereira
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010




 

08 março 2022

james joyce / ela chora sobre rahoon

 


Chove sobre Rahoon, cai lenta, lentamente cai,
Onde jaz o meu fúnebre amante.
Tristonha, sua voz me chama, chamante vai
Lua cinzenta, levante.
 
Amor, escuta
Que suave, que triste a voz que sempre chama,
Sem resposta, a triste chuva sempre clama,
Agora é luta.
 
Soturnos corações, frios e estirados; Oh, amor
Nossos tristes corações de amantes
Sob o urtigal lunacinzento, negro bolor
E a chuva Murmurante.
 
 
 
james joyce
pomas penicada
trad. vinicius alves
editora urutau
2018