Do amor não conhecemos os espaços largos, manhãs, luares, jardins Espeluncas de aluguer (serve assim?) e lá dentro o esplendor dos corpos nus – Está aqui a chave, é ao fundo do corredor, à esquerda (E lá dentro o esplendor dos corpos nus) rui caeiro o quarto azul e outros poemas o sangue a ranger nas curvas
apertadas do coração maldoror 2019
Havia uma grande ternura na tristeza quando lá ia. Ela sabia o quanto amava a minha mulher e que não tínhamos futuro. Éramos como feridos a ajudarem-se mutuamente enquanto esperávamos pelo fim. Agora, pergunto-me se percebíamos quão felizes eram essas tardes dinamarquesas. Não falávamos a maior parte do tempo. Costumava tomar conta do bebé enquanto ela tratava da casa. Mudava-lhe a fralda e fazia-o rir. Dizia sempre Pittsburgh
suavemente antes de o atirar ao ar. Sussurrava Pittsburgh
com a minha boca contra a orelhinha e atirava-o mais alto. Pittsburgh e a felicidade lá no alto. A única maneira de deixar o mais pequeno dos rastos. Para que toda a vida o seu filho sentisse uma alegria inesperada quando alguém falasse da arruinada cidade de aço na América. Relembrando de cada vez algo porventura importante que se perdeu. jack gilbert deixem-me ser ambos trad. leonor castro nunes e marcos pereira destrauss 2020
As relações com os semelhantes Tornaram-se tão complicadas Que as únicas actividades que não exigem conselho jurídico São os desmaios, o enjoo e as lágrimas.
styliános kharkianákis hinos modais, 1984 a grécia de que falas… antologia de poetas gregos
modernos tradução de manuel resende língua morta 2021
Não o amor, mas os arredores é que vale a pena... A repressão do amor ilumina os fenómenos dele com
muito mais clareza que a mesma experiência. Há virgindades de grande
entendimento. Agir compensa mas confunde. Possuir é ser possuído, e portanto
perder-se. Só a ideia atinge, sem se estragar, o conhecimento da realidade. s.d.
fernando
pessoa livro do
desassossego por bernardo soares. vol.I ática 1982
o chão este tarzan é vosso este reino ministros Vim com um fumo de outrora afinal era uma páscoa de cigarros e eu já não era inquilino ou Sábio. Vejo agora o animal cacto a árvore verde a fruta medieval a chuva sincopada de culpa que dilui As envolventes são a sinistra assinatura da vossa permanência o pequeno silêncio os braços pesados as incumbências do destino central. Eu por aqui usarei sempre a túnica mais suave letras mortas e garrafais. Sempre que eu estiver a bordo de uma despedida lembrar-me-ei desta retícula de azar-chão-cimento intranquilo E pasmarei sempre com a desenvoltura em espiral fechada do animal-cacto (carnaval inútil olhos mortos de riso).
2 Deus diz: «Entre mim e eu sinto que me falta uma espécie de doçura; por isso improviso um colibri, algum orvalho, uma ilha muito leve, um canto de amor, um sonhar intermitente onde um outro deus se passeia.»
alain bosquet trad. de eugénio de andrade hífen 5 março cadernos semestrais de poesia tradução 1990
Os pássaros arrancaram as portas do espaço Aboliram a perspectiva do frio. O êxodo faz-lhes as vezes de pensamento. Já avistam o mar. A rosa já nada espera da sua época Os amantes já não assombram os lugares suscitados pelo seu perfume O infinito está sem forças A paixão da morte é sem análogo nos seres que amaram. françois
jacqmin sonhador definitivo e perpétua
insónia uma antologia de poemas surrealistas escritos em língua
francesa trad. regina guimarães contracapa 2021
Dentro dos velhos corpos estragados quedam-se as almas dos velhos. Que tristes estão as pobres e como aborrecem a mísera vida que arrastam. Como a temem perder e como a amam essas almas confusas e contraditórias que – tragicómicas – se acolhem à velha pele gasta. 1901
konstantinos kaváfis konstantino kaváfis, 145 poemas tradução de manuel resende flop livros 2017
Sei de alguém que beija como uma flor a abrir, mas mais fugazmente. As flores são doces. Têm vidas curtas, beatíficas. Oferecem muito prazer. Não há nada no mundo que se possa dizer contra elas. Triste, não é, que tudo o que possam beijar seja o ar. Sim, sim! Nós somos os afortunados. mary oliver felicidade tradução luís matos flâneur 2021
* o fim de uma estação as janelas semiabertas, as casas, a chuva, que parou há pouco o céu nascendo e morrendo tantas vezes à superfície de uma poça d’água, na calçada os espelhos a promessa de dias novos orientando aquele que atravessa uma cidade ou um deserto os rostos, os rastros as cinzas dos nossos mortos espargidas o pó que se ergue no voo da mariposa mar becker wladimir vaz(fotografia) a mulher submersa urutau 2021
Entre dois dias tu és a que se cala no silêncio das mãos sonhando a minha voz e a distância do tempo enquanto o tempo transborda o mundo e o mundo fica só Viver é morrer sem fim enquanto nasces Mas o regresso encontra intacta a despedida e intacta e branca o tempo enquanto passa a noite que o transborda entre dois dias. miguel serras pereira trinta embarcações para regressar
devagar relógio d´água 1993
Os amigos são assim fazem grandes viagens fazem músicas que já passam na rádio fazem filhos e sopas de pacote fazem filas nas repartições de finanças fazem pequenas hortas no terraço fazem trinta anos mas no fundo estão ainda de giz na mão a separar as palavras graves das palavras esdrúxulas estão ainda nalgum canto escuro do varandim de caderno pousado no colo a aprender a travar o primeiro cigarro catarina nunes de almeida voo rasante antologia de poesia contemporânea mariposa azual 2015
Eu era aquele que se passeia De nariz no ar Com o cão de nariz a rasar Era também aquele que colhe violetas E que arranja varetas Para ceifar as ervas altas Eu brincava eu gritava Atirava-me às garotas Minhas mãos pequenas e ligeiras Só conheciam o seu mistério A morte nunca havia Nada cortado não a sabia Não passava ainda pelos meus ouvidos A vida era perfeita. paul éluard a cama a mesa tradução de luís lima barco bêbado 2021