19 outubro 2021

josé amaro dionísio / a sombra do sangue

 



 

                                    2
 
                Talvez as folhas não caiam  em
Outubro, visto que não se trata do mal
do vento, mas da ruína da alma.
 
 

 
josé amaro dionísio
eduardo batarda
a sombra do sangue
livro de artistas

europalia 91
1991



18 outubro 2021

joão almeida / céu da boca

 
 
Onde as ondas andam é aqui nos prédios novos
por cima da ressaca dos discos parabólicos e o outono
tão frio pela amanhã, com gavetas
de madeira e lenços de papel pelo chão da cabeça
 
ficamos calados a ver passar a linha de marcação contínua
e agora não me lembro nem do autor nem do poema
nem um verso ficou, tudo triturado
reduzido a mosquitos por cordas.
 
 

joão almeida
canto skin
língua morta
2019






17 outubro 2021

joão barrento / breviário do silêncio

 
 
 
*
O silêncio não é explicável. Não só porque se furta aos princípios de articulação da linguagem, mas também porque ele é, em si e quando irrompe e se demarca do som, uma realidade e uma experiência auto-suficiente e autónoma. Qualquer tentativa de explicação da experiência (não do fenómeno!) do silêncio seria uma contradição. O silêncio propicia, em última análise, o acesso a uma «fala» do mundo e das coisas na sua radicalidade ontológica, sem explicações. É a pura presença.
 
 
 
joão barrento
breviário do silêncio
alambique
2021
 




16 outubro 2021

reinaldo ferreira / da margem esquerda da vida

 
 
Da margem esquerda da vida
Parte uma ponte que vai
Só até meio, perdida
Num halo vago, que atrai.
 
É pouco tudo o que eu vejo,
Mas basta, por ser metade,
P’ra que eu me afogue em desejo
Aquém do mar da vontade.
 
Da outra margem, direita,
A ponte parte também.
Que sabe se alguém me espreita?
Não a atravessa ninguém.
 
 

reinaldo ferreira
dispersos (Livro IV)
poemas
vega
1998





 

15 outubro 2021

antónio franco alexandre / (envoi)




 

João, em viagem sê discreto.
Esquece as mil e três, as onze mil.
De duas mãos já sentes o excesso;
de escafandro cortês é como ficas
bem, ao cortar o retrato.
 
Não é verdade que este mundo seja
o pior, o melhor; melhor, se é teu.
Se é teu o arremesso, a flecha voa
certeira, à desprendida presa.
 
Verás os montes altos, os eternos,
e o mais pequeno, onde nasce o dia.
Precioso brinquedo, a terra gira
com a precisa alma do relógio;
leva contigo tudo, não me poupes;
onde não sou é que começo, eu.
 
 
 
antónio franco alexandre
poemas
carrocel
assírio & alvim
2021

 


 




14 outubro 2021

amadeu baptista / taxa de juro

 
 
 
Vigio estas ruínas, roubador de secretas implosões
                que tecem os segredos da noite. De longe observo
os que dulcificam e pervertem este rumor nocturno, a visão
incendiária de um lenço suspenso sobre miríades de insectos
                agonizantes. Esses animais empolgam-me, são
insondáveis ruídos dentro da minha boca, o meu sangue perscruta-os,
                excede-os na lucidez da maldição, desejo-lhes
                o visco que soltam na irrealidade da passagem, amo-os
como se fossem voláteis transparências de um universo voraz
que secretamente reúne a profetização e as vítimas
                em torno do abismo. Tudo é sagrado,
a destroçante imagem desses corpos que o esquecimento ilude,
                a fragrância de todas as substâncias lancinantes
que pulsam sob a terra, esse imperceptível murmúrio de escuridão
                que nas têmporas se esconde, consumindo
a imóvel opacidade que percorre a loucura. Com as mãos
                escavo este lugar sagrado de claridade e torpor,
                o deserto imperturbável das órbitas silenciosas
destes mortos, a película de impaciência e luz que os nossos
                dedos tocam,
                devastadoramente.
 

 

amadeu baptista
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991




13 outubro 2021

rui caeiro / do amor

 
 
Do amor não conhecemos os espaços
largos, manhãs, luares, jardins
 
Espeluncas de aluguer (serve assim?)
e lá dentro o esplendor dos corpos nus
 
– Está aqui a chave, é ao fundo
do corredor, à esquerda
 
(E lá dentro o esplendor dos
corpos nus)
 
 
 
rui caeiro
o quarto azul e outros poemas
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019





12 outubro 2021

jack gilbert / tentar ter algo de sobra

 
 
 
Havia uma grande ternura na tristeza
quando lá ia. Ela sabia o quanto
amava a minha mulher e que não tínhamos futuro.
Éramos como feridos a ajudarem-se mutuamente
enquanto esperávamos pelo fim. Agora, pergunto-me
se percebíamos quão felizes eram essas
tardes dinamarquesas. Não falávamos a maior parte do tempo.
Costumava tomar conta do bebé enquanto ela tratava da
casa. Mudava-lhe a fralda e fazia-o rir.
Dizia sempre Pittsburgh suavemente antes
de o atirar ao ar. Sussurrava Pittsburgh com
a minha boca contra a orelhinha e atirava-o
mais alto. Pittsburgh e a felicidade lá no alto.
A única maneira de deixar o mais pequeno dos rastos.
Para que toda a vida o seu filho sentisse uma
alegria inesperada quando alguém falasse da arruinada
cidade de aço na América. Relembrando de cada vez
algo porventura importante que se perdeu.
 
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020





11 outubro 2021

styliános kharkianákis / o cidadão de hoje

 
 
As relações com os semelhantes
Tornaram-se tão complicadas
Que as únicas actividades que não exigem
conselho jurídico
São os desmaios, o enjoo e as lágrimas.
 
 

 
styliános kharkianákis
hinos modais, 1984
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
tradução de manuel resende
língua morta
2021






10 outubro 2021

bernardo soares / não o amor, mas os arredores é que vale a pena...

 
 
Não o amor, mas os arredores é que vale a pena...
 
A repressão do amor ilumina os fenómenos dele com muito mais clareza que a mesma experiência. Há virgindades de grande entendimento. Agir compensa mas confunde. Possuir é ser possuído, e portanto perder-se. Só a ideia atinge, sem se estragar, o conhecimento da realidade.
 
s.d.
 


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982






09 outubro 2021

jorge figueira / premeditação do tempo frio

 
 
o chão este tarzan
é vosso este reino
ministros
Vim com um fumo de outrora
afinal era uma páscoa de
cigarros
e eu já não era
inquilino ou
Sábio.
Vejo agora o animal cacto
a árvore verde
a fruta medieval
a chuva sincopada
de culpa
que dilui
 
As envolventes
são a sinistra assinatura
da vossa permanência
o pequeno silêncio
os braços pesados
as incumbências do destino
central.
Eu por aqui usarei sempre
a túnica mais suave
letras mortas e
garrafais.
Sempre que eu estiver a bordo
de uma despedida
lembrar-me-ei desta retícula
de azar-chão-cimento
intranquilo
 
E pasmarei sempre com a
desenvoltura em
espiral fechada
do animal-cacto
(carnaval inútil
olhos mortos
de riso).
 
 


jorge figueira
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991
 




08 outubro 2021

alain bosquet / três poemas

 
 
2
Deus diz: «Entre mim e eu
sinto que me falta
uma espécie de doçura;
por isso improviso um colibri,
algum orvalho,
uma ilha muito leve,
um canto de amor, um sonhar intermitente
onde um outro deus se passeia.»
 
 

alain bosquet
trad. de eugénio de andrade
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990





07 outubro 2021

françois jacqmin / o outono

 
 
Os pássaros arrancaram
as portas do espaço
 
Aboliram a perspectiva
do frio.
 
O êxodo faz-lhes as vezes de pensamento.
Já avistam o mar.
 
A rosa já nada espera
da sua época
 
Os amantes já não assombram
os lugares suscitados
pelo seu perfume
 
O infinito está sem forças
 
A paixão da morte
é sem análogo
nos seres que amaram.
 
 
 
 
françois jacqmin
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021