08 novembro 2021

jacques baron / o desconhecido

 
 
Ele dizia
os meus lábios são cachos monstruosos
de panteras cantantes
mais doces do que os pássaros tão doces da colina
e os touros sangrentos de grandes nuvens obscuras
Ele dizia
trago no meu seio
ondas imensas e acres
no meio das flores tão belas dos grandes dias
Chamava Maria
a uma menina que transporta legumes
Ele dizia ainda
Sou uma papoila
que desperta pela manhã o azul lívido dos bichos
 
 
jacques baron
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021

 
 
 
 
 
 

07 novembro 2021

mário de sá-carneiro / dispersão

 
 
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
 
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…
 
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
 
(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
 
Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
 
O pobre moço das ânsias…
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.
 
A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.
 
Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.
 
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro —
Não me acho no que projeto.
 
Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
 
Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.
 
Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi… mas recordo
 
A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.
 
(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!…)
 
E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
 
Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.
 
Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas…
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas…
 
Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar…
Ninguém mas quis apertar…
Tristes mãos longas e lindas…
 
E tenho pena de mim,
Pobre menino ideal…
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?… Ai de mim!…
 
Desceu-me n’alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
 
Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.
 
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço…
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço…
…………………………………………………………….
…………………………………………………………….
 
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba…
…………………………………………………………….
…………………………………………………………….
 
 
 
mário de sá-carneiro
dispersão
1913





 

06 novembro 2021

david mourão-ferreira / canção, de madrugada

 
 
                                                A Cecília Meireles
 
 
 
Escorrem de noite pelos prédios,
dissimuladas na umidade
— dissimulando elas o tédio
das longas noites da cidade —
deusas solícitas que vão,
com sua etérea assinatura,
quase propor a redenção,
— de rua em rua, dar a mão
a quem se arrasta ou se procura.
 
Pobre de quem vem perguntando
à pedra esquiva das esquinas
a voz e a face dessa amante
de que não restam senão cinzas!
Pobre do outro a quem o gelo
daquele encontro tão malsão
nem conseguiu arrefece-lo!
— Pobres de tantos, sem o selo
de garantia da ilusão!
 
Ó vidas presas por um fio,
junto ao abismo dos fracassos,
quem vos evita o fim sombrio
já desenhado em vossos passos?
— Com grandes túnicas violáceas,
as deusas erguem claras brisas:
nas avenidas e nas praças,
tremem as folhas das acácias,
vibram os peitos infelizes.
 
Até o frígido luar,
que de livor tingia as ruas,
se vai sumindo, devagar,
deixando as almas menos nuas...
Uma promessa de folhagem,
de vento e sol, as veste agora:
e, penetradas pela aragem,
as almas tímidas reagem
à madrugada que as enflora!
 
Súbito, a um gesto das deidades,
quebra-se o fúnebre luzeiro
das outras luas enforcadas
nos braços curvos dos candeeiros.
Já no crepúsculo se esfuma
a doentia sugestão,
— e as deusas tecem, com a bruma,
a nova luz que se avoluma
e é uma promessa ou uma canção.
 
Do sofrimento a noite cessa
na indecisa madrugada:
que ninguém peça a uma promessa
mais que a promessa que foi dada!
A quem sofreu, basta que a vida
levante um sol de entre as ruínas:
uma promessa doutra vida...
— Quanto aprendi!, nesta comprida
noite que tu, Canção, terminas.
 
 
 
david mourão-ferreira
a arte de amar
1967







05 novembro 2021

giórgos markópoulos / épica

  
 
Era um que era popular na praça e nos negócios,
até que de repente descobriu a poesia.
Por todo o lado começou tudo a dar para o torto.
A mulher deixou-o uma tarde.
Vede lá onde dorme agora.
 
Por cima do túmulo voam pássaros.
 
  
 
giórgos markópoulos
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. manuel resende
língua morta
2021





 

04 novembro 2021

carlos edmundo ory / 10 coisas a pensar em anacha

 
 
1
Brancos são meus pensamentos
Este é o primeiro poema que
te escrevo Anacha ou melhor
em minha língua tu navegas
Com a boca fechada escrevo
muito quieto uma maçã triste
Tinha uma rosa a esperar-te
Vejo cair suas pétalas ao chão
Não as apanho perfumam o meu quarto
E estou sozinho como um louco
 
2
As flores aquecem-me
     Anacha tenho frio
A poesia aquece-me
     Anacha teho frio
A solidão aquece-me
     Tenho fogo Anacha
 
3
O que é um poeta? Ninguém o sabe
Palavras que mordem somos cães
raivosos de tanta doçura
Li-tai-po não me ouve Vem tu
 
4
Minha cabana é formosa
Conhece os meus cantos magoados
E o silêncio sorri-me
É formosa a minha cabana
 
5
Sou chuva de beleza
que gota a gota cai sobre o abismo
Sou o Adónis do sofrimento
Meu coração não é deste mundo
E ninguém ama as minhas chagas
 
6
Não se tape nunca a boca à dor
Nada se perde ao sofrer-se
A vida é uma porta terrível
deixa-a sempre aberta
 
7
A noite é um quarto escurecido pelos amantes
disse William Carlos Williams
Quantas vezes senti a escuridão
dentro de uns cabelos?
 
8
Falar a uma mulher que nos ama
de outra mulher que amamos
não se pode fazer neste mundo
Mas quem tem a culpa?
Eu calo-me neve gelada
 
9
A religião da linguagem
As palavras são estrelas
Quem me escuta quando falo?
Ninguém a não ser o vento negro
 
10
Lendo Esquilo na minha infância
depois duas ou três grandes vozes
Oh Cassandra oh Zaratustra
Ouvir-se-ão palavras ou silêncio
A dor é a única fonte
 
 
 
 
carlos edmundo ory
antologia da poesia espanhola contemporânea
trad. de josé bento
assírio & alvim
1985
 




03 novembro 2021

jorge luís borges / a quem já não é jovem

 
 
Já podes ver o trágico cenário
E cada coisa no lugar devido;
As cinzas e a espada para Dido
E a moeda para Belisário.
Porque vais procurando no brumoso
Bronze desses hexâmetros a guerra
Se estão aqui sete palmos de terra,
O abrupto sangue e o aberto fosso?
Aqui te espreita o insondável espelho
Que sonhará e esquecerá o velho
Reflexo das tuas agonias.
Cerca-te já o derradeiro. A casa
Onde essa lenta e breve tarde passa
E a rua que vês todos os dias.
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




02 novembro 2021

wislawa szymborska / o primeiro amor

 
 
Dizem
que o primeiro amor é o mais importante.
É muito romântico
mas não é o meu caso.
 
Algo entre nós houve e não houve,
deu-se e perdeu-se.
 
Não me tremem as mãos
quando encontro pequenas lembranças,
aquele maço de cartas atadas com um cordel,
se ao menos fosse uma fita.
 
O nosso único encontro, passados anos,
foi uma conversa de duas cadeiras
junto a uma mesa fria.
 
Outros amores
continuam até hoje a respirar dentro de mim.
A este falta fôlego para suspirar.
 
No entanto, sendo como é,
não lembrado,
nem sequer sonhado,
consegue o que os outros ainda não conseguem:
acostuma-me com a morte.
 
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006





 

01 novembro 2021

louise glück / o passado

 
 
Débil luz surgindo no céu
de súbito entre
dois galhos de pinheiro, as finas agulhas
 
recortadas agora sobre a superfície radiosa
e acima disto
o alto céu emplumado –
 
Cheira o ar. Este é o cheiro do pinheiro branco,
sobretudo intenso quando o vento passa por ele
e o som que faz é igualmente bizarro,
como o som do vento num filme –
 
Sombras movendo-se. Produzem as cordas
o som costumeiro. O que ouves agora
será o som do rouxinol, chordata,
o pássaro macho a cortejar a fêmea –
 
As cordas agitam-se. A rede
balouça no vento, bem
amarrada entre dois pinheiros.
 
Cheira o ar. Este é o cheiro do pinheiro branco.
 
É a voz da minha mãe que ouves
ou tão-só o som que fazem as árvores
quando o ar passar por elas
 
pois que som faria
o passar por nada?
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021






31 outubro 2021

sérgio ninguém / segundo andamento, a prosa (moderato)

 
 
A ausência foi-se ao vos conhecer. Em cada escarpa, um tom. A essência vive nos vivos. O escuro veste-nos, com a realidade, para o imaginário se habituar à claridade ausente. Faltam dias para o indiscernível chegar. Repetido avanço, pensamento do mito pela forma.
                Fazer vazio sem (o) tempo.
 
 
 
sérgio ninguém
pedra II
edições eufeme
2021









30 outubro 2021

pedro spigolon / pressa seca

 
 
 
Só cessa o exílio
se a mala vira bote
mas até quando repetirei esse apelo
sem encontrar rio algum?
Poderia desenhar uma paisagem
com o meu corpo seco
mas desconheço o motivo das nascentes
e ignoro o passar do tempo.
O rio seca a pressa quando
espalha a imaginação do céu
e as nuvens se demoram
na imitação dos bichos:
um cavalo, um peixe
mas se é um e também outro
não guardaria o céu
a morte do tempo?
Toda a fauna numa nuvem
não devora os minutos?
Os relógios murcham as nuvens
E os homens contam os segundos
ainda mais quando têm pressa
de fugir ao trabalho
E tem-se pressa de viver
algo bom no futuro
quando tudo será calma e cansaço.
Poderá divertir-se com tolices
como quem cumpriu sua meta
e permitirão descansar
os sapatos sujos
no sofá à prestação.
Assim, adiando os dias,
sequer poderemos caçar nuvens
e ouvir o riso dos rios.
 
 
pedro spigolon
espanto
editora medita
2015





 

29 outubro 2021

pier paolo pasolini / who is me, poeta das cinzas

 
 
[…]
 
Vivi <…>
aquela página de romance, a única da minha vida:
quanto ao resto, <o que querem,>
tenho vivido dentro de uma lírica, como todos os atormentados.
Tinha entre os meus manuscritos também o meu primeiro
                                                                             [romance:
eram os tempos de «Ladrões de Bicicletas»
e os literatos descobriam a Itália.
(Eu agora já não sou um literato,
evito os outros, não tenho nada a ver
com os seus prémios e as suas publicações.)
Chegámos a Roma,
ajudados por um doce tio meu,
que me deu um pouco do seu sangue:
eu vivia como pode viver um condenado à morte
sempre com aquele pensamento como uma coisa atrás de mim,
– desonra, desocupação, miséria.
A minha mãe reduziu-se durante algum tempo ao trabalho
                                                                      [de servir.
E eu não me curarei jamais desta doença.
Porque sou um pequeno-burguês, e não sei sorrir…
como Mozart…
Num filme – a que chamei «Passarinhos e Passarões» –
Tentei, é verdade, a ópera buffa, ambição suprema de um escritor,
– mas só em parte o consegui,
porque sou um pequeno-burguês,
e tendo a dramatizar tudo..
 
[…]
 
 
pier paolo pasolini
who is me
poeta das cinzas
trad. de ana isabel soares
barco bêbado
2021






28 outubro 2021

tomás sottomayor / um osso

 
 
Um Osso
Apenas
Pode falar de todas
As histórias de Amor
De todos os momentos
Perdidos no Jardim
 
Da tua Graça
Enquanto tomas banho
Num delírio de Satie
 
 
 
tomás sottomayor
auberge ravoux
língua morta
2021

 




 

27 outubro 2021

arnau pons / agarras-te à voz

 



 
AGARRAS-TE à voz, luz de destempo
que faz encaminhar a vida;
ninguém
se cala, todos querem escrever as trevas;
em direcção a ti, aquilo: empalidece
com lepra e neve a mão coberta,
as unhas com arcos de promessa;
 
rastos: que esboçam?
portas: que abraçam?
real uma só paisagem: os mudos.
arteriais, dragões alados de Medeia;
cosidas letras
estrias do céu;
 
sob a pele,
ficam os cadáveres das palavras;
 
uma poça de sangue abafa no escuro
um grito;
subitamente ergues os olhos
para a escória.
 
 
 
arnau pons
tradução de yvette centeno
eufeme 21 outubro/dezembro 2021
magazine de poesia
edições eufeme
2021