08 fevereiro 2022

gottfried benn / são desprezíveis…

 
 
São desprezíveis os que amam e os que troçam
e quem espera e o desespero e a nostalgia.
Somos deuses que a dor e a infecção engrossam
e em Deus vamos pensando todavia.
 
A baía suave. Sonho em bosques sumido.
Os astros pesam, flores-bolas de nevar.
Saltam panteras plas árvores sem ruído.
Tudo é margem. Eterno chama o mar.
 
 
gottfried benn
50 poemas
tradução vasco graça moura
relógio d’água
1998




07 fevereiro 2022

cesare pavese / e então nós os vis

 
 
E então nós os vis
que amávamos a noite
rumorosa, as casa,
os percursos no rio,
as luzes vermelho sujo
desses lugares, a dor
mansa e calada –
arrancámos as mãos
de cadeia viva
e calámo-nos, mas o sangue
fez estremecer o coração,
e não houve mais doçura
nem mais abandono
aos passeios no rio –
não mais servos, soubemos
que estávamos sós e vivos.
 
                         23 de Novembro de 1945
 
 
 
cesare pavese
a terra e a morte
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021




 

06 fevereiro 2022

hugo carvalheira neves / por mim, digo…

 
 
por mim, digo, não é que tenha pressa alguma nisto
não há é tempo nenhum
e das estações que falam e onde aterram
janeiro, março,
março, maio,
julho
(e isto só dos nós altos que fazem da mão injusta)
para não estarem nos meus últimos
a perder os de igual frio primeiros
(ou de não lhes serem agosto todos)
e mais grave que tudo
os cabelos soltos e como em três tempos os apanham
aí sim, outono inverno
de não se poder com a desatenção feroz
que te devolve ao chão de quando era no ar.
 
 
 
hugo carvalheira neves
certa parentela
do lado esquerdo
2019




05 fevereiro 2022

tomás sottomayor / quando era ainda

 
 
Quando era ainda
possível um verso puro
O dobrar dum sino na
época da festividade
Medrou a melancolia
no sopro que animou
o meu coração.
Consumou-se o exílio
Nos cantos à fertilidade
da terra
Nas vozes frias e brancas
das crianças.
 
 
 
tomás sottomayor
auberge ravoux
língua morta
2021




 

04 fevereiro 2022

nuno júdice / fevereiro

 
 
A fotografia obscurece o fundo;
nenhum dos sinais do princípio me traz
o conforto de ser, nem
abre a última porta, por
onde passaram os exércitos da noite.
Mas vejo melhor: e
descubro-te, a um canto,
debruçada da varanda – como
se espreitasses o mar verde da memória,
ou procurasses a própria definição
da água, entre o azul
e o negro.
É, de facto, a cor
dos teus olhos,
como a lembro. Encostavas-te
à parede branca, contra
o sol; e a luz não te atravessava
os cabelos com que protegias
o rosto.
 
Desse fundo de minúsculas
particularidades, a tua presença é
a mais evidente. Deixo que
a sombra desapareça de toda a parte,
da parede até ao próprio horizonte; e
é como se saísses de dentro
do tempo, e nos entrássemos,
por instantes, sob um céu de nuvens esburacadas
como as tábuas comidas
pelo sal.
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997




 

03 fevereiro 2022

sebastião alba / os escribas

 
 
 
Que augúrio se lhes venda no cabelo?
Que vento neles, venenoso, seca a mais arbórea
esperança de agasalho?
O que, luminescente, acode
à superfície do papel, não o revelam:
de cócoras, foram
por demais jovens para as solenes advertências,
e invisíveis como sombras sem orla.
Dum golpe, a noite
invade as ruínas da luz.
 
 
 
sebastião alba
a noite dividida
assírio & alvim
1996




 

02 fevereiro 2022

maurício de sousa / libações de água e sal

 
 
 
12
 
No inverno
as gaivotas  trazem-nos o mar
:
a terra foge
 
 
 
maurício de sousa
libações de água e sal
eufeme
2020




01 fevereiro 2022

josé carlos barros / os anos

 
 
À janela verás um rosto
de criança
e nem um sorriso terás
no fundo do bolso
para caiar a sua infância
pequena
e sem cuidados.
 
Talvez um pássaro te poise então
no fundo dos cabelos.
 
Mas quando estenderes a mão
 
não haverá um brilho na tarde
e a criança há-de ser
um esqueleto de sombras
a rilhar o riso
com quatro dentes castanhos
sobre uma tábua
onde caíram os anos
fartos de voar.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020




 

31 janeiro 2022

miguel cardoso / se desci a poços

 
 
Se desci a poços
 
foi por não saber
fazer palas sobre os olhos
nem outros truques de visionário e abat-jour
 
Porque largar a infância
era ir na direcção inversa
dos túneis vastos que me deixara na vista
 
Era arranque em bruto para o alarme
das idades que descem
 
cruzando-me com rimbaud em sentido contrário
deixando cair lâminas de barbear pelos bordos
e levando às cavalitas poetas gastos
nortes de áfrica de hugo pratt
a cores tatuados nas costas da mão
para o caso de se cansar de cadernos e delúgios
 
Se subi a postes
foi pela mesma razão exacta
 
porque o chão era extenso
 
e que viesse depois a gravidade
dizer-me onde estava que ano era
 
e onde aplicar as ligaduras
 
 
 
miguel cardoso
fruta feia
douda correria
2014




30 janeiro 2022

fernando namora / nós e as coisas

 
 
 
Fechou-se este olhar sobre o mundo
deixámos de perscrutar os sussurros interiores
as veias das coisas estão vazias
ao nosso impuro tacto
é preciso o cataclismo para que as neves brilhem
no coração absorto
lá onde a montanha tem a imobilidade das criaturas
                                                          [fulminadas
os enigmas abriram-se como sortilégios
extintos de um brinquedo quebrado
de flor em flor o insecto em vão semeia
a perenidade do testemunho
nem os esfíngicos embustes da natureza
nos fazem tremer de dúvidas iradas
os ventos calaram-se mesmo se bravios
sentámo-nos no átrio onde o sonho é um mural
esfumado e os relógios pararam
 
somos máscaras com o pranto seco
somos espectros.
 
 
 
fernando namora
nome para uma casa
livraria bertrand
1984




 
 
 

29 janeiro 2022

tereza balté / os idílios

 
 
1
Eis o meu demónio
o nosso encontro
o sílex a lareira
a primeira caverna
que voltei
a habitar
 
 
de novo a paixão ou o delírio
o rio à espera
e no fim do tempo o anjo veio
lavrar a pedra
 
 
 
tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977




28 janeiro 2022

louise glück / caminhando à noite

 
 
Agora que é velha,
os homens não metem conversa com ela,
por isso as noites estão livres,
as ruas que ao crepúsculo eram tão perigosas
são agora tão seguras quanto o prado.
 
À meia-noite, a povoação está serena.
Os muros de pedra reflectem o luar;
nos passeios, é possível escutar os ruídos nervosos
dos homens estugando o passo para casa, para as suas mulheres e
   mães; a esta hora tardia,
todas as portas estão trancadas, as janelas às escuras.
 
Quando eles passam, não reparam nela.
É como uma folha de erva seca num campo de gramíneas.
Por isso, os seus olhos, habituados a não descolarem do chão,
são agora livres para passear onde quiserem.
 
Quando faz bom tempo e está cansada das ruas, caminha
pelos campos que demarcam o fim da povoação.
Às vezes, quando é Verão, chega a ir até ao rio.
 
Os jovens costumam encontrar-se não muito longe daí,
mas agora o rio está raso por falta de chuva, por isso
a margem está deserta –
 
Na altura, faziam-se piqueniques.
Os rapazes e as raparigas acabavam por formar pares;
Passado algum tempo, metiam-se pelos recessos dos bosques
que o crepúsculo sempre visita –
 
Agora, não se veria vivalma nos bosques –
tendo os corpos nus encontrado outros lugares para se esconder.
 
No rio, a água é só suficiente para que céu nocturno
desenhe padrões nas pedras cinzentas. A Lua brilha,
uma pedra entre muitas outras. E o vento levanta-se;
sopra as pequenas árvores que crescem à beira do rio.
 
Quando olhamos para um corpo, vemos uma história.
Assim que esse corpo deixa de ser observado,
a história que tentava contar acaba por se perder –
 
Em noites como esta, ela chega a caminhar até à ponte
antes de voltar para trás.
O cheiro do Verão persiste em todas as coisas.
E o corpo dela começa a parecer outra vez o corpo que fora o seu
   em jovem,
reluzindo sob as roupas ligeiras de Verão.
 
 
 
louise glück
uma vida de aldeia
tradução de frederico pedreira
relógio d´água
2021




27 janeiro 2022

anna akhmatova / acordar de madrugada

 
 
Acordar de madrugada
Pois a alegria sufoca,
E olhar pela vigia
Para as vagas de cor verde,
Ou no convés com mau tempo
Gasalhada em brandas peles,
Ouvir o bater da máquina,
E não pensar em nada,
Mas, pressentindo o encontro
Com esse que se tornou minha estrela,
Pelas gotas salgadas e o vento
Em cada hora rejuvenescer.
 
Julho de 1917
Slepnevo
 
 
 
anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003