25 junho 2021

eunice de souza / alvorada II

 
 
Falamos através de continentes.
É pouco provável que nos voltemos a encontrar.
Não posso fumar, não posso viajar,
nenhuma felicidade, claro.
Sentindo um vento frio nas costas
renunciamos à filosofia.
Acabaram os amantes errantes, maridos,
passarões não propriamente sensatos.
Ainda temos a idade com que nos conhecemos.
 
 
 
eunice de souza
coração de abacate
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2018

 




24 junho 2021

josé miguel silva / má sorte que ela fosse mercenária

 
 
 
                                         It´s a miracle you’re not cynical.
                                                                                  Felt
 
 
Não era só a bela do bairro, era a lusa Marilyn
dos arrabaldes portuenses. Alta, toda loira,
só lhe faltava miar. De longe e de perto a segui
ao longo dos anos mais tolos. Uma tarde,
no acaso de uma rua: meu amor perdido,
ainda moras em Vilar do Paraíso?
Quando lhe telefonei dias depois
quis perguntar quanto é que eu ganhava.
Ao saber que era tudo lágrimas e livros,
ouvi – ai sim? – como arrefecia o paraíso
do outro lado da linha. Os meus 25 anos
aprenderam aí uma lição qualquer.
Mas já não me lembro muito bem
que aplicação ela teve, na gorada sequência
desses meses. A que só volto, agora,
porque já posso rir-me à vontade.
 
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003





23 junho 2021

antónio reis / poemas quotidianos

 
 
27
 
Conheço
entre todas
a jarra que enfeitaste
 
têm o jeito
com que compões o cabelo
as flores
que tocaste
 
 
antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017





22 junho 2021

josé saramago / aniversário

 
 
Pai, que não conheci (pois conhecer não é
Este engano de dias paralelos,
Este tocar de corpos distraídos,
Estas palavras vagas que disfarçam
O intransponível muro):
Já nada me dirás, e eu não pergunto.
Olho, calado, a sombra que chamei
E aceito o futuro.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018





21 junho 2021

eugénio de andrade / matéria solar

 
 
49
 
Sei onde o trigo ilumina a boca.
Invoco esta razão para me cobrir
com o mais frágil manto do ar.
 
O sono é assim, permite ao corpo
este abandono, ser no seio da terra
essa alegria só prometida à água.
 
Digo que estive aqui, e vou agora
a caminho doutro sol mais branco.
 
  
 
eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





 

20 junho 2021

bob dylan / deitei tudo a perder

 
 
Outrora tive-a nos meus braços
Ela disse que ficaria para sempre
Mas eu fui cruel
Tratei-a como um idiota
Deitei tudo a perder
 
Outrora tive montanhas na palma da mão
E rios que aí corriam todos os dias
Devo ter estado louco
Nunca soube o que tinha
Até que deitei tudo a perder
 
O amor é tudo o que existe, faz o mundo girar
O amor e somente o amor, não se pode nega-lo
Não importa o que penses sobre ele
Simplesmente não serás capaz de passar sem ele
Aceita o conselho de alguém que tentou
 
Assim se encontrares alguém que te dê todo o seu amor
Leva-o para o teu coração, não o deixes perder-se
Porque uma coisa é certa
De certeza que ficarás a sofrer
Se o deitares a perder
 
 

bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
nashville skyline
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008





 

19 junho 2021

arthur rimbaud / sensação

 
 
 
Pelas tardes azuis de Estio, irei pelos trilhos,
Picado pelas espigas, calcar a erva miúda:
Sonhador, sentirei o frescor que os pés pisam.
Virá banhar o vento a minha fronte nua.
 
Irei sem dizer nada, sem pensar em nada:
Mas o amor infinito subirá no meu ser,
– Boémio, pela Natureza, de bem longa jornada,
Feliz, como se fosse comigo uma mulher.
 
Março de 1870
 
 
 
jean-arthur rimbaud
poesia
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018






 

18 junho 2021

fiama hasse pais brandão / das lágrimas

 
 
A pequeníssima aranha assusta
a criança que eu estava a olhar,
e chora. “Meu duplo filho,
não temas a intensa labuta
da caçadora de insectos.
Ela estende uma rede, tão frágil
que a podes romper com o menor dedo.
A menos que, antes do gesto, encontres
a beleza do tecido luminoso,
quando a aranha ofende o Sol
roubando-lhe alguns raios,
ou a beleza da água que ela retém,
como diamantes sem preço,
rosácea de lágrimas.”
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002





17 junho 2021

maria gabriela llansol / o começo de um livro é precioso

 
 
195
 
Paixão. Atirou-lhe rosas vermelhas que a magoaram
Na cara. Levantou as saias (num gesto espontâneo de
Protecção) e cobriu-a com o algodão leve da combinação.
Havia lágrimas. Como havia alguma podridão de espírito
A embaciar as vidraças. Um raio de sol casto atravessou-as
E, por um ponto único, deu-lhe a mão, pedindo-lhe que as
Baixasse.
 
 
 
maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003





16 junho 2021

maria alberta menéres / quando o sol não vier

 
 
XLIII
 
Quando o sol não vier
nesse dia diferente do que sei,
quando tudo o que traz a madrugada
for tão sincero e extenso
como esta areia fria,
farei então, da bruma e do silêncio,
todas as mãos que me faltam,
 
 
e nelas repousarei!
 
 
 
maria alberta menéres
meditação
poesia completa
porto editora
2020

 



15 junho 2021

ruy belo / acontecimento

 
 
Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono
Caiam agora pálpebras que cerrem
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora
Caiam agora que o amor chegou


 
ruy belo
todos os poemas I
dedicatóra
assírio & alvim
2004





14 junho 2021

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral

 
 
III
 
Quem diria, vou viver
além do século gasto,
só é pena o calendário
me trocar a identidade
(Venho contigo ao jardim
com dedos vazios de rimas
quem diria, eu que vou ser
presidente dos cantores)
Tenho na boca o aço
do pesadelo real
fiquei preso à voz do eco
é banal! Ao telefone
só, de plástico, etc.,
procura, sigilosa, desejável foto
(enfim, por fax, a cores).
Quem diria, preso à voz
não sei de quem, que me ouvia.
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999

 




13 junho 2021

fernando pinto do amaral / escotomas

 
 
3.
Apagaram-se as luzes. Na memória
vibra a última sombra, a solidão
de um anjo cego abrindo pouco a pouco
os olhos. Desta noite
nascem todas as noites de quem fala
em silêncio e afoga
as suas dores no sangue incandescente
de uma estrela já morta, a cintilar
sob escuros escombros, entre sonhos
ainda por viver. Em cada alma
escorre um fio de mercúrio, essa lágrima
anunciando o paraíso, algures
no interior da treva.
 
 
 
fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997